Santa Justiça

ONG reclama de romaria de santa por tribunais do Pará

Autor

1 de outubro de 2007, 17h30

A ONG Brasil para Todos entrou com Representação na Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e no Ministério Público do Pará contra a “reverência do Judiciário à Virgem de Nazaré”. O argumento é o de que, como vivemos em um Estado laico, o Judiciário não poderia fazer comemorações religiosas.

A Representação foi protocolada, nesta segunda-feira (1º/10). O Tribunal de Justiça do Pará recebe, desde 28 de setembro, visitas da imagem peregrina da santa. Em cada local, uma missa é rezada.

O que acontece em Belém é o Círio de Nazaré — a festa religiosa e cultural mais importante da cidade. Tradicionalmente, a imagem é levada da Catedral de Belém à Basílica Santuário. No Judiciário, a imagem pára de circular na quinta-feira (4/10), em missa feita no TRF-1. Depois, segue para o Tribunal de Contas do Estado, Palácio do Governo, Assembléia Legislativa, Câmara de Vereadores, hospitais e universidades, todos órgãos públicos.

A ONG argumenta que poder público não pode estabelecer cultos religiosos, conforme o artigo 19 da Constituição Federal. Também afirma que o “direito à liberdade religiosa decorre a separação entre Igreja e Estado, sem o qual esse direito jamais é pleno.” Segundo a ONG, no Brasil, a separação foi efetivada em 1890 e consagrada em todas as nossas constituições a partir de 1891. Desde então, a bandeira brasileira não ostenta mais qualquer símbolo religioso.

“Ora, poucos eventos podem imiscuir de forma tão clara o Estado com a Igreja do que a promoção pelo Estado de ações que são típicas da Igreja, que à Igreja interessam, e que à Igreja dizem respeito. Promover eventos religiosos certamente não é mais política de Estado, e não é ação lícita para o Judiciário”, sustenta a entidade.

“Os membros do poder público têm direito certo de pôr em prática suas crenças, mas as atividades religiosas e de veneração pertencem à vida privada dos cidadãos, não à sua atuação como magistrados, juízes e demais servidores públicos. O Estado e suas repartições estão acima de convicções particulares e pertencem a todos. É fácil entender que seria errado promover eventos de caráter político partidário nas repartições públicas do Judiciário porque o Estado existe para homens e mulheres de todos os partidos, independentemente de quem foi designado para cada cargo, e tais eventos poriam em suspeição a fundamental isenção do judiciário”, concluiu a ONG.

Polêmica antiga

A ONG atua para impedir que órgãos públicos ostentem símbolos religiosos. A entidade já enviou representações ao Ministério Público e petições ao Conselho Nacional de Justiça pedindo a remoção de 13 símbolos religiosos presentes em tribunais e plenários de câmaras legislativas municipais e estaduais. Entre eles, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o TJ de Santa Catarina, do Ceará e o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo.

Ainda existem símbolos religiosos no Supremo Tribunal Federal, no gabinete da presidência no Palácio do Planalto, no Plenário do Senado e da Câmara dos Deputados e no Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Sempre que surge uma Representação, como a da ONG, instala-se a polêmica. Em outubro de 2005, foi apresentada pelo juiz Roberto Arriada Lorea proposta para retirar crucifixos das salas de audiência e julgamento. O juiz argumentou que a presença do crucifixo causa constrangimento aos seguidores de outras religiões.

Em um congresso de juízes estaduais no Rio Grande do Sul, foi decidido que os crucifixos poderiam continuar adornando as paredes das salas de audiências gaúchas. A decisão foi apertada: 25 votos pela manutenção e 24 contra.

Na ocasião, os juízes entenderam que a ostentação do crucifixo “está em consonância com a fé da grande maioria da população brasileira” e que “não há registro de usuário da Justiça que tenha acusado constrangimento em razão da presença do símbolo religioso em uma sala de audiência”.

De maneira geral, juízes podem optar livremente pela permanência de crucifixos nas paredes de suas salas de audiência. No Supremo Tribunal Federal, dois ministros já se manifestaram contra a manutenção do crucifixo localizado no plenário: Celso de Mello e Marco Aurélio.

Embora manifestem respeito à Igreja Católica, os dois ministros entendem que, desde que Igreja e Estado se separaram, não faz sentido projetar a idéia de que um tribunal que se pretende neutro em relação aos movimentos e manifestações sociais do país projete a noção de que se subordina a algum deles.

No mês de maio desse ano, o Conselho Nacional de Justiça afirmou que o uso de símbolos religiosos em órgãos da Justiça não fere o princípio de laicidade do Estado. O entendimento ficou expresso no julgamento de quatro Pedidos de Providência que questionavam a presença de crucifixos em dependências de órgãos do Judiciário.


