Estado omisso

Rio Grande do Sul não aceita compensar precatório com tributo

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9 de novembro de 2007, 10h31

A dívida do estado do Rio Grande do Sul com os precatórios é, atualmente, de R$ 3,3 bilhões. Se forem considerados os novos precatórios vencidos e atualizando-se o valor, chega-se a uma dívida de mais de R$ 5 bilhões, já que nos últimos 10 anos o estado conseguiu pagar menos de R$ 400 milhões — valor inferior à correção da dívida de um único ano. Isso sem contar o número de ações contra o estado, que todo dia aportam no Poder Judiciário, o que certamente fará aumentar o número de precatórios, ocasionando conseqüente aumento da dívida.

Como se vê — e isso é fato incontroverso — os precatórios definitivamente não são pagos, ficando, os credores, sucumbindo diante do calote do Poder Público. Para eles, a melhor saída é vender seus créditos, para que possam receber, em vida, algum valor e, com isso, ter um pouco de dignidade (consideremos que a maioria esmagadora dos credores desses precatórios são pessoas idosas, conhecidas popularmente como “tricoteiras”, em alusão às folclóricas avós adeptas da arte de tricotar).

Diante da cruel carga tributária imposta em nosso país, que acaba por inviabilizar o seu crescimento econômico, as empresas gaúchas passaram a adquirir esses precatórios dos credores originários, utilizando-os como moeda de pagamento de débitos tributários — isso porque os precatórios são rubricas devidas justamente pelo credor tributário (estado do RS), o que permite a sua utilização na compensação com tributos.

E essa compensação é direito previsto na Constituição Federal (artigo 78, parágrafo 2º do ADCT), lei máxima de nosso país, insuperável pelas demais.

Contudo, há um problema de ordem formal que está impedindo a realização do acerto de contas: a inexistência de lei estadual “regulamentando” a compensação de precatórios com débitos tributários.

O estado do Rio Grande do Sul tem recebido inúmeras petições de contribuintes requerendo a compensação de seus precatórios com seus débitos tributários, mas não os aceita.

Os contribuintes, então, buscam no Poder Judiciário a autorização para essa compensação. Entretanto, embora grande parte dos magistrados aceite essa operação, ainda há uma parcela que entende não ser possível o acerto de contas, fundamentando que seria necessária, para a efetivação dessa compensação, a existência de lei “do próprio estado devedor dos precatórios” regulamentando a matéria. Ou seja, esta pequena parcela coloca esse direito, previsto na Constituição Federal, a depender de ato daquele contra o qual é dirigida essa previsão constitucional, o que acaba por retirar a eficácia dessa previsão.

É como se a regra não existisse. É permitir que o infrator se beneficie de seu próprio ato ilícito, situação que é repudiada em todos os ramos do Direito. Assim, basta ao infrator (estado do Rio Grande do Sul) manter-se omisso — como vem fazendo — para continuar a se beneficiar da “dita” falta de eficácia da norma constitucional.

Ora, a não-aceitação da compensação faz com que o Estado do RS veja o não-pagamento dos precatórios como um grande investimento, pois poderá cobrar seus créditos tranqüilamente sem ter de pagar seus débitos.

A compensação acabaria com essa mamata do Poder Público Estadual, pois haveria um confronto de créditos, de maneira que o Estado somente receberia seus tributos se pagasse suas dívidas de precatórios.

É bom lembrar que essa tal lei estadual — prevendo a compensação de créditos tributários com créditos de precatórios — já existia (Lei 11.472/00), tendo sido revogada pelo governador Rigotto na calada da noite do último dia do ano de 2004 (Lei 12.209/04). Atualmente, não precisamos nem dizer que o estado do Rio Grande do Sul não faz o menor esforço para cumprir sua obrigação legislativa, não havendo qualquer rastro de movimento por parte do Legislativo gaúcho no sentido de votar lei regulamentando essa compensação.

Por razões como essas é que se clama pela providência do Poder Judiciário, que tem a função de controle sobre os atos dos outros dois poderes, de forma a evitar atitudes autoritárias de um só poder, o que transformaria a democracia em tirania.

