Mudança perigosa

Judiciário deve fazer justiça, e não caridade

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28 de março de 2007, 0h02

Vivemos momentos de expectativa. Forte seguimento, movendo-se orquestradamente, vem revolucionando o direito processual civil; a pretexto de aligeirar, agridem-no. Mais do que uma reforma ou modernização, matam princípios, alteram lições tradicionais e salutares.

Aprendeu-se que o Estado/ juiz, imparcial, isento, agia se provocado no limite do pedido, sob pena de decisões irregulares: “ultra, extra, infra, citra petita”; sempre se dispensou tratamento isonômico às partes. A sentença não decidia totalmente, mas apenas nos limites do pedido; não podia dar mais ou diversamente. Assegurava-se ao juiz, na busca da verdade real e através de decisão motivada, até determinar provas, sem preponderar; competia-lhe julgar segundo o alegado e provado pelas partes, evitando dar mão forte a parte fraca. A solução haveria de ser justa, dentro da realidade processual, assegurada a livre apreciação da prova, com convencimento motivado, persuasão racional. Enfim, decisão obrigatoriamente de acordo com as provas dos autos, afastados os critérios pessoais de justiça. Quem alegava tinha o ônus da prova.

Esquece-se tudo isso! Sob o argumento de que a fase é do ingresso na modernidade projetam, e nos impõem, reformas processuais reforçando desmedidamente os poderes do juiz, na condução da instrução, na direção da causa. Afirmam que juiz tem que ter plena liberdade de decisão, sequer sendo obrigado a enfrentar todas as questões debatidas. Já se admite que, para equilibrar a força dos litigantes, o juiz pode interferir em favor do mais fraco e, com isso, permitir acesso a ordem jurídica justa, possibilitando que vença quem tenha razão.

Reformas alavancadas por renomados processualistas que, no entanto, não tiveram o aprendizado dos balcões, desabituados a “requerer”, acostumados a decidir e opinar, reformistas que não experimentaram a aflição do cliente pobre, reformistas que só sabem da assistência judiciária (Lei 1.060/50) por ouvir dizer; pareceristas milionários, expectadores privilegiados, que não se afligem com a sorte dos litigantes! Esse é o perfil da maioria dos reformistas, daqueles que nos impõem as alterações.

Enquanto isso o advogado, embora autoridade nesse assunto, continua sendo alfinetado pelas decisões absurdas do dia a dia, como simples cobaia dessas experiências.

É preciso acordar! É necessário mobilizar-se contra a preocupante onda que vem transformando o advogado em peça meramente decorativa no processo. A deliberada concentração de ilimitados poderes no juiz não pode continuar; é o arbítrio se aproximando a galope. Basta ver a história: a catástrofe se avizinha.

Sob a míope alegação de que o problema está na quantidade de recursos, os defensores da “modernização” querem limitar as discussões ao tribunal de justiça. Se fossem realmente advogados militantes saberiam que, na prática, isso já vem acontecendo. Infeliz daquele que, pelo Recurso Especial ou Recuso Extraordinário, necessite reformar acórdão; impossível superar as armadilhas postas no caminho do recorrente: juízo de admissibilidade, prequestionamento, etc.

Deve-se ter todo o cuidado com a modernidade. É inaceitável autorizar o juiz a ter iniciativa sistemática da prova, substituindo a parte, socorrendo a mais fraca, mesmo a pretexto de equilibrar forças e “fazer justiça”.

Que o magistrado continue limitado a realizar, de maneira correta e rápida a sua atividade jurisdicional, assegurando igualdade real através dos dispositivos legais existentes (litigância de má-fé, etc) e não interferindo no processo, na prova ou no resultado; muito faria decidindo após o efetivo exame e leitura integral do processo, analisando todas as questões debatidas. Esse é, data máxima vênia, o verdadeiro juiz moderno, que realiza o que dele se espera: julga ligeiro e criteriosamente, permitindo que vença quem melhor prova produziu, pouco importando seja o mais forte ou o mais fraco.

Tratar desigualmente os desiguais não é postura para o direito, que não faz caridade e sim justiça. É inaceitável a decantada dimensão dinâmica do princípio da isonomia, que autoriza o juiz a criar mecanismos para igualar as partes, socorrer o mais debilitado, atuando de forma concreta e efetiva para manter o equilíbrio, deixando de ser passivo para evitar prejuízo ao mais fraco.

Se assim passar a agir, como querem os catedráticos modernistas, impossível será manter a imparcialidade, a isenção e a independência. “Vestiu a camisa do time não pode ficar com o apito”, é o óbvio. Às partes compete a produção da prova e a escolha dos seus patronos, sem qualquer ingerência do juiz, que deverá permanecer inerte quanto a isso, mas não quanto a eventual alienação e despreparo da parte e seu patrono; se debilitado, que se lhe dê curador, que o declare indefeso.

