Garantia do equilíbro

A aplicação do princípio da boa-fé nas relações contratuais

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6 de outubro de 2007, 0h01

O Novo Código Civil apresenta como princípios norteadores a operabilidade, a sociabilidade e a boa-fé. Este último princípio, cujo estudo é o escopo deste trabalho, vem sendo concretizado nas jurisprudências devido a sua magnitude e extensão, não sendo mais visto como um simples princípio norteador.

A expressão boa-fé tem sua origem etimológica a partir da expressão latina fides, termo de significado não muito claro que abrangia três dimensões (fides-sacra, fides-fato e fides-ética). A instituição data da primitiva organização romana, situada entre a fundação da cidade e a Lei das XII Tábuas, nas relações de clientela. O termo fides, latu sensu, significa a fidelidade e coerência no cumprimento da expectativa de outrem, independentemente da palavra que haja sido dada, ou do acordo que tenha sido concluído.

É um compromisso, primordialmente, de fidelidade e cooperação nas relações contratuais. Também, no Código de Napoleão de 1804 (na terceira alínea do artigo 1.135 e no artigo 550) a boa-fé se fazia presente, porém logo o princípio ficou limitado visto que o Código priorizada a autonomia da vontade — no Code expressa no artigo 1.134 : “la force obligatoire du contrat”.

Historicamente, a boa-fé pode ser considerada como algo que deve estar presente em todas as relações jurídicas e sociais existentes, porém a concepção clássica de contrato baseada no princípio da autonomia da vontade prevaleceu sobre alguns aspectos e em certos ordenamentos durante muito tempo, e teve seu apogeu no século XIX. Este princípio está presente na locução latina pacta sunt servanda que significa a obrigatoriedade do cumprimento das cláusulas contratuais. Portanto, entendia-se por este princípio que as partes tinham o poder de estabelecer todo o conteúdo do contrato. Fica nítida a influência que teve o Liberalismo e o Individualismo neste instituto.

Com o princípio da boa-fé vigente em nosso Novo Código Civil, objetivamente, cada pessoa deve ajustar sua conduta ao arquétipo de conduta social vigente. Paulo Brasil Dill Soares (2001, p. 219-220), esclarece o significado da boa-fé objetiva, ao conceituar:

“Boa-fé objetiva é um ‘standard’ um parâmetro genérico de conduta. Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, pensando no outro, no parceiro atual, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, gerando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização de interesses das partes.”

À luz da doutrina, há marcante diferença entre boa-fé subjetiva e objetiva: em sua concepção subjetiva, corresponde ao estado psicológico do agente; enquanto que a boa-fé objetiva se apresenta como uma regra de conduta, “um comportamento em determinada relação jurídica de cooperação” (PEREIRA, 2003, p.20).

Na boa-fé subjetiva, portanto, o indivíduo se contrapõe psicologicamente à má-fé, convencendo-se a não estar agindo de forma a prejudicar outrem na relação jurídica.

O princípio da boa-fé objetiva impõe uma regra de conduta, tratando-se de um verdadeiro controle das cláusulas e práticas abusivas em nossa sociedade. A boa-fé assume feição de uma regra ética de conduta e tem algumas funções como: fonte de novos deveres de conduta anexos à relação contratual; limitadora dos direitos subjetivos advindos da autonomia da vontade, bem como norma de interpretação (observar a real intenção do contraente) e integração do contrato.

Em outras situações, no entanto, os deveres primários já foram adimplidos e o contrato extinto, porém, remanescem os deveres laterais. Estes deveres laterais são chamados de pré-contratuais (culpa in contrahendo) ou pós-contratuais (culpa post pactum finitum). Estes consistem nos deveres de proteção, informação (esclarecimento) e lealdade (Donnini, 2007, p. 45-46).

Pelo dever de segurança cabem as contratantes garantir a integridade de bens e dos direitos do outro, em todas as circunstâncias próprias do vínculo que possam oferecer algum perigo, sendo este o modelo de contrato contemporâneo.

Conforme Ricardo Lorenzzeti (1998, p. 551) o contrato deixou de ser visualizado como um representativo de interesses antagônicos, divisando-se um affectio contractus, tornando os contraentes como se fossem parceiros.

Cláusula Aberta

As cláusulas abertas ou gerais são normas jurídicas incorporadoras de um princípio ético orientador do juiz na solução do caso concreto. Isso significa certa autonomia ao juiz quanto à solução da questão, o que tem sido objeto de crítica. É um antagonismo entre segurança, de um lado, e o anseio de justiça de outro.

Toda cláusula aberta geralmente remete o intérprete para um padrão de conduta aceito no tempo e no espaço. E esta deve localizar o julgador em quais situações os contratantes se desviaram da boa fé. As cláusulas gerais, mesmo sendo criticadas por renomados doutrinadores como Sílvio Salvo Venosa (2005, p. 379-380), têm a característica de que, mesmo com as mudanças sociais que ocorrem diariamente, não perdem a sua atualidade. Estas são passíveis de diferentes interpretações, sempre vinculadas ao padrão comportamental da época e isto torna nosso ordenamento jurídico dinâmico e situado na sociedade.

Com isso, a mais célebre das cláusulas gerais é exatamente a boa fé objetiva nos contratos, sendo esta mais útil que deficiente, uma vez que a boa fé é um fato (que é principiológico) e uma virtude (que é moral). Além disso, para amparar o magistrado há a engenhosa jurisprudência, amparada pelo texto da Lei Maior, clamando por uma sociedade justa e solidária.

Efeito da boa-fé nos contratos e Jurisprudência

A priori, a boa fé obrigacional se apresentou no direito brasileiro como modelo dogmático (puramente teórico) para concretizar-se como modelo jurídico através da atividade materializadora da jurisprudência.

