Biografia não autorizada

Considerações sobre liberdade de expressão e direito à intimidade

Autor

  • Sonia Maria D’Elboux

    é advogada especializada em Propriedade Intelectual Direitos da Personalidade e da Comunicação Social; Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Propriedade Imaterial da ESA - Escola Superior de Advocacia da OAB/SP; Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP com a defesa da tese: A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade: tensões e limites.

10 de maio de 2007, 18h08

Desde o dia 27 de abril de 2007, quando foi firmado acordo judicial na 20ª. Vara Criminal de São Paulo, prevendo a interrupção definitiva da publicação e comercialização da biografia Roberto Carlos em Detalhes, de autoria do historiador e jornalista Paulo César de Araújo e publicada pela Editora Planeta, teve início uma acalorada polêmica acerca do conflito entre a liberdade de expressão e o direito à intimidade.

Vários órgãos de imprensa vêm noticiando que Roberto Carlos venceu a ação judicial, mas o fato é que o referido acordo é uma forma de autocomposição, dando força de sentença a uma solução que as próprias partes encontraram para dar fim ao litígio. Isso significa que o ato resolutório da lide não decorreu do julgamento do caso pelo Estado e sim da vontade das próprias partes.

Uma decisão judicial (antecipação de tutela) de 22 de fevereiro de 2007, da 20ª Vara Cível do Rio de Janeiro, já havia proibido a publicação, distribuição e comercialização do livro em todo o território nacional, mas o que tornou essa proibição definitiva foi o acordo judicial.

Infelizmente, não saberemos como este caso tão emblemático seria julgado pelo Judiciário (onde levaria no mínimo cinco anos para percorrer todas as instâncias), mas ações judiciais dessa natureza preocupam autores e editoras, fazendo com que o gênero literário biografia seja considerado um investimento de alto risco, com exceção das autobiografias – freqüentemente compostas com o auxílio de Ghost Writers – que tendem a dar uma visão parcial e excessivamente elogiosa do biografado.

A Constituição Federal, ao mesmo tempo em que assegurou a liberdade de manifestação do pensamento, da atividade intelectual e de comunicação (fundada no princípio democrático), protegeu igualmente no rol dos direitos fundamentais, os direitos da personalidade[1] (assentados no princípio geral de proteção à dignidade da pessoa humana), sem priorizar hierarquicamente quaisquer deles.

Assim, a solução de conflitos entre esses princípios constitucionais deve ser encontrada mediante a aplicação da técnica da ponderação dos direitos em confronto, a partir de uma análise prévia dos limites de cada um deles (posto que nem mesmo os direitos fundamentais são ilimitados). Partindo-se desses limites é que a ponderação se torna possível naquelas circunstâncias específicas (não existe prevalência a priori de um direito sobre o outro), seguindo princípios de proporcionalidade, adequação, necessidade e razoabilidade, de forma a atingir um ponto de equilíbrio.

Há casos em que, diante de relevante interesse público, o direito de informação (compreendendo o direito individual de informar e o coletivo de ser informado), se sobrepõe aos direitos da personalidade; em outras situações (como a invasão injustificada de intimidade alheia), os direitos da personalidade é que deverão prevalecer. Por exemplo, há um evidente interesse público no alcoolismo de um candidato a cargo público, mas nenhum interesse público (que não se confunde com a mera curiosidade popular) na homossexualidade de um galã de novela…

O Código Civil de 2002[2] traz a primeira normatização infra-constitucional dos direitos da personalidade, no Capítulo II do Título I, artigos 11 a 21. Critica-se muito esse capítulo, por não ter incluído os limites aos direitos da personalidade, sobretudo aqueles decorrentes da liberdade de informação, amplamente consagrados pela doutrina e pela jurisprudência. Essa ausência, no entanto, não significa que esses limites tenham deixado de existir.

Nesse sentido, os enunciados 139 e 279 do Conselho de Justiça Federal elaborados durante a III e a IV Jornada de Direito Civil[3], respectivamente, deram aos artigos 11 e 20 do Código Civil interpretação harmônica com a Constituição Federal, reconhecendo a existência de limitações aos direitos da personalidade:


Enunciado 139 (Art. 11)

Os direitos da personalidade podem sofrer limitações, ainda que não especificamente previstas em lei, não podendo ser exercidos com abuso de direito de seu titular, contrariamente à boa-fé objetiva e aos bons costumes.

Enunciado 279 (Art.20)

A proteção à imagem deve ser ponderada com outros interesses constitucionalmente tutelados, especialmente em face do direito de amplo acesso à informação e da liberdade de imprensa. Em caso de colisão, levar-se-á em conta a notoriedade do retratado e dos fatos abordados, bem como a veracidade destes e, ainda, as características de sua utilização (comercial, informativa, biográfica), privilegiando-se medidas que não restrinjam a divulgação de informações.

É importante notar que as pessoas famosas, que fazem parte de nossa história política, científica, cultural ou artística, têm uma diminuição significativa no grau de proteção de sua imagem[4] e intimidade.

No caso da imagem, a utilização prescinde de autorização, desde que não tenha caráter comercial e a pessoa famosa não seja retratada em momento de intimidade. Observa-se que, apesar de jornais, revistas e livros serem vendidos, isso não significa que a reprodução da imagem e o relato da vida de pessoas célebres nesses meios de comunicação tenham conotação comercial, como argumentam alguns. A utilização comercial da imagem decorre de sua reprodução em publicidade (mesmo que institucional) e da ilustração de produtos[5] ou de suas embalagens.

