Suprema lógica

Restrição à PF é coerente com a existência do foro privilegiado

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14 de outubro de 2007, 13h24

Haverá quem venha dizer que a decisão do Supremo Tribunal Federal — por 6 votos a 4 — que colocou um freio na atuação da Polícia Federal na investigação de políticos, foi motivada, inicialmente, pela profunda irritação do ministro Gilmar Mendes, em razão da confusão que fizera a PF, deixando vazar o nome de um Gilmar Mendes (homônimo do ministro) que aparecia na lista de autoridades que recebiam presentes da Gautama, principal investigada na Operação Navalha, que apurava um esquema de desvios em obras públicas (vazamento esse considerado uma “canalhice”, pelo ministro).

Na verdade, a questão de ordem suscitada pelo ministro Mendes, ao Supremo, para que a mais alta Corte definisse se a Polícia Federal poderia indiciar autoridades com foro privilegiado, foi levantada em abril, por ocasião do arquivamento dos indiciamentos dos senadores Magno Malta e Aloizio Mercadante, o primeiro por suposto envolvimento no esquema de superfaturamento de ambulâncias, a chamada máfia dos sanguessugas, e o segundo por ser alvo da apuração de responsabilidades no caso da compra do dossiê Vedoin contra políticos tucanos nas eleições de 2006. O Supremo decidiu que não cabe à Polícia Federal indiciar deputados, senadores, ministros de Estado, o presidente e o vice-presidente da República, porque todos têm foro privilegiado — no caso, o próprio STF.

Questionar-se a necessidade ou não de nosso ordenamento jurídico abrigar o foro privilegiado é algo alheio ao específico caso em pauta. É discussão de ampla abrangência que toca, por um lado, no princípio básico da isonomia (o “todos são iguais perante a lei”) e, por outro, na proteção das elevadas funções públicas contra tentativas de perturbá-las por ações judiciais levianas, inconseqüentes ou politicamente motivadas. O foro privilegiado, aí, serve para evitar que governantes tenham que enfrentar um pipocar de processos ajuizados nas mais distantes comarcas, tendo por objetivo maior, em última instância, tolher ou atrapalhar ao máximo o adversário que está no poder.

O que importa mais reter é que essa decisão do Supremo tem um sentido lógico e coerente. Se há foro privilegiado, dele deve provir a autorização para que se inicie um processo de investigação. Quando a Polícia Federal propõe um indiciamento, diz haver indícios suficientes de que um investigado tenha cometido algum crime. O critério de aferição da existência — ou não — desses indícios não pode ficar a cargo do órgão policial, sob pena de esvaziarem-se, por antecipação, os próprios critérios da Corte encarregada da jurisdição. Por esse motivo é que os ministros do Supremo passaram a exigir que, para investigar uma autoridade que tenha foro privilegiado, a PF precisa de autorização prévia do próprio STF — e será um ministro dessa Corte que irá definir quais apurações devam ser feitas.

Por outro lado, os ministros do Supremo determinaram que o Ministério Público não terá o poder absoluto de impedir uma investigação — seja de parlamentar, de ministro ou de outro beneficiário de foro especial. Hoje, se a Polícia Federal pede a abertura de uma investigação ao STF e o procurador-geral da República der um parecer contra, o Supremo só pode arquivar as apurações. Pelo entendimento da maioria de seus ministros, agora, independentemente da posição do procurador-geral, o Supremo pode abrir uma investigação de quem tenha naquela Corte seu foro especial. É verdade que, ao final das apurações, o Supremo ainda depende do Ministério Público para iniciar uma ação penal — quando o investigado, então, passa à condição de réu. Bem é de ver que nem o Supremo tem condições de derrogar (nem o pretende) o princípio segundo o qual o Poder Judiciário age mediante provocação.

O que se depreende dessa e de outras decisões da mais alta Corte de Justiça do País é que, gradualmente, o STF vai pondo ordem e coerência em questões processuais e de competência jurisdicional confusas, além de deixar mais nítidos os limites de atuação de organismos policiais, por mais que se considere e respeite a importância de sua atuação.

Editorial publicado em O Estado de S. Paulo deste domingo (14/10)

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