O objetivo é, realmente, que se faça justiça e vença o detentor do melhor direito, mas não a qualquer custo, e sim respeitada a lei, cada um no seu devido lugar: jamais se permita ao advogado julgar! Jamais se permita ao juiz advogar! Não convence a tese de que, para atender aos fins sociais do processo, o juiz não pode ser neutro, embora deva permanecer imparcial. Seria o mesmo que, respeitadas as diferenças com o personagem da estória, permitir roubar dos ricos para dar aos pobres. Roubo é roubo! Injustiça é injustiça!

Jamais o papel do juiz, ativo, participativo, pode ser desenvolvido para suprir as deficiências da parte mais fraca, igualando para que haja paridade de armas; jamais o magistrado poderá intervir em razão dos seus poderes, “assistindo” o mais frágil na relação jurídica deduzida em juízo.

Deve ele permanecer eqüidistante, proferindo sentença justa, após profundo exame da prova, apenas excepcionalmente adotando medidas relacionadas com a instrução da causa e isso exclusivamente quando ocorrer a inércia absoluta da parte; ao contrário certamente sua postura será autoritária, arbitrária, com ingerência direta na lide. Ainda assim a iniciativa da prova, de oficio, só será possível com base nas notícias que as partes trouxerem para o processo. Se determinar prova em favor do mais fraco, a ele estará protegendo e, em conseqüência, sendo injusto com o mais forte.

Função do juiz não é essa, é julgar. O ônus da prova está distribuído e garantido no Código de Processo Civil, não tendo sentido o juiz interferir. Afinal, o que o juiz poderá fazer que o próprio advogado da parte também não possa?

O Ministro Marco Aurélio do STF se disse assustado e constrangido por ter de corrigir votos e manifestações dos tribunais inferiores, com explícita violação dos princípios e fundamentos constitucionais. Sinal que, antes de tudo, deve haver aprimoramento na atividade jurisdicional, propriamente dita, para diminuir as imperfeições e os defeitos também das decisões colegiadas e atingir os níveis de acerto, de equilíbrio e justiça, desejados.

Existe reformista que considera o desnível entre os advogados como uma das razões de resultados injustos, por isso autoriza o juiz a compensar e equilibrar, corrigindo essa situação. No entanto, mostra-se razoável manter o juiz no seu lugar e, em casos de evidente desequilíbrio, que dê à parte indefesa um curador, um advogado nomeado, recomendando a OAB a punição do causídico desidioso, despreparado.

Devem ser mantidos os poderes do juiz, apenas no exercício da presidência e decisão do processo, sob pena de, atendidos os reformistas, transformá-lo no único senhor da causa, “mini deus”. Afinal, de ninguém é desconhecido que, em razão da grande carga de trabalho, nem consegue realizar (a contento) o que a lei lhes comete!

Ademais “embora se acene para concursos democráticos de severidade reconhecida, admite-se o despreparo no universo de candidatos”; impossível assegurar que todos os aprovados estejam adequadamente preparados. Tal fato somado a falibilidade humana, permite conjecturar que “poder demais possibilita o arbítrio, o autoritarismo”.

Para as partes, com ou sem a ingerência do juiz na formação da prova, as decisões judiciais continuarão sendo justas ou injustas, dependendo de terem vencido ou perdido a ação. O perdedor terá sempre razões de sobra para considerar-se injustiçado. Conceito de justiça foi, é e será, sempre, muito relativo. Aquilo que o juiz de primeiro grau acha justo, o de segundo acha injusto, tanto que reforma sua decisão; o que o tribunal acha justo o STF critica e reforma.

Com a defendida ingerência direta do juiz na formação da prova não será diferente. Ainda que o juiz venha participar ativamente do processo, determinando a produção das provas consideradas necessárias, sua sentença será justa apenas nos limites da prova produzida, nunca na extensão real dos fatos, nem sempre anotados dos autos.

Mesmo “fiscalizados” processualmente, pela lei, a quantidade de equívocos e desacertos em decisões judiciais é alarmante, imagine então se o juiz puder tudo, como se deseja. Dias atrás membro da Comissão Prerrogativa da OAB teve a coragem de usar a sustentação oral para fazer justo desabafo. Falou aquilo que todos sabemos, mas nem sempre temos a coragem de dizer, que o poder judiciário é feito loteria: jamais se promete ao jurisdicionado o sucesso da demanda, mesmo diante de direito liquido e certo.

Vou ganhar? Quem sabe?! A lei o protege, mas, pode ser que sim, pode ser que não. Afinal, conforme Sergio Pitombo, o direito é o que a gente pede e o juiz dá. Mesmo sem os poderes e a liberdade desejadas pelos reformistas, em favor do juiz, temos visto toda a sorte de exageros, sob o manto do “direito social, direito processual civil social”. Juízes dando o que não foi pedido, dando além do pedido, decidindo sem ler o processo! (por exemplo, Apelação Cível 1.061.760-4/01)+

E o advogado? E o preceito constitucional? Sem advogado não se faz justiça? A mudança é perigosa: exige uma atenção especial, sobretudo dos órgãos de classe que representam os advogados.

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