Triângulo no ponto

Licença poética para se falar do que não se pode falar

Autor

3 de junho de 2007, 0h00

A intimidade e o erotismo só são mesmo toleradas entre quatro paredes. Por puritanismo, princípios cristãos ou pela tradição, os segredos de alcova, taras e descrições mais voluptuosas, não são bem recepcionados quando narrados por autoridades. E é essa a sensação de absurdo que se tem no livro Triângulo no Ponto, exatamente por ter sido escrito por um ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau. O texto é de qualidade, com jargões é claro, mas ainda interessante.

Um quê de libertina, indecente, de explícita sacanagem. A literatura erótica choca, remexe com primitivos sentimentos e também, quando da lavra de pessoas geograficamente próximas de nós, nos habilita a reprovar tanto a cria quanto o criador. É a defesa dos costumes e do puritanismo, sempre à mão nas urgências.

Esse desprezo, que lança a obra ao limbo, também leva à marginalidade o autor. Depravado, indecente e devasso, esse ser que se apropriou da palavra para dar materialidade às próprias perversões, sejam as vividas ou as fantasiadas.

Eros Grau, o escritor do livro brasileiro Triângulo no Ponto, é uma dessas figuras a quem bastou a divulgação de trechos da obra para que sua aptidão literária fosse questionada pelos mais variados críticos de última hora, em blogs, sites, notas de jornal e outros veículos.

A coleção de menções pouco honrosas, sustentam alguns críticos, é devida a trechos em que o autor caiu no jargão do erotismo de folhetim. Usou como sinônimo de ereto, ferro em brasa, pênis teso. Repetiu o já aclamado mamilo intumescido. Ou quando avançou, criando expressões – sempre afetas às mulheres da trama – , como válvula de sucção (referência à capacidade vaginal de receber um pênis teso), peitinho de perdiz (sobre os miúdos peitos da sobrinha-personagem), axilas provocantes, narinas safadas e sensuais, flatulências vaginais pós-coito, poemas enterrados nos recônditos, frestas, fendas, nesgas, reentrâncias e nádegas estreitas.

Outros críticos de plantão assumiram que o problema da obra está exatamente na figura proba e impoluta do autor. Afinal, expressões tão cabeludas não podem sair da boca ou da mente de um grande jurista, para o qual sexo deveria ser tema limitado à própria intimidade. Mais. É impróprio, condenável e digno de suspeição um ministro da mais alta corte brasileira, o Supremo Tribunal Federal, que admite conhecer palavras só permitidas aos comuns. Pior. Descrever cenas tão picantes é revelar – entendem – fantasias próprias, o que também não é honesto para um ordenador do direito.

Assim, o juízo que deveria ter sido feito sobre a obra, recaiu sobre o autor em razão sim, e que não seja negado, da alta patente gozada pelo escritor, autor de mais de uma dezena de livros jurídicos.

Sobre os livros e suas coincidências

Eros Grau deve ter, pelo menos em algum momento, se divertido com a confusão que estabeleceria quando distribuísse em seus personagens, Rogério, Xavier e Costa, características suas.

Eles, autor e personagens, são contemporâneos, embora a história envolva 35 anos, entre 1968 e 2003. Todos são sexagenários, viveram em São Paulo, cursaram direito, nutrem paixão pela poesia, foram acadêmicos, comunistas, tiveram longas e freqüentes passagens pela França e prometeram a si e à namorada um dia escrever um romance.

A tentativa de análise comparativa pára por aí. Para surpresa de quem só leu trechos, Rogério, Xavier e Costa são uma única pessoa. E é disso que o livro trata: da escolha, da multiplicidade de destinos que o personagem teve à disposição caso em um determinado momento de sua vida fizesse opções diferentes. Como define o narrador, falando de si mesmo, sofria de fartura, da “insegurança causada pelo excesso de rumos possíveis”.

O fio condutor é Sílvia, a namorada, noiva, mulher. Em todas as situações, na vida dos três personagens, ela é a mesma. Compreensiva, carente e digna de todo o respeito marital, ainda que lhe falte amor e sexo.

Sílvia a mais traída, a menos provada é o grande e saudoso amor. A dona da obra. A ela, segundo o narrador, teria faltado dialética. Ela não teria entendido que a “cada negação do amor o amor estaria sendo suprassumido”. Sílvia “carecia de paciência histórica” e de “consciência histórica”.

A amante inesquecível, Beth, também é a mesma na três histórias. Antônio, o amigo, é recorrente. A subversão ao regime e o vínculo, ainda que suave com os camaradas, é matéria comum. Até mesmo a prisão pela polícia política da ditadura foi vivida por todos. Uma sobrinha de 17 anos, bailarina, povoa pelo menos a história de Rogério e Costa.

Antes, porém, uma cena na praia enreda a teia do livro. O dia é aquele em que Rogério, Xavier e Costa retomam o noivado com Silvia, interrompido – no caso de Rogério – em razão de outro amor que havia surgido meses atrás. No encontro, que é rememorado ao longo de todo o romance, Silvia pergunta ao namorado se ele havia esquecido a outra mulher.

