Loucos à solta

Doente mental preso não pode pagar por falhas do Estado

Autor

7 de outubro de 2007, 0h00

Todo crime escabroso, destes ditos hediondos, causa impacto na opinião pública e provoca santa indignação. Além de colocar manifestantes nas ruas, tem o poder de postar diante de câmaras e microfones especialistas em segurança pública, sempre prontos a sugerir soluções e a apontar culpados. E a culpa fica sempre, ou quase sempre, com a lei, com o perito, com a polícia, ou com o juiz. Nunca, ou quase nunca com a administração pública.

Foi assim no caso de Ademir Oliveira do Rosário, de 36 anos, o doente mental que saiu do manicômio judiciário para matar os irmãos Francisco Oliveira Neto, de 14 anos, e Josenildo José Oliveira, de 13 anos. Os dois foram encontrados mortos no dia 25 de setembro, terça-feira, na mata da Serra da Cantareira, na Zona Norte de São Paulo. Neste caso sobrou para o perito.

Ademir Oliveira do Rosário havia sido condenado três vezes: por roubo cometido em 1990, pelo homicídio de um homem ocorrido em 1991 e por atentado violento ao pudor de dois meninos e um roubo que aconteceram em 1998. Por ser doente mental, estava internado no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico II de Franco da Rocha.

Depois de passar pela perícia, cumpria desinternação progressiva, uma espécie de progressão de regime para quem cumpre sanção de medida de segurança (medida aplicada apenas para os doentes mentais). Um perito assinou um laudo que dizia que Rosário poderia ser reintegrado, com cautela, à sociedade e o juízo de execução autorizou que o “preso” passasse os finais de semana em casa.

Em um desses finais de semana, os irmãos Oliveira foram violentados e mortos. O doente mental confessou o crime e foi preso no dia 26 de setembro. Logo, a opinião pública tratou de culpar pelo crime do doente mental o perito que fez o laudo e a juíza que autorizou a desinternação progressiva. Chegou-se a discutir a extinção da desinternação progressiva — única maneira de reintegrar o doente mental condenado criminalmente.

O que a Lei de Execuções Penais prevê, no entanto, é que não só juiz ou perito fiscalize o cumprimento de medida de segurança, ou cumprimento de pena para os inimputáveis. O Ministério Público e os Conselhos Penitenciários também precisam fazer sua parte. A mesma responsabilidade cabe à família do doente psiquiátrico, ou preso.

“Sociedade, Estado, magistratura, Ministério Público, agentes públicos. Todos são responsáveis por fiscalizar e supervisionar o cumprimento de medidas tanto para presos inimputáveis, como para presos imputáveis”, defende o advogado Eduardo Reale Ferrari.

Sérgio Salomão Shecaira, presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), é ainda mais enfático. Para ele, depois do juízo de execução, quem deve ficar atento aos passos dos condenados é o Ministério Público. “O promotor da execução tem vista do processo. É incumbência do órgão fiscalizar tudo o que acontece na fase de execução da sentença”, afirma.

De acordo com Shecaira, o que está previsto na Lei de Execuções Penais não é cumprido porque não se tem controle. Ele explica que nos Estados Unidos, por exemplo, existe o Office of the Commissioner of Probation (OCP). Esse departamento é formado por funcionários públicos responsáveis apenas por fiscalizar os presos que cumprem regime aberto, semi-aberto, ou as sanções que podem ser comparadas à medida de segurança. Esses agentes podem aparecer de surpresa no local onde o preso diz estar trabalhando para constatar se realmente está empregado. Também pode ir até a casa do condenado.

No Brasil, é o condenado quem dá satisfação sobre sua situação para a Justiça. O condenado imputável vai até o Fórum de Execução Criminal e leva a carteira de trabalho para comprovar que está empregado. “O preso pode falsificar documento. Não existe controle por parte do juízo de execução, ou da administração penitenciária. Por isso acontecem crimes como este que ocorreu em São Paulo”, diz.

O juiz corregedor dos presídios de São Paulo, Cláudio do Prado Amaral, defendeu a extinção do programa de desinternação progressiva, quando o caso dos meninos da Cantareira estava nas páginas policiais dos principais jornais do país. Mas já voltou atrás e afirmou que a desinternação progressiva é necessária e que podem ocorrer apenas alterações.

“A fiscalização prevista na lei, na prática não existe. O sistema prevê que psiquiatra, assistente social e psicólogo cuidem do preso doente mental dentro e fora da casa de custódia. Hoje, quem faz isso, ou tentar fazer, é a Polícia Militar, e só do lado de fora. Não que esteja fora das atribuições da PM agir assim. Mas isso mostra a falha do sistema”, acredita Amaral.

Como funciona

A sanção de medida de segurança é prevista dos artigos 96 a 99 do Código Penal. O gênero da condenação é sanção penal e não pena. O doente mental inimputável cumpre medida de internamento em casa de custódia. O doente mental parcial faz tratamento ambulatorial, que consiste no comparecimento em clínicas médicas e que permite que a pessoa fique em casa. A única exigência é que faça o tratamento médico.

Quem decide se a medida de segurança será internação ou tratamento ambulatorial é o juízo de execução. Ele avalia o laudo do estado mental do réu feito por peritos e a gravidade da infração. Via de regra, se impõe medida de internamento em casa de custódia.

Um movimento antimanicomial, com ramificações internacionais, defende que doentes mentais devem ser tratados sem internação. A mesma corrente luta pela desinternação progressiva. No Brasil, o movimento antimanicomial defende ser inconstitucional manter um doente mental preso por tempo indeterminado. Isto porque, em determinados casos, não há limite de internação para doentes mentais infratores.

Para o advogado Eduardo Reale Ferrari, o ideal seria que o preso inimputável depois de cumprir a pena máxima determinada no Código Penal fosse recolhido para tratamento em um hospital de tratamento psiquiátrico comum. “A sanção perpétua é inconstitucional. A jurisprudência tem evoluído para permitir a transferência de estabelecimento”, explica.

“Doente mental não pode perder o contato com o mundo. Por isso a importância da desinternação progressiva. Para que funcione, a desinternação precisa do apoio do Estado. Cabe ao Estado garantir que o doente condenado criminalmente tenha apoio de psicólogos, médicos e assistentes sociais. Juiz e Ministério Público também têm suas obrigações. O que não pode é tirar um direito do preso porque o Estado não faz a sua parte”, considera Ferrari.

A desinternação progressiva é prevista em São Paulo por meio de resolução editada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Os primeiros benefícios foram concedidos em 1985. Não são todos os estados que aplicam a progressão, já que não é prevista em lei, mas em provimento. “A luta é no sentido da aplicabilidade da desinternação em todos os estados do país”, finaliza o advogado.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!