Trabalho escravo

Explorador vai para lista negra do trabalho mesmo sem condenação criminal

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21 de novembro de 2007, 23h02

Desde que foi editado o cadastro de empregadores flagrados na exploração de trabalho em condições análogas à de escravo, a tradicionalmente conhecida “Lista Suja”, um dos argumentos mais comuns de que lançam mão os infratores nela incluídos reporta-se à ausência de condenação prévia na órbita penal.

A alegação não prospera, pois as instâncias penal e administrativa não se comunicam para este efeito. Aliás, se enfrentarmos a questão de modo mais específico, veremos que essa incomunicabilidade obedece a razões lógicas concernentes aos distintos princípios que regem o Direito Administrativo e o Direito Processual Penal. É o que se busca demonstrar nas linhas seguintes.

No que se refere ao Direito Administrativo, temos que as ações do Ministério do Trabalho e Emprego dirigidas à repressão do trabalho escravo (ainda uma realidade renitente em nosso país) costumam gerar autos de infração por violação à legislação trabalhista, vide o exemplo de descontar ilegalmente do salário do trabalhador o valor de mercadorias compradas na cantina ou armazém do empregador ou preposto (o tradicional “gato” no caso do trabalho escravo), bem como o de não oferecer água potável aos trabalhadores ou alojá-los em barracos de lona sem instalações sanitárias.

Esses autos de infração irão gerar processos administrativos cujo resultado final, acaso confirme as infrações, determinará a aplicação da multa correspondente ao infrator e possibilitará a inclusão do seu nome no cadastro instituído pela Portaria 540/2004, a citada “Lista Suja” do trabalho escravo.

Essa inclusão prescinde da condenação penal, haja vista que a Administração é regida por princípios próprios, especialmente pelos princípios da publicidade e da eficiência. No caso, a informação de que uma operação do Ministério do Trabalho e Emprego detectou trabalho escravo em determinado local é uma informação pública, ou seja, não existe qualquer dispositivo legal que imponha sigilo sobre o nome do empregador flagrado na exploração de trabalho escravo. Por igual motivo, a informação sobre o resultado do processo administrativo que condenou o infrator ao pagamento de multa também é pública.

A questão que se pode apontar seria: pode a Administração segmentar essa informação em virtude da intensidade e da gravidade das infrações cometidas e criar um cadastro para tanto? É evidente que sim, pois a eficiência das ações de controle da Administração com vistas à erradicação do trabalho escravo depende logicamente de uma informação que seja especificamente adstrita ao trabalho escravo. Do contrário, a Administração enfrentaria o risco permanente de, por exemplo, fiscalizar e punir um determinado sujeito pela exploração de trabalho escravo e, ao mesmo tempo, financiar-lhe a produção com empréstimos ou subsídios concedidos com dinheiro público. Ora, seria um contrasenso e uma violação direta à função social da propriedade, a qual não é cumprida quando não são respeitados os patamares mínimos da legislação trabalhista, ex vi do artigo 186, inciso III, da Constituição Federal.

Todo o procedimento para inclusão do nome de um infrator na “Lista Suja” encontra regência nas normas administrativas que a regulam e nas normas legais que permitiram à Administração editá-la (vide as Convenções 29 e 105 da OIT, bem como o Pacto de San Jose da Costa Rica, que autorizam o país a adotar as medidas cabíveis, legislativas ou não, necessárias à erradicação do trabalho escravo).

Em momento algum se cogita e nem se deve fazê-lo, da necessidade de condenação penal prévia como pressuposto ou condição para a inclusão de um nome no cadastro. Aliás, exigir a condenação penal prévia implicaria num cadastro permanentemente desatualizado, haja vista que o tempo necessário à tramitação de um processo penal é altamente variável, sendo inócua a inclusão do nome de um infrator após alguns anos, hipótese em que muitas vezes já terá repassado a propriedade ou mesmo transferido seu negócio para outrem.

Ainda é importante assinalar que todo o processo penal que pode levar à condenação do réu é regido por um princípio que presume a sua inocência e defende o seu status libertatis. Faz sentido que assim seja, pois o bem jurídico em jogo nesse caso refere-se apenas à liberdade do réu. A própria exigência, no que concerne à instrução probatória no processo penal será, por isso mesmo, mais robusta, cabendo ao acusador fazer prova inconteste da materialidade e da autoria do crime.

No caso da esfera administrativa, a ótica é um tanto diversa. O interesse em jogo extrapola a discussão sobre a liberdade de um único indivíduo e diz respeito à coletividade como destinatária do papel exercido pelo Estado. A condenação administrativa deve, tal qual a penal, ser precedida de contraditório e ampla defesa nos termos da lei, o que não impede a incidência de princípios como o reconhecimento do atributo concernente à presunção de veracidade que cerca os atos administrativos. No caso específico da “Lista Suja”, a sociedade possui interesse em que aqueles que tenham explorado trabalho escravo tenham seus nomes divulgados, pois certamente as pessoas físicas ou jurídicas têm a prerrogativa de não quererem aliar-se ou comprar produtos de pessoas que foram flagradas e condenadas em condutas que configuram trabalho escravo.

A incomunicabilidade entre as instâncias administrativa e criminal ― no que tange à “Lista Suja” do trabalho escravo ― tem sido largamente reconhecida pela jurisprudência. Vejamos o acórdão relativo ao Recurso Ordinário 00234-2006-811-10-00-5, apreciado pelo TRT da 10ª Região em 18 de abril de 2007:

“A distinção entre as esferas penal e administrativa permite, de outra parte, que medidas desta natureza sejam adotadas ainda que não tenha pesado sobre os autores condenação criminal transitada em julgado que reconheça a redução de trabalhadores à condição análoga à de escravo.”

No mesmo sentido, outro acórdão do mesmo TRT da 10ª Região (RO: 01522-2005-811-10-00-6), julgado em 04.10.2006, já havia determinado:

“(…) o ato administrativo que incluiu o nome do autor no cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas às de escravo goza de presunção de legitimidade e de veracidade, inserindo-se em esfera distinta da penal que, por sua vez, visa a detectar o cometimento de delito e a imputar pena privativa ou restritiva de liberdade, ou prestação de serviços à comunidade. Vale dizer, o poder de polícia judiciária (direito penal) incide sobre a pessoa do administrado, enquanto o poder de polícia administrativa incide sobre seus bens, direitos ou atividades, sendo, portanto, independentes.”

Lançadas as presentes considerações, parece-nos claro que, a despeito de outras discussões que podem ser levantadas sobre a “Lista Suja”, inexiste viabilidade jurídica para o argumento daqueles que desejam vincular a inclusão do nome do infrator à prévia existência de condenação criminal.

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