Quanto à intimidade das pessoas célebres, os limites decorrem do interesse público (que também limita o direito à honra) e das exigências de ordem histórica, científica, cultural e artística[6].

Como ensina René Ariel Dotti:

“O interesse da História revela-se como uma das formas mais ‘elevadas’ de invasão da vida privada, na qual os aspectos culturais e intelectuais de um fato se sobrepõem ao interesse individualista da proibição de sua divulgação.

Trata-se de certos detalhes da vida, do comportamento, de trechos da existência de algumas pessoas que merecem não somente o registro para sua compreensão, como também o relato fiel na medida em que este objetivo seja possível. Nesta perspectiva se destaca a crônica de personagens célebres, cuja biografia ou referência a atitudes e idéias servem para compor um patrimônio destinado à crítica objetiva da posteridade e ao julgamento sublime da História.” [7]

O excerto acima foi reproduzido em acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, datado de 6 de junho de 2000, que condenou a editora de uma importante revista semanal a pagar uma altíssima indenização às herdeiras de Juscelino Kubitschek, por violação de direitos autorais, relativos à publicação, sem autorização, de trechos do diário do ex-presidente, que se pretendia manter inédito[8]. Por outro lado, foi afastada a pretensão de indenização por dano moral decorrente de ofensa à intimidade, pois o Tribunal entendeu que havia interesse histórico na divulgação dos fatos íntimos da vida de JK relatados em seu diário:


DIREITOS AUTORAIS – Inindenizabilidade de divulgação de fatos íntimos relativos ao ex-Presidente falecido, bem assim, de seus familiares, não só porque já eram do conhecimento público, não injuriosos quanto à autora – Fatos que cercaram a vida do ex-Presidente, por ele relatados, de interesse histórico evidente – Relativismo da preservação do direito a intimidade de personalidades históricas – Danos morais, não só quanto à autora, como também, quanto a imagem do ex-Presidente afastados – Recurso não provido quanto a esta parte. (Apelação Cível n. 95.250-4 – São Paulo – 3ª Câmara de Direito Privado – Relator: Alfredo Migliore – 06.06.00 – V.U.) [9]

Obviamente, não pretendo comparar Roberto Carlos a Juscelino Kubitschek mas, goste-se ou não do rei”, não há como negar que ele faz parte da história da música popular brasileira, como demonstra a biografia de autoria do historiador Paulo César de Araújo, fruto de sua criação intelectual[10], precedida de árduo trabalho de pesquisa bibliográfica e quase duzentas entrevistas.

Exercendo meu direito de citar trechos de obras literárias publicadas, concluo este artigo homenageando esse escritor, com suas próprias palavras:

“Roberto Carlos é o mais popular cantor brasileiro de todos os tempos. Quanto começou a fazer sucesso, em meados de 1963, o homem ainda não havia chegado à Lua, John Kennedy ainda despachava na Casa Branca, os Beatles ainda não haviam conquistado o mundo; a União Soviética era a principal potência comunista; e o Brasil era apenas bicampeão mundial de futebol. Pois bem: o homem foi e voltou à Lua, John Kennedy foi assassinado e tantos outros presidentes sucederam-se em Washington, os Beatles viraram lenda, a União Soviética acabou, o Brasil já conquistou o pentacampeonato e Roberto Carlos continua fazendo sucesso.”[11]


[1] Os direitos da personalidade são aqueles direitos essenciais à pessoa humana, a fim de resguardar sua dignidade. São exemplos de direitos da personalidade: o direito à vida, ao corpo e às suas partes, juntas ou separadas; à liberdade nas suas mais variadas acepções (de expressão, de pensamento, social, filosófica, religiosa, política e sexual); o direito à imagem e à voz; à honra; à privacidade e à intimidade; ao segredo; ao nome; às prerrogativas morais dos direitos autorais.

[2] Lei 10.406, de 10/01/2002, que entrou em vigor um ano após sua publicação.

[3] As Jornadas de Direito Civil são promovidas a cada dois anos pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal e reúnem especialistas de todo o país. Os enunciados são elaborados por comissões de trabalho e servem de orientação para o entendimento dos artigos do Código Civil.

[4] A imagem é a representação visível da pessoa humana capaz de identificá-la, não se confundindo com a honra (objetiva ou subjetiva).

[5] Basta lembrar daquele biquíni que trazia estampado o retrato de um dos mais célebres guerrilheiros latino-americanos.

[6] BITTAR, Carlos Alberto, Direitos da Personalidade, 6a ed. revista, atualizada e ampliada por Eduardo C. B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

p.114/115

[7] Proteção da vida privada e liberdade de informação: Possibilidade e limites, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1980, p.60

[8] O direito de manter a obra intelectual inédita é um dos direitos morais de autor, que é transmitido aos seus herdeiros.

[9] Ementa disponível no site do Tribunal de Justiça de São Paulo: www.tj.sp.gov.br

[10] Não se deve esquecer que os direitos morais de autor também são considerados direitos da personalidade.

[11] ARAÚJO, Paulo César. Roberto Carlos em detalhes. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006, p.485.

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    é advogada especializada em Propriedade Intelectual, Direitos da Personalidade e da Comunicação Social; Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Propriedade Imaterial da ESA - Escola Superior de Advocacia da OAB/SP; Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP com a defesa da tese: A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade: tensões e limites.

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