Para a advogada Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, professora de Direito Constitucional e mestre em Direito e Estado pela USP, manter símbolos religiosos nas salas de Tribunais da Justiça, “colocam em preocupante situação de lesividade a separação Estado-Igreja”. De acordo com a advogada, o Estado não pode produzir qualquer promoção religiosa, simplesmente porque não lhe cabe esse papel. “Não se enquadra às funções das autoridades estatais a propagação de doutrinas e dogmas ou o desempenho do papel de ‘garoto propaganda’ ou de líder espiritual de seus cidadãos”, afirma.

Leia a Representação

ILUSTRÍSSIMO SENHOR DOUTOR MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL DO PARÁ

ROBERTO ALVES DE ALMEIDA, brasileiro, servidor público, casado, portador da cédula de identidade RG XXXX, inscrito no CPF/MF sob nº XXXX, domiciliado no Distrito Federal, onde reside na XXX, XXX, XXX, XXXX, CEP XXXX, por seu advogado que esta subscreve (doc. nº 1), vem respeitosamente, apresentar a presente

REPRESENTAÇÃO

contra a

EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ, DOUTORA ALBANIRA LOBATO MEMERGUY,

com fundamento no Art. 5, XXXIV, a, da Constituição Federal, pelas razões de fato e de direito que passa a expor.

1) O Requerente tomou conhecimento, por intermédio do sítio daquele tribunal na internet, que está em curso desde o dia 28 de setembro, e prossegue até 4 de outubro, a “Reverência do Judiciário à Virgem de Nazaré”, nas palavras do próprio Jornal do Judiciário (cf. http://www.tj.pa.gov.br), que constitui de visita da imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré (doc. nº 2), incluindo extensa programação religiosa, o que inclui celebração de missa nas dependências do Tribunal. Ainda segundo o sítio, “a direção do Tribunal de Justiça vai sortear, entre os servidores que participaram das peregrinações nos prédios do Judiciário, a réplica da imagem referenciada durante a programação. A imagem peregrina de Nossa Senhora, que vem cumprindo uma série de visitações em diversas instituições públicas, será trazida ao Judiciário pela Diretoria da Festa de Nazaré”.

2) Com respeito devido àquela autoridade judiciária, exorbitou e extrapolou ela de suas funções e atribuições e, ao fazê-lo, infringiu um princípio fundamental de Administração Pública e, mais importante, disposição expressa de nossa própria Constituição, conforme será demonstrado.

3) A foto ao lado foi extraída do sítio eletrônico, do Tribunal de Justiça do Estado do Pará, que mostra o padre Alberto Brescioni ministrando a um contrito grupo de magistrados e servidores.

4) Um dos fundamentos norteadores da Constituição é o princípio da igualdade, do qual decorre princípio da impessoalidade da administração pública, expresso no art. 37 da CF, que assegura que a neutralidade tem que prevalecer em todos os comportamentos da administração pública e veda a adoção de comportamento administrativo motivado pelo partidarismo. Custeada com dinheiro público, a atividade da Administração Pública jamais poderá ser apropriada, para quaisquer fins, por aquele que, em decorrência do exercício funcional, se viu na condição de executá-la, independentemente da popularidade de suas ações ou da aprovação popular. Mas os eventos religiosos são partidários por natureza: por mais que sejam nobres, populares ou tradicionais, eles representam a idiossincrasia dos seus fiéis, e excluem todos os demais, criando cidadãos de segunda categoria. Nenhuma ação religiosa confessional pode ser neutra, pois ela necessariamente acontece em detrimento de outras confissões.

O mesmo artigo também estabelece o princípio da legalidade da administração pública, segundo o qual os poderes públicos somente podem praticar os atos determinados pela lei. E não há nenhuma lei, norma, determinação ou política pública que peça ao Judiciário que efetue comemorações religiosas.

Na época do Brasil Império, o Estado possuía uma religião oficial e os assuntos de governo se misturavam com disposições religiosas. Não havia liberdade de culto, e a emissão de certidões de nascimento, casamento e óbito era função eclesiástica. No entanto, esse estado de coisas é frontalmente incompatível com os ideais republicanos. A liberdade religiosa é uma das diversas liberdades fundamentais nas quais se apóiam as democracias modernas. Para Rui Barbosa, “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa.” O constitucionalista português Jorge Miranda afirma que a liberdade religiosa está “no cerne da problemática dos direitos humanos fundamentais, e não existe plena liberdade cultural nem plena liberdade política sem essa liberdade pública, ou direito fundamental”.


