Barreira da exclusão

Entrevista: Marco Antonio Zito Alvarenga, advogado

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2 de setembro de 2007, 0h00

Marco Antônio Zito Alvarenga - por SpaccaSpacca" data-GUID="marco_antonio_zito_alvarenga.jpeg">Os negros merecem ser recompensados pelo esquecimento do qual foram vítimas desde a abolição da escravatura. De lá para cá, nada foi feito para que haja igualdade de oportunidades entre negros e o restante da população brasileira. É com base nesse argumento que o presidente da Comissão do Negro da OAB-SP, Marco Antonio Zito Alvarenga, defende políticas públicas específicas para negros, como cotas em universidades sem que sejam vinculadas a aspectos econômicos.

“Não queremos privilégios eternos, mas políticas de compensação”, declarou em entrevista à revista Consultor Jurídico. O advogado ressalta que os pobres e os outros grupos excluídos como os negros também devem ser beneficiados com políticas públicas.

Questionado sobre a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, que declarou que qualquer política pública baseada em fator racial é racismo, o advogado diz que ela não pode se aplicar à realidade do Brasil. Segundo ele, hoje, os negros norte-americanos chegaram a um patamar em que podem concorrer em condições de igualdade com os brancos. Ou seja, a decisão pode até ter certa coerência lá, mas não aqui. Para o advogado, adotar esse critério aqui no Brasil serve para que algumas pessoas tenham a mesma oportunidade que todos os outros têm.

Vindo de família de classe média baixa, Zito Alvarenga é negro e conseguiu ultrapassar a barreira da exclusão, como ele mesmo gosta de dizer. Conta que a mãe era cozinheira do dono de uma boa escola, onde teve a oportunidade de estudar. Saiu de lá e logo foi aprovado no curso de Direito da PUC-SP. Especializou-se em Direito Previdenciário e hoje atua também na área de Direito Esportivo. Há dois anos, é auditor do Tribunal de Justiça Desportivo da Federação Paulista de Futebol.

Na Comissão do Negro e Assuntos Anti-discriminatórios da OAB-SP, que presidente pelo segundo mandato consecutivo, Zito Alvarenga costuma promover debates sobre a diversidade. Levar as questões raciais para as universidades e aos policiais, por exemplo. “As pessoas imaginam que ao trabalhar isso você está mostrando uma ferida. Na verdade, você está fazendo um tratamento para melhorar.” Também participaram da entrevista os jornalistas Gláucia Milício, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Qual a diferença entre preconceito e discriminação?

Marco Antonio Zito Alvarenga — O preconceito é um sentimento íntimo de rejeição a uma determinada situação, pessoa ou fato. A discriminação é o ato de exteriorizar esse preconceito. Passa do campo de um mero convencimento para um ato de violação de direitos de terceiros.

ConJur — Por que eu posso escolher a cor da minha mulher e não posso escolher a cor do meu funcionário?

Zito Alvarenga — A escolha da cor ou da raça da sua mulher envolve amor. Isso é questão de foro íntimo. É diferente quando se trata de uma contratação. A competência e qualificação da pessoa é o que deve influenciar na escolha. Há algum tempo, empresas adotavam nas seleções o chamado Código 4, que era usado para identificar a cor da pele da pessoa. As anotações traziam informações sobre os requisitos da pessoa para o cargo e também sobre a cor. Essas situações fazem parte do cotidiano, de forma velada.

ConJur — Hoje, o Código 4 ainda é usado pelas empresas?

Zito Alvarenga — Não tenho dados para dizer isso. Mas a minha impressão é que continua existindo a discriminação, não na forma do Código 4. O número de profissionais negros de sucesso em grandes empresas é pequeno, mesmo dentro do poder público. O fato é tão arraigado na nossa cultura, que grandes bancos criaram núcleos de afro-descendentes. É um trabalho de inclusão, válido. Não podemos trabalhar com o conceito de falsa democracia racial. Existe a diversidade, existem as diferenças e elas devem ser vistas e respeitadas.

ConJur — Em entrevista à ConJur, a procuradora Roberta Fragoso Kaufmann explica esse fato como uma conseqüência de os negros serem mais pobres no país e, por isso, não têm acesso a bons colégios para chegar à universidade e alcançar altos cargos.