Poesia, mulher, política. Estão aí as prioridades de Rogério, não nessa mesma ordem. Xavier é intelectual. Prefere a fantasia sexual ao ato. É acadêmico e comunista com temor, a quem é mais seguro mudar de posição política a correr o risco de ser descoberto pelo regime. No fim, se descobre homossexual. Costa é o empresário de sucesso, que fez incorporações, fusões, vendas e investimentos no momento certo. Simpático ao comunismo, manteve distância respeitosa para atuar como colaborador. Poesia e academia existiram em sua vida, mas não se mantiveram. Sempre teve casos extraconjugais, mas em menor profusão que Rogério. Aos três e a cada um, a posição social de Silvia, que era rica, foi definidora da trajetória individual.

Casados, Silvia e Rogério, Silvia e Xavier e Silvia e Costa se separam. As motivações: Rogério foi flagrado fornicando com a sobrinha adolescente de Sílvia; Xavier foi desmascarado por tentar emplacar uma fantasia sua, na qual um aluno seu homossexual é forçado a acreditar que nutria atração sexual por Sílvia e por isso tenta transar com ela; e Costa pela distância intransponível criada no casamento, em razão de outras prioridades de vida, como os negócios.

É Rogério quem conta a própria história e a dos dois outros personagens. Ao final, entrega os pontos. Pede que alguém arremate a obra. Esse alguém, indefinido, pormenoriza. Explica que o livro é a concretização de uma promessa antiga de Rogério à noiva Silvia. Promessa que só foi concretizada depois que o casamento já havia ruído.

O livro é denso, às vezes intenso, confuso, ainda quem bem escrito e utilizando figuras de linguagem que marcam posição como a reiteração. Utiliza recursos presentes em Memória de minhas putas tristes, de Gabriel Garcia Marques, como o texto bem encadeado e a narrativa repleta de individualismo.

Remete-nos ainda à poesia Eros à mão livre do poeta carioca Armando Freitas Filho: “por esta fresta te espreito, por esta fenda te desvendo […] teso e reto, e por inteiro, o seu corpo se entreabre: porta e perna, caixa e coxa”.

O livro de Eros, o ministro, começa em flashback e avança sem ordem fixa. A obra é escrita junto com a narrativa. O narrador viaja a München, na Alemanha, junto com a mulher com quem vivia há cinco anos. Foram visitar os filhos e netos dela. Essa mulher é descrita como a pacificadora, aquela que aplacou suas febris vontades em busca de amores intensos e liberais.

O livro não é pornográfico, como asseguram uns. Se pretende histórico, mas tende mais aos casos extraconjugais e narrativas pouco críveis de prisões pelo regime militar. Carrega discussões ideológicas onde os esquerdistas são criticados pela falta de conteúdo e a burguesia por tentar parecer o que não é ao viver de aparência.

É uma obra rica em descrições, principalmente as com endereço na França. Atende a pormenores tal quando descreve o local onde repousa atualmente Olympia, de Manet, no Musée d’Orsay, em Paris e o café de Flore de Saint Germain des Prés. Aliás, o trecho que trata de Olympia encabula. Nele, o narrador confessa seu grande amor pela musa, a visita todos os dias à espera que, depois de atendido o último cliente (fantasia sua), ela o receba. Assim, numa transmutação, Olympia é Sílvia.

O sexual é tão marcante no livro, que até mesmo em discussões sobre arte, literatura, política, mercado ou neoliberalismo, imperam devaneios em que parceiras executam posições e entregas.

Há trechos bem talhados, mas incompreensíveis, como o que fala de Helena, outra militante, que teria sido levada ao mar, do alto de um avião. “Estava em cacos, dizem. O mar a tragou”.

Há trechos curiosos sobre a importância do momento, quando na prisão, Rogério/Costa deixa para defecar em casa ao ser informado de que até às 18h estaria liberado. A soltura leva mais tempo, assim como a agonia de ter perdido a oportunidade de defecar fora da cela. “Dou-me conta de que perdera a oportunidade de defecar lá fora, teria que dormir com as minhas fezes”.

A obra vale sim o investimento. É intrigante, instigante, bem localizada no espaço, sem furos históricos. Trabalha com personagens individualistas, preocupados exclusivamente consigo mesmos e com suas necessidades e desejos. A sugestão é que seja lida por duas vezes. O fim, ainda que inesperado é o mais possível, mas encerra a obra sem deixar aquela sensação recorrente de déjà vu.

Ainda com muita abstração faltou-me clareza quanto a que seria uma mulher com “pernas tesouras, dois 7s” e ser “pentapossuída”. Com alguma dificuldade, entenderia a expressão “penetrada em profusão”. A grande dúvida destinaria a duas passagens, o chavão que define Costa como sendo o“amigo mais certo nas horas incertas”, e a metáfora mal ajambrada de que o sexo de Beth, na imaginação de Xavier, seria uma ostra estreitinha e depois uma orquídea selvagem, rococó.

Mas, como diz o autor, seu livro foi escrito para que “fique claro não que tudo pode acontecer, mas sim que nada pode deixar de acontecer”.

Lançado em abril, Triângulo no ponto é uma dessas obras que se notabiliza não exclusivamente pelos trechos picantes e encabuladores que contém, mas e muito mais por traços de provável semelhança física entre os personagens e o autor.

Eros, o autor, é casado com Tânia Marina, tem dois filhos casados e três netos. A filha, Karin, vive exatamente em München, na Alemanha, de onde o personagem Triângulo no Ponto dá início ao livro. O ministro é livre docente pela USP, onde é professor adjunto. Gaúcho de Santa Maria foi indicado ao Supremo Tribunal Federal pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2004.

Sobre a obra e o autor, dispenso os comentários a respeito da graciosidade do nome Eros e de sua gênese.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!