Do direito à liberdade religiosa decorre a separação entre Igreja e Estado, sem o qual esse direito jamais é pleno. No Brasil, a separação foi efetivada em 1890 e consagrada em todas as nossas constituições a partir de 1891. Desde então, a bandeira brasileira não ostenta mais a cruz.

A atual Constituição Cidadã de 1988, em seu art. 19, proíbe ao poder público “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Ora, poucos eventos podem imiscuir de forma tão clara o Estado com a Igreja do que a promoção pelo Estado de ações que são típicas da Igreja, que à Igreja interessam, e que à Igreja dizem respeito. Promover eventos religiosos certamente não é mais política de Estado, e não é ação lícita para o Judiciário.

Segundo admite a notícia publicada pela Seção de Comunicação Social da Justiça Federal – Seção Judiciária do Pará, a programação é de fato “religiosa” – como não poderia deixar de ser – e não de outra natureza. No mesmo sentido foi a afirmação do diretor do Foro da seção Judiciária, o exmo. juiz federal dr. Daniel Santos Rocha Sobral: “a Justiça Federal no Pará pretende tornar setembro e outubro meses especiais de solidariedade e fé”. Ou seja, o objetivo é explicitamente promover a fé. Não uma fé qualquer, subjetiva, geral, indistinta, mas uma fé confessional específica, como deixa clara a natureza do evento.

Fato agravante é o caráter inequivocamente ostensivo do evento: uma saudação a cargo da banda de música da Polícia Militar, chuva de papel picado, cânticos na entrada, coral durante o evento, “Ave Maria” de Gounod na saída. Ainda mais característica é a celebração de uma missa por um padre católico no auditório das instalações da Justiça. A cena de uma missa, cânticos religiosos, trânsito de imagens de santos, seria perfeitamente bem ambientada dentro de uma igreja ou no tempo do Império, mas agride violentamente qualquer pretensão de laicidade do Estado. Um estado laico é por definição neutro em matéria religiosa, e está absolutamente impedido de mostrar favorecimento a qualquer pertença religiosa, sob pena de atentar contra a inviolabilidade da liberdade de consciência e crença, cf. art. 5o da CF, ao dar claros sinais de favorecimento, aprovação e aliança a uma determinada crença, com a chancela do Estado e também do Judiciário.

1) Em uma democracia, a escolha da maioria se reflete sempre na liberdade da escolha dos governantes, e jamais no trato com as minorias e outros grupos desfavorecidos. Uma das características importantes do Estado de Direito se reflete justamente na defesa intransigente dos direitos individuais, e da Lei Maior a despeito da vontade da maioria. Do contrário não deveríamos nos preocupar com idosos, mulheres, negros, crianças, pobres, indígenas, portadores de deficiências físicas, etc. Aliás, poucas são as pessoas que não acabam pertencendo a algum tipo de grupo minoritário e cujos direitos devem ser respeitados. O trato democrático, assim como nossa Constituição, exige que a lei seja igual para todos e que se elimine todo tipo de favorecimento. O tamanho da maioria não importa ao estrito cumprimento da lei e dos seus preceitos, em especial dos preceitos constitucionais.

2) Cabe ainda notar que não se trata de coibir direitos de culto, uma vez que deles o Estado não é titular. Não se busca também impedir qualquer manifestação religiosa particular, seja individual ou coletiva, que é protegida pela lei. Nas palavras de Walter Ceneviva, “não se trata de afastar de cada um o sentimento religioso, mas o de não o vincular ao Estado”. Os membros do poder público têm direito certo de pôr em prática suas crenças, mas as atividades religiosas e de veneração pertencem à vida privada dos cidadãos, não à sua atuação como magistrados, juízes e demais servidores públicos. O Estado e suas repartições estão acima de convicções particulares e pertencem a todos. É fácil entender que seria errado promover eventos de caráter político partidário nas repartições públicas do Judiciário porque o Estado existe para homens e mulheres de todos os partidos, independentemente de quem foi designado para cada cargo, e tais eventos poriam em suspeição a fundamental isenção do judiciário. Da mesma maneira acontece com os eventos religiosos. Resta claro que celebração de missas, peregrinação de imagens religiosas, e até sorteio de imagens pelos próprios membros do tribunal são atitudes inequívocas de promoção de uma crença religiosa, exatamente tais e quais acontecem no seio de uma igreja. O absurdo e a inconstitucionalidade não seriam menores caso transcorresse um júri dentro de uma igreja.

3) Considerando que o evento que se pretende impugnar já está em curso, e o pedido ora formulado poderá em breve tornar-se-á ineficaz, requer, diante do periculum in mora e da evidência do fumus boni júris, que Vossa Excelência determine sua suspensão imediata.

Belém, 1o de Outubro de 2007

_____________________

Roberto Alves de Almeida

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!