Dentro da lei

Sistema de cotas para beneficiar negros é constitucional

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19 de julho de 2007, 0h00

O sistema de cotas é a forma pela qual o Estado se propõe a compensar os integrantes de determinada classe, categoria ou raça, mediante a reserva de vagas em concursos públicos para provimento de cargos e empregos públicos e, ainda, para o preenchimento do corpo discente das faculdades públicas.

O escopo deste trabalho restringe-se à análise do sistema de cotas voltado aos integrantes da raça negra.

Notória é a forma brutalizada e genocida do processo de libertação dos escravos no Brasil, aliás, a mais tardia alforria do mundo. As classes dominantes brasileiras sempre souberam manipular a mão-de-obra necessária à manutenção de suas riquezas, utilizando-se de métodos por vezes cruéis.

Em verdade, os escravos africanos, de tão massacrados no Brasil, opunham sua resistência pelo método que mais demonstrava seu desamparo: a fuga. Ressalve-se o movimento de resistência, belíssimo, dos quilombos, que tentou devolver a dignidade humana aos negros escravizados 1.

Logo que foi publicada a “Lei Áurea”, os negros, ávidos por liberdade e respeito, precipitaram-se pelas estradas, sem paradeiro, sem destino. Como afirma Darcy Ribeiro 2 “… os escravos abandonam as fazendas em que labutavam, ganham as estradas à procura de terrenos baldios em que pudessem acampar,…, plantando milho e mandioca para comer. Caíram, então, em tal condição de miserabilidade que a população negra reduziu-se substancialmente”. Essa miserabilidade da massa negra, jogada ao léu, produz efeitos até hoje em nossa pirâmide social. Dessa forma, os negros são maioria nas favelas, nas prisões, nos índices de analfabetismo, etc. São, todavia, minoria nas faculdades, nos índices de maior longevidade, na composição dos órgãos públicos, etc. Negou-se aos negros, afirma Darcy Ribeiro “…a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas em que pudessem educar seus filhos, e de qualquer ordem de assistência”.

Delimitado está o panorama social que deve prevalecer na análise do presente tema. Pode-se afirmar que os negros foram “recrutados” para servir de mão-de-obra barata e, depois, enxotados para a marginalidade social.

Temos como principais argumentos a favor da implantação do sistema de reserva de vagas nos concursos públicos e nos vestibulares das faculdades públicas, o débito estatal em relação à forma de recolocação social dos negros na fase de pós-libertação, o princípio da igualdade, em sua acepção material, e a possibilidade da instituição de políticas compensatórias, albergadas pela Constituição da República.

Diz-se que o Estado brasileiro foi extremamente injusto com os recém-libertos. A situação dos ex-escravos foi tratada de forma unilateral pelo Estado, sem a colaboração das vítimas da escravidão. Além disso, os ex-donos de escravos receberam apoio do Estado para a recuperação de sua mão-de-obra barata, havendo uma intensa “importação” de europeus desiludidos em busca de uma redenção qualquer.

Afirma-se que o princípio da igualdade deve ser interpretado em sua acepção material, ou seja, que a verdadeira igualdade é tratar desigualmente os desiguais. Como afirmou Rui Barbosa 3, repercutindo Aristóteles: “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade”. Ao pretender, o Estado, realizar seu fim de reduzir as desigualdades sociais, somente o fará com a adoção de políticas afirmativas que encontrem eco nas camadas mais oprimidas da população.

Alinha-se como defesa do sistema de cotas a assertiva de que a própria Constituição Federal está a demonstrar a substancialidade do princípio da igualdade, como, por exemplo, no caso da reserva de vagas, em expressão percentual, dos cargos e empregos públicos para os deficientes físicos, determinada pelo artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal, sendo legítima, portanto, em face do contexto histórico, a compensação social também em benefício dos negros.

Ainda, argumenta-se em sentido contrário à implementação do sistema de cotas, a impossibilidade de definição idônea dos integrantes da raça negra, o óbice constitucional do princípio da igualdade e a assertiva de que há política compensatória (ação afirmativa) apenas de forma expressa na Constituição Federal.