O papel do Poder Judiciário é, talvez, o mais importante dentro de uma sociedade democrática, pois ele tem o controle sobre a melhor aplicação das leis, se isso realmente expressa a vontade do povo, não os caprichos de reis, ditadores, militares, líderes religiosos ou partidos políticos autonomeados; isso porque o Estado de Direito, nascido da democracia, tem como maior característica (e razão de existir) o fato de que TODOS, indistintamente, estão sujeitos aos ditames da lei (e a lei maior é a Constituição), justamente para que se evitem favorecimentos.

Assim, se a Fazenda Publica está sujeita à lei maior (Constituição Federal), e está prevê que se ela não quitar os precatórios que deve, não poderá cobrar os tributos a que tem direito, por razões democráticas aquela não poderá se afastar da ordem legal, seja diretamente (não cumprindo essa ordem), seja indiretamente (criando mecanismos para o não cumprimento — como no caso dos precatórios, em que não faz o menor esforço para editar lei prevendo a sua utilização em compensação com tributos).

Não se pode esquecer que a omissão do Poder Legislativo dá ao cidadão o direito injuncional, de maneira que o Poder Judiciário supra essa omissão, uma vez que a falta de norma regulamentadora (no caso, lei estadual) está tornando inviável o exercício de direito constitucionalmente garantido (compensação do artigo 78, parágrafo 2º, do ADCT), conforme dispõe o artigo 5º, LXXI, da Constituição Federal de 1988.

Quanto a isso, informamos que já existe Mandado de Injunção em trâmite no Poder Judiciário Gaúcho, dirigido contra o governador do Rio Grande do Sul e contra o presidente da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, mediante o qual se busca a determinação a essas autoridades que editem norma faltante e dêem início imediato ao processo legislativo, de forma a regulamentar e operacionalizar a compensação de precatórios da Administração Direta e Indireta do Estado, inclusive autarquias, com créditos tributários ou não-tributários que estejam regularmente inscritos em Dívida Ativa Estadual.

No caso, como o Rio Grande do Sul não se mexe para editar lei regulamentando a compensação de créditos tributários com créditos de precatórios, cabe ao Poder Judiciário determinar, por meio de Mandado de Injunção, que ele o faça; ou, caso não exista posição definitiva nesse remédio constitucional, então que se aplique o direito a ser dito nesse remédio nos casos concretos, de maneira a se evitar a perda da eficácia da garantia constitucional à compensação.

E isso tudo tem uma razão de ser: evitar que o cidadão deixe de exercer seus direitos previstos na Carta Maior por ausência de mera “forma”. Com isso, a Constituição Federal escolta o que mais interessa, ou seja, o direito na sua essência.

Oportuno transcrever, nesse sentido, as bem lançadas conclusões do Eminente Des. Carlos Roberto Lofego Canibal, da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em recente julgamento da Apelação Cível 70019565365, de 13/06/2007:

“(…)

Aliás, aqui cabe uma referência oportuna. Se o Estado não edita a lei que rege a compensação, é o Judiciário que, em cada caso concreto, deve determinar a solução para a questão levada a juízo.

Vale dizer, a decisão judicial que impõe a compensação tem natureza injuncional, semelhante ao provimento de natureza constitucional do Mandado de Injunção previsto no art. 5º, LXXI da CF.

(…)” (grifo nosso)

E esse raciocínio não se faz somente em relação ao artigo 78, parágrafo 2º, do ADCT (que positiva a compensação no caso específico dos precatórios), mas também quanto ao artigo 170, caput, do Código Tributário Nacional, que é de hierarquia superior à lei estadual.

Assim, deixar a previsão de compensação do artigo 170, caput, do CTN a depender de “autorização” de lei estadual é, em verdade, inverter a ordem hierárquica normativa, é colocar a lei estadual à frente da Lei Complementar Federal, contrariando o disposto no artigo 146, III, “b”, da Constituição Federal de 1988, que diz caber à Lei Complementar dispor sobre “crédito tributário” (no caso, compensação é uma modalidade de extinção desse crédito).

Por isso, cabe ao Poder Judiciário usar de sua prerrogativa natural e dar eficácia ao direito constitucional de compensação, realizando sua função injuncional e não deixando o cidadão sem amparo, até porque, como já dito, trata-se de instituto cuja “REGRA” está prevista expressamente na Constituição Federal, no artigo 78, parágrafo 2º, do ADCT.

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