Zito Alvarenga — Esse é o reconhecimento expresso de que o pobre não tem oportunidade. Além do que, os negros que se destacam não têm a visibilidade necessária para servir de paradigma para a juventude. Eles precisam de um exemplo para mirar e falar: “Mesmo com as minhas dificuldades, eu posso chegar até lá”.

ConJur — Mas não é a mesma coisa ser um pobre branco ou negro? As políticas afirmativas não deveriam ser direcionadas para os pobres, independentemente da cor da pele?

Zito Alvarenga — Concordo que deve haver cotas vinculadas à questão da pobreza e para estudantes da escola pública. Reforço que é preciso haver definição clara do percentual necessário para incluir. O Estado tem que estar preparado para proteger todos no seu arcabouço jurídico e administrativo. Há a tese de que o fato de o negro entrar por cota na faculdade vai fazer a qualidade cair. Isso não é verdade.


ConJur — Qual é o critério de cotas ideal para as universidades?

Zito Alvarenga — A questão racial é indiscutível. Em segundo lugar, é preciso ter cotas para estudantes vindos de escola pública. É preciso estabelecer percentuais, inclusive para os brancos pobres.

ConJur — No critério racial, deve se tomar por base a auto-declaração ou formar uma comissão para avaliar?

Zito Alvarenga — A auto-declaração. Sempre teremos os oportunistas, aqueles que dizem: “minha bisavó era negra”. É cultural. Muitos acham que nós, negros, queremos tirar proveito da situação em nosso favor. Durante muitos anos, o negro esteve quieto. No momento que busca seu espaço, vem a reação da sociedade. Não pode ser diferente. Nos shoppings, por exemplo, só há vagas para os negros exóticos. É um fato. Se eu entro no shopping de terno escuro, acham que sou segurança.

ConJur — Isso é preconceito?

Zito Alvarenga — Não. É a imagem que a sociedade tem do negro. É a ausência de paradigmas que mostrem que o negro pode ser mais que segurança. Pode ser médico, advogado. Não estamos em busca de privilégios, mas de reconhecimento do nosso valor histórico na construção do país. Essa parte da história ainda não foi contada nas escolas. A sociedade brasileira tem que ter a visão clara e transparente do que acontece nesse país. O Estado tem de adotar e implantar políticas públicas nesse sentido. Se é impossível acabar com o preconceito, temos de impedir violação do direito de terceiros.

ConJur — A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que qualquer política pública baseada em fator racial é racismo. O senhor concorda com isso?

Zito Alvarenga — Não para o Brasil. Nos Estados Unidos, as políticas afirmativas e de cotas existem há mais de 50 anos. Hoje, o negro nos Estados Unidos chegou a um patamar em que pode concorrer em condição de igualdade com os brancos. Por isso, essa decisão foi tomada agora. A Suprema Corte levou em consideração todo o momento histórico dos Estados Unidos. No Brasil, esse entendimento não pode ser aplicado. Aqui, adotar critério racial para políticas públicas serve para que algumas pessoas tenham a mesma oportunidade que outros já têm. É uma política de caráter temporário. Na medida em que os negros forem atingindo patamares de igualdade, não serão mais necessárias. Não queremos privilégios eternos, mas sim políticas de compensação.

ConJur — Há quem defenda que o movimento negro rejeita o critério de cotas baseado na renda porque isso beneficiaria apenas os negros pobres. Em geral, líderes do movimento são de classe média e eles não seriam atingidos pelo benefício. O que o senhor acha disso?

Zito Alvarenga — O Brasil nunca implementou de forma correta as políticas universais, para igualar as oportunidades. O negro foi libertado há quatro séculos. Não houve políticas que conseguissem integrá-lo à sociedade. Não há respostas contundentes às pretensões dos negros como há, por exemplo, em relação aos presos políticos. Eles recebem, inclusive, indenizações.

ConJur — O senhor acha que os negros deveriam receber indenização?

Zito Alvarenga — Não sou a favor de indenização pecuniária, mas de políticas públicas. Como conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo e presidente da Comissão Negro e Assuntos Anti-discriminatórios é possível ver algumas dificuldades que os advogados negros passam. Há de se ter muito equilíbrio para não fazer patrulhamento. Não se pode usar o preconceito para obter vantagem.

ConJur — O trabalho da comissão visa o advogado negro. Existem problemas específicos do advogado negro?