No que respeita à definição da raça negra, teme-se pelo critério voluntário, utilizado pelo IBGE, pois poderia qualquer pessoa de pele mais escura afirmar-se negro em busca das facilidades deferidas. Em geral os movimentos de defesa da raça negra refutam tal argumento, afirmando que o preconceito racial afasta o risco de auto-afirmações raciais falsas, aceitam, apenas, o critério voluntário, pois apenas este resgataria a identidade cultural do negro.


Como principal óbice constitucional temos o princípio da igualdade, que impediria qualquer forma de privilégios entre os indivíduos. Tal princípio seria abstrato e basilar para a garantia dos direitos fundamentais. A igualdade entre os homens seria incompatível com reserva de vagas, pois esta importa em tratar desigualmente os iguais, posto que todos são homens.

Alguns argumentam até com inspirações divinas, como, por exemplo, William Douglas Resinente dos Santos 4, que chega a citar: “´Não necessitam de médico os que estão sãos, mas sim os que estão enfermos.´ – Jesus (Lucas, 5:31.)”; e afirma logo em seguida: “E cremos que todos os homens nascem iguais independentemente de sua cor ou etnia;”.

Como exemplo para a afirmativa de que a ação compensatória é admitida pela Constituição Federal apenas de forma expressa, cita-se a reserva de vagas para deficientes físicos. O argumento consiste em dizer que a regra é a igualdade plena (abstrata), sendo exceção a outorga de “privilégios”. Sendo exceção, somente admite-se por disposição expressa na C.F.

Para os deficientes físicos há a previsão constitucional ( art. 37, inciso VIII), não assim em relação à cota racial.

Submetida a questão à uma análise percuciente, vemos que o princípio da igualdade não representa sério obstáculo ao sistema de cotas. Tal princípio é relativizado em diversos dispositivos constitucionais e infra-constitucionais. O argumento de que nenhum direito garantido pela C.F. é absoluto, há de ser mais uma vez lembrado, com a relativização do próprio direito à vida mediante a pena de morte 5. Ainda mais razão assiste ao entendimento da concreção do princípio igualitário, quando se leva em conta o fim estatal de amenizar as abismais diferenças sociais entre os indivíduos, não podendo o Estado contentar-se em declarar direitos e igualdades e nada fazer concretamente para atingir seu precípuo fim.

O argumento de que o princípio da igualdade jurídica entre os homens pode ser relativizado, porém apenas de maneira expressa na C.F., também não procede. Além da disposição expressa de reserva de vagas para os deficientes físicos, temos outros exemplos de ações afirmativas baseadas no próprio princípio da igualdade. É o caso da reserva de vagas para concorrência a cargos eletivos, com limites mínimo e máximo de candidatos de cada sexo, disciplinada pelo art. 10, § 3º, da lei n.º 9.5047. À obviedade tal dispositivo só foi implementado devido à opressão imposta às mulheres, que resultou no alijamento delas perante o processo de disputa e exercício do poder.

Ademais, como explicita Fábio Konder Comparato 6, ao comentar sobre o mito da democracia racial no Brasil, “nas raras vezes em que se invocou a Constituição contra as leis, o objetivo não era defender a vida ou a liberdade, mas sim, o patrimônio. Assim é que promulgada a Lei do Ventre Livre, em 1871, o maior jurisconsulto do império, Augusto Teixeira de Freitas, entendeu-a inconstitucional por violar a garantia da propriedade e por desrespeitar os direitos adquiridos”.

Não é de se estranhar que, ainda hoje, alguns juristas prontamente declarem a inconstitucionalidade do sistema de cotas, ressaltando o desrespeito de tal sistema aos direitos dos demais cidadãos. Aliás, o próprio Fábio Konder Comparato 6, no arremate do artigo acima, afirma que “seria imperdoável erro político imaginar que essa situação de bloqueio mental e de insensibilidade ética já foi superada”, e ainda diz “o fato é que o espírito conservador continua o mesmo, sólido e incontrastável, em sua visão imobilista do mundo”.

Vale ressaltar que o argumento religioso é facilmente vencido com um simples olhar pela janela. Não estão sãos os milhões de descendentes diretos de escravos, que têm como único legado uma vida de humilhações e privações, pois seus ascendentes foram, como acima ressaltado, vítimas das maiores atrocidades. Fora do casulo e livre dos cabrestos religiosos, é possível a qualquer criança perceber que nem todos os homens nascem iguais, os filhos dos favelados que o digam.

