Sem origem

Falta leio para garantir anonimato de recém-nascido

Autor

  • Débora Gozzo

    é advogada doutora em Direito pela Universidade de Bremen/Alemanha. Mestre em Direito pela Universidade de Münster/Alemanha e pela USP. Ex-bolsista (pós doutorado) da Alexander von Humboldt Stiftung. Professora do curso de mestrado do Unifieo/Osasco e da Faculdade de Direito da Universidade São Judas. É professora da EPM e coordenadora do curso de especialização em Família e Sucessões do CEU.

26 de outubro de 2007, 13h50

O recentíssimo caso em que uma mulher grávida, que tenta por meio de chás e outras substâncias, provocar um aborto, e que finalmente dá à luz a uma criança, jogando-a pela janela para desfazer-se do “problema”, chocou o país. Antes desse, contudo, a sociedade brasileira foi confrontada com outros episódios parecidos, como a da mãe que embrulhou o bebê em saco plástico e depositou o “pacotinho” no lago da Pampulha em Belo Horizonte. E assim poderíamos desfiar um inúmero rol, não só de casos ocorridos em território nacional, como estrangeiro, em que especialmente mães tentam desfazer-se de seus filhos recém-nascidos ou não.

Não se vislumbra, aliás, paradeiro para esse tipo de atitude. Recém-nascidos e demais crianças, sempre foram abandonados por seus genitores ao longo da história. Vide o caso de Moises. O que se constata, portanto, é que a iniciativa de abandonar um bebê recém-nascido apresenta-se como prática bastante corriqueira, seja lá qual o motivo que tenha levado a genitora ou os genitores a esse ato tresloucado. Por isso, louvável a iniciativa de alguns países como Alemanha, Itália, Índia e Japão, que aos poucos vão reintroduzindo a chamada “Roda dos Expostos”, na tentativa de evitar que recém-nascidos sejam mortos ou abandonados logo após o nascimento por seus genitores.

A “Roda” era, originalmente, um espaço giratório onde se colocava o bebê de um lado, para que fosse retirado do outro, de forma anônima, porquanto não se via nem quem o depositou ali, nem aquele que o retirou, após ter sido alertado pelo som de uma campainha. A criança seria então levada para um orfanato, ou seria dada em adoção. É, aliás, por causa desse anonimato, que atualmente se fala em “nascimento anônimo”.

Prosseguindo, as raízes da “Roda” remontam à Idade Média, aproximadamente ao século XIII, quando a Igreja Católica resolveu acolher bebês que eram rejeitados por suas famílias. Em Portugal a primeira surge no século XV, com a instalação da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa (1498), que também foi a instituição que a manteve no Brasil.

Entre nós, a primeira “Roda” teria surgido, nos moldes daquela da Santa Casa de Lisboa, no ano de 1730 no Rio de Janeiro, espalhando-se depois para Bahia, em 1734, e São Paulo, em 1736 e alguns outros estados, como Rio Grande do Sul. Em todos esses lugares a “Roda” deixa de existir na primeira metade do século XX. Em São Paulo, por exemplo, a Santa Casa de Misericórdia deixou de operar a “Roda” em 1949, por entender que, sob um ponto de vista político, ela não correspondia mais às expectativas da sociedade brasileira daquela época.

Se se levar em consideração o número de abortos, em especial, os clandestinos, o assassinato de bebês e crianças, bem como o de abandono delas, parece risível que em determinado momento a sociedade brasileira tenha aberto mão de um instrumento tão útil, embora paliativo, para salvar vidas. Tome-se em conta, também, que com a mudança de costumes, e a conseqüente liberdade para se praticar sexo sem compromisso, já desde a adolescência, resulta mais e mais no nascimento de crianças indesejadas.

A partir desses fatos é importante tomar-se conhecimento que o Code Civil, codificação francesa que sempre tanto inspirou — e ainda inspira — os legisladores pátrios, garanta à mulher grávida a possibilidade de dar entrada na maternidade de forma anônima, entregando o filho, logo depois do parto a um órgão governamental. Este aguardará um determinado prazo para que a mulher possa refletir se realmente não quer ficar com seu filho, antes de permitir a adoção do menor.

Esclareça-se que o nascimento anônimo, no caso da lei francesa, não é tão “anônimo” quanto parece num primeiro momento. Isto porque para que a mulher possa chegar ao estágio de ter sua identidade resguardada no momento do parto, ela terá de ter passado por um centro de aconselhamento para mulheres que queiram abortar ou abrir mão do recém-nascido após o nascimento. Nesse momento todos os dados pessoais dela serão armazenados e assim ficarão, para que aquele filho possa, no futuro, e, eventualmente, ter o direito de conhecer sua origem biológica. Assim, dentro dos casos em que isso for possível, protege-se a dignidade humana dessa pessoa.

Na Alemanha, atualmente, há três projetos de lei que buscam a regulamentação do “nascimento anônimo”. Esse movimento legislativo começa a tomar corpo fundamentalmente no ano de 2000, quando ressurge, na Cidade-Estado de Hamburgo, a “Roda” (Babyklappe). Depois dessa primeira iniciativa, mais de 20 já foram instaladas em território alemão. Há, ainda, algumas cidades alemãs em que hospitais estão aceitando fazer o parto anônimo de mulheres que não desejam ficar com o bebê, embora não haja legislação nesse sentido. E essa iniciativa tem contato sobretudo com o apoio da Igreja Católica, no sentido de ajudar mulheres em dificuldade.

Em toda essa discussão há quem argumente ser desnecessária a existência de “Rodas” ou de lei que garanta o nascimento anônimo, porque as estatísticas feitas até o momento, não demonstram que essa seja uma forma eficaz de se evitar o aborto, o infanticídio e o abandono de menores. Isso pode até ser verdade, mas tanto a “Roda” quanto o nascimento anônimo poderiam dar pelo menos uma chance a um recém-nascido de desenvolver-se livremente como ser humano que é, sem que sua vida seja ceifada de forma tão cruel.

Enfim, a sociedade brasileira que tanto tem debatido as idéias do Ministro da Saúde no que diz respeito à sua defesa pelo direito ao aborto, poderia conscientizar-se no sentido de rever a idéia do retorno da “Roda”, ou da elaboração de eventual lei que regulamente o nascimento anônimo, como já faz a França. Esta deveria ser uma questão de política pública, a ser analisada com mais interesse e profundidade por todos aqueles que defendem o direito à vida.

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    é advogada, doutora em Direito pela Universidade de Bremen/Alemanha. Mestre em Direito pela Universidade de Münster/Alemanha e pela USP. Ex-bolsista (pós doutorado) da Alexander von Humboldt Stiftung. Professora do curso de mestrado do Unifieo/Osasco e da Faculdade de Direito da Universidade São Judas. É professora da EPM e coordenadora do curso de especialização em Família e Sucessões do CEU.

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