Zito Alvarenga — A problemática do advogado é a mesma do cidadão negro. Temos um bom número de profissionais. Mas temos mais bacharéis. Até um determinado momento, os negros escolhiam o funcionalismo público para romper a barreira da exclusão social. Galgando cargos até ficar mais próximo de um patamar de reconhecimento. Hoje, o Direito é outra forma de ultrapassar a barreira.

ConJur — O Brasil tem um alto grau de miscigenação. O senhor não concorda que as maiores vítimas do racismo talvez não sejam os negros, mas os pardos, que formam a maioria da população brasileira?

Zito Alvarenga — Discordo. Mesmo se fossem as maiores vítimas do racismo, estariam incluídos nas cotas. A sociedade, ou um grupo dela, se incomoda com as políticas sociais voltadas para os negros. Ninguém gritou quando foram implementadas políticas afirmativas para os imigrantes, que na região Sul, ganharam terras. Hoje, critica-se a doação de terras para a comunidade quilombola. A Folha de S. Paulo publicou uma notícia dizendo que a área destinada a essa comunidade equivale ao estado de São Paulo. Sobre a área doada aos índios ninguém fala. Por que a questão do negro é tão dura e tão difícil? Parece que há resistência entranhada na história do povo brasileiro.


ConJur — Houve uma política deliberada de escravidão por quatrocentos anos. Mas, paralelamente, havia convivência entre todas as raças desde a colonização. As mulheres que procriaram neste país desde o começo foram as negras e as índias, porque não havia brancas. Essa é a teoria do Darcy Ribeiro sobre o povo brasileiro, que inclui brancos, negros e índios.

Zito Alvarenga — Só que todos tiveram oportunidades. Os negros não. Houve a convivência, mas sempre nos esqueceram. Esse é o chamado falso mito da democracia racial.

ConJur — Mas é o fenômeno real da miscigenação biológica. Não se pode desprezar que as raças confluíram também.

Zito Alvarenga — Não nego isso. O fato é: se os negros tivessem as mesmas oportunidades, eu não estaria discutindo esse assunto. Se tivéssemos no mesmo patamar de igualdade, de reconhecimento, de espaço, isso não seria pauta.

ConJur — O Estatuto da Igualdade Racial é necessário?

Zito Alvarenga — Uma das grandes dificuldades do Estatuto da Igualdade Racial foi o dispositivo que previa a criação de um fundo específico destinado para políticas públicas. Mas ele já foi retirado da proposta. O Estatuto trata da questão racial, mas com viés social. Estabelece políticas no sentido a atingir aqueles negros que estão na base da pirâmide, os pobres.

ConJur — Mas tomando a raça como critério.

Zito Alvarenga — As raças existem. Criadas pela própria sociedade. Ninguém pode dizer que eu não sou negro.

ConJur — E o Ministério da Igualdade Racial?

Zito Alvarenga — O atual governo deu a competência a esse ministério para implementar políticas públicas de inclusão social. A dificuldade é que todas as políticas são entrelaçadas. Então, tem que discutir com o Ministério da Saúde, da Educação, da Cultura. Não existe no país a cultura de fazer políticas de Estado conjuntas. O ministério é necessário, na medida em que surge como um paradigma no sentido de reconhecer o racismo, que não é institucional, mas que existe.

ConJur — Qual é a diferença técnica entre injúria e racismo? Numa partida de futebol, um jogador argentino chamou o jogador do São Paulo, Grafite, de macaco. Qual o limite entre ofensa e racismo?

Zito Alvarenga — O dono de um restaurante não deixar uma pessoa entrar em seu estabelecimento porque é negra, é racismo. A injúria, agravada pelo componente racial, se caracteriza quando a pessoa atinge a moral do indivíduo em si, o coloca numa posição subumana. A linha entre um e outro é tênue. No caso do Grafite, foi racismo, crime inafiançável e imprescritível. O caso desse jogador acabou atingindo toda a comunidade, na medida em que foi divulgado de forma expressiva pela imprensa. Quando se atinge a comunidade como um todo, trata-se de preconceito. Quando se atinge a moral, a sua questão última, personalíssima, aí se trata de crime de injúria.

ConJur — Não há dúvida de que alguém que comete crime de racismo tem que sofrer alguma sanção. Mas não há exagero? Por exemplo, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível. No homicídio, que é um crime contra a vida, o réu pode responder em liberdade e há prescrição.