Atualmente, é possível enumerar os efeitos da boa-fé nos contratos. Alguns destes efeitos serão apresentados adiante.

Supressio ou Verwirkun

O supressio é um termo empregado em Portugal para a expressão alemã verwirkun. A priori, é a perda de um direito pelo seu não exercício no tempo; um protraimento desleal do exercício de um direito.

É observável a diferença deste instituto ante a prescrição, pois enquanto esta encobre a pretensão apenas pela fluência do prazo, a supressio, depende da constatação de que o comportamento da parte não era aceitável, segundo o princípio da boa-fé.

Apesar de ser um instituto recente o Brasil, há jurisprudências aceitando-o, conforme exposto mais adiante.

Surrectio

Se no instituto supressio o não-exercício leva a perda do direito, o raciocínio é o inverso no surrectio. Este configura o surgimento do direito pelo costume ou comportamento de uma das partes (artigo 330 CC).

Vale dizer, segundo Menezes de Cordeiro (apud SAMPAIO, 2004, p. 80): “uma pessoa veria, por força da boa-fé, surgir na sua esfera uma possibilidade que de outro modo não assistiria”.

Venire Contra Factum Proprium

Esta locução de origem canônica expressa o ideal de que ninguém se beneficie de sua própria torpeza (vide artigo 973 CC). Por exemplo, o credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar e tempo diferente do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato (SAMPAIO, 2005, p. 78/79). Segundo Wieacker (apud SAMPAIO, 2005, p. 79) não se exige dolo nem culpa do credor, a proibição do venire é uma aplicação do princípio da confiança e não uma proibição de má-fé e da mentira.

Exceptio non Adimplente Contractus

Também conhecido como tu quoque. Na tradução do brocardo latino é a “exceção de contrato não cumprido”, ou seja, não se pode exigir o cumprimento do contrato aquele que não o cumpre (artigo 476 do CC). Um exemplo é o condômino que não cumpre as regras do condomínio e insiste para que outros as cumpram ou ainda o caso do menor que com dolo omite sua condição de incapaz. Este, posteriormente, não pode eximir-se do cumprimento invocando-a.

Jurisprudência

Jurisprudencialmente cabe salientar o julgamento no Supremo Tribunal Federal pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar, do Recurso Especial 207.509-SP (1999100218949), de que foi relator o Ministro Sávio de Figueiredo Teixeira. Aguiar pediu vista dos autos para examinar a questão discutida no processo e, durante seu voto, expressamente reconheceu a aplicação da teoria da supressio:

[…] Tenho como admissível a teoria da supressio, segundo a qual o comportamento da parte, que se estende por longo período de tempo ou se repete inúmeras vezes, porque incompatível com o exercício do direito, pode levar a que se reconheça a extensão desse direito, com base na boa-fé objetiva […].

É claramente perceptível, portanto, o princípio da boa-fé concretizado em nossa jurisprudência, de forma que o magistrado, ao interpretar a doutrina, acaba por sanar qualquer tipo de ausência legislativa.

Descreveu-se aqui, à vol d’oiseau, o princípio da boa-fé e seus efeitos específicos no contrato.

Historicamente, o princípio da autonomia da vontade, pautado nas idéias individualistas do século XIX foi sendo substituído pela boa-fé no processo de eticização — importante salientar que a autonomia da vontade ainda permanece fenômeno intrínseco à relação contratual.

Com a valorização da boa-fé, além de apontamento ético, observa-se sua importância nas diversas sentenças apresentadas.

Conceitualmente, este princípio possui duas formas de apresentação nas relações de cooperação. A boa-fé objetiva e a subjetiva. A primeira constitui uma autêntica cláusula geral que dispõe da necessidade das partes manterem a respectiva boa fé (a eqüidade, a razoabilidade e cooperação); sendo que a subjetiva é um convencimento individual em agir conforme o direito.

As cláusulas gerais — impulsionadas pela boa-fé, são caracterizadas pela sua interpretação múltipla, se adequando à sociedade em que vige. Exemplos de normas genéricas são os artigos 421 e 422 do CC/02.

Deste modo, percebemos três funções nítidas do conceito de boa-fé objetiva: função interpretativa (artigo 113) e de integração do negócio jurídico (artigo 421); controle dos limites do exercício do direito (artigo 187); e fonte de deveres de conduta anexos à relação contratual.

Nos contratos a boa-fé se materializa nos institutos: a) supressio (perda de um direito pelo seu não exercício no tempo); b) surrectio (surgimento do direito pelo costume); c) venire contra factum proprium (ninguém pode se benificiar de sua própria torpeza); e) exceptio non adimplente contractus (exceção de contrato não cumprido).

Em suma, cada vez mais os tribunais julgam ações baseadas na boa-fé, buscando sempre um equilíbrio: garantir a igualdade sem suprimir a liberdade e primar pela segurança sem delinqüir a moral.

Referências Bibliográficas

DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade Civil Pós-Contratual: no direito civil, no direito do consumidor, no direito do trabalho e no direito ambiental. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.

LORENZZETI, Ricardo Luis. Fundamentos do Direito Privado. Trad. Vera Maria Jacob Fradera. São Paulo: RT, 1998.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. Vol. III. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003.

SAMPAIO, Laerte Marrone de Castro. A Boa-fé Objetiva na relação contratual. Cadernos de Direito Privado, v.1. Escola Paulista da Magistratura. Barueri, SP: Manole, 2004.

SOARES, Paulo Brasil Dill. Princípios Básicos de Defesa do Consumidor: Institutos de Proteção ao Hipossuficiente. Leme/SP: LED, 2001, p. 219-220.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie.Vol. III, Série Concursos Públicos São Paulo: Editora Método, 2006.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. Vol. II, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

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