Zito Alvarenga — A imprescritibilidade do delito é um instrumento para que a pessoa de menor potencial financeiro e menor conhecimento técnico possa reclamar depois. Mas essa é a chamada letra morta da lei. A legislação brasileira é uma das mais rigorosas. Há uma grande distância entre ser rigorosa e ser aplicada. Muitas vezes, quem sofre injúria não tem condição de contratar um advogado. Nos crimes de racismo funciona, porque o dono da ação penal é o Ministério Público. Ele tem os meios de fazer isso.

ConJur — De que forma o negro sofre preconceito hoje?

Zito Alvarenga — Minha mulher também é negra. Dependendo do ambiente em que você está, do lugar onde você mora, as pessoas ficam surpresas. No dia-a-dia, as pessoas mostram isso, como se fossemos seres diferentes. Houve um caso de um anúncio de jornal para a contratação de uma empregada doméstica que não fosse negra. Uma negra ligou e a pessoa que atendeu pediu para que ela descrevesse os seus traços. “Eu sou negra”, disse. Daí, a pessoa disse que ela não estava habilitada para exercer a função.

ConJur — O caso foi parar no Judiciário?

Zito Alvarenga — A autoridade policial entendeu que não havia crime e o Ministério Público não ofereceu denúncia. Mas foi levado à Corte Internacional da Organização dos Estados e dos Países e houve uma reprimenda administrativa ao Brasil. A Corte sugeriu que políticas públicas fossem aplicadas nesse sentido.

ConJur — A procuradora Roberta Kauffmann defende que nunca houve uma política de Estado de discriminação racial ou de segregação. Por isso, as políticas compensatórias baseadas na raça não se justificariam.

Zito Alvarenga — Houve sim. Em uma palestra, o professor Aziz Ab’Saber disse que para saber quem é negro, é só chamar a polícia. Outro dia fui buscar minha filha na faculdade. Parei para tomar um guaraná e comer um lanche. Um policial me parou. Essas coisas acontecem. Mas algumas políticas têm sido implantadas. Fui convidado para fazer uma palestra para 1.700 policiais militares. Depois fui abordado por dois que assistiram para dizer que gostaram. As pessoas imaginam que ao trabalhar isso você está mostrando uma ferida. Na verdade, você está fazendo um tratamento para melhorar.

ConJur — Quais as políticas públicas que defende para tentar resolver essa situação?

Zito Alvarenga — Ações afirmativas, de forma geral. Oportunidade de empregos, escolas melhores, políticas de saúde voltadas para negros. É cientificamente provado que algumas doenças atingem mais os negros, como a anemia falciforme, pressão alta. É preciso dirigir um segmento científico para desenvolver um trabalho para atender essa parte da população.

ConJur — No lugar de estabelecer percentuais de cotas, não seria mais justo oferecer incentivos fiscais que atinja toda essa população, independente de um número pré-estabelecido?

Zito Alvarenga — Por exemplo, em um concurso para um cargo de limpeza dar um ponto para os negros que estiverem concorrendo. É pontuação, não está tirando de ninguém. Mesmo porque quem concorre a esse tipo de cargo, são todos os pobres.

ConJur — O pobre, não o negro.

Zito Alvarenga — A maioria é de negros. A média são três anos de dedicação efetiva aos estudos para se passar em um concurso público hoje. Se não houver um critério objetivo, qual a oportunidade que essas pessoas terão de concorrer nesses grupos? Estabelecendo critérios, os melhores negros serão escolhidos. Nas cotas para as universidades, também.

ConJur — Falando de discriminação de forma geral, temos o recente caso do jogador Richarlyson. O juiz que cuidou do processo foi acusado de homofobia, ao dizer que futebol é coisa para macho e gay não tem que jogar bola. O fato de o jogador ter entrado com uma queixa-crime contra o diretor do Palmeiras por ter insinuado que ele é gay, também não é uma espécie de homofobia?

Zito Alvarenga — O problema é subjugar alguém a uma situação inferior. O diretor do time, ao comparar a conduta de Richarlyson com a de um gay, com certeza quis ofendê-lo, subjugá-lo. É uma questão subjetiva. Diferente de quando se fala em crimes de roubo, homicídio. Está lá o corpo, o objeto furtado. Estamos falando de comportamento de pessoas. No caso, a decisão do juiz foi preconceituosa, quando ele fala: “daqui a pouco vai virar bagunça, cota para negros, para gays”. O juiz tem que ficar restrito aos termos do processo. Não ir além, nem aquém.

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