O óbice que parece ser mais sério dos opostos ao sistema de cotas é o que pertine ao critério de definição da raça negra. Como já dito, os movimentos de defesa dos negros não admitem o critério científico, biológico ou antropológico de definição de raças. Entendem que a auto-afirmação racial, sistema voluntário, é o que melhor garante a preservação da cultura negra.

Aqui, no entanto, há uma confusão de conceitos que atrapalha a correta disposição do problema.

Com efeito, o traço cultural pouco ou nada tem a ver com o conceito de raça, posto que uma mesma raça pode albergar diferentes culturas. Pedrinho A. Guareschi 7 assevera que “etnia é a identidade que liga essa experiência a uma história cultural comum (ser italiano, alemão, brasileiro). Raça é a identidade que liga essa experiência a ancestrais biológicos comuns”.


Vemos, pois, que etnia é mais consentâneo com traço cultural, que meramente a raça a que se pertence. Pinto Ferreira 8 dispõe que “a raça é formada pelo conjunto de homens que se assemelham somente por seus caracteres físicos, isto é, anatômicos e fisiológicos ou somáticos. É pesquisada pela antropologia física ou raciologia”. Sobre etnia o ilustre pensador diz: “Já etnia é conceito novo, introduzido pela ciência, e significa o grupo social aparentado por caracteres somáticos, lingüísticos e culturais”.

Precisamente o que ocorreu no Brasil foi a escravização de indivíduos da raça negra pertencentes a diversas culturas. Sendo assim, apenas o critério racial poderá ser utilizado na aplicação do sistema de cotas, posto que os diversos traços culturais trazidos pela raça negra estão atomizados e integrados a outros traços culturais dos europeus e indígenas. Há no Brasil uma constante fusão cultural que impede a utilização do critério da etnia para a prática da reserva de vagas.

Apesar de também haver uma “fusão racial”, a mestiçagem, a ciência dispõe de meios seguros para a definição correta da ascendência racial do indivíduo. Não é critério seguro a auto-afirmação, pois tal critério leva em conta muita vez a predominância da cor da pele, o que em um país tropical e de formação racial mestiça compromete a seriedade de tal método.

Enfim, o critério científico pode ser utilizado para a resolução do impasse na definição dos componentes da raça negra. O raciocínio asseverando que o preconceito racial da sociedade inibe a auto-afirmação racial falsa, utilizado pelos movimentos de defesa dos negros, é tão inconsistente quanto o argumento utilizado pelos opositores do sistema de cotas, de ser o mesmo uma marca indelével, uma cruz a onerar eternamente os beneficiados da reserva de vagas, pois estes seriam “apontados” pelos demais membros da comunidade.

Ora, é óbvio que as vantagens concretas oferecidas pelo sistema de cotas, o cargo ou emprego público e a vaga na faculdade, tanto podem incentivar a auto-afirmação racial falsa, quanto podem amenizar bastante a suposta carga discriminatória suportada por seus beneficiários.

Perceba-se que o indivíduo é discriminado não pela porcentagem de genes característicos da raça negra que está presente em seu corpo, mas sim pela aparência física que ostenta. Ou seja, para discriminar o negro, qualquer pessoa de senso mínimo sabe apontar um indivíduo da raça negra, mas para beneficiar, com o pouco que seja, a identificação de um negro torna-se extremamente difícil e causa celeuma nacional.

A resistência à implementação de um sistema de cotas que beneficie a raça negra, nada mais revela senão o preconceito racial tão arraigado na nossa cultura latino-americana.

Para se ter uma idéia de quão antigo é o preconceito em desfavor dos negros, lembremos Eduardo Galeano 9 mais uma vez: “Assim se prova que os negros são inferiores (segundo os pensadores dos séculos dezoito e dezenove). Voltaire, escritor anticlerical, advogado da tolerância e da razão: os negros são inferiores aos europeus, mas superiores aos macacos.Karl von Linneo, classificador de plantas e animais: o negro é vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos. David Hume, sobre entendimento humano: o negro pode desenvolver certas habilidades próprias das pessoas, assim como o papagaio consegue articular certas palavras. Etienne Serres, sábio em anatomia: os negros estão condenados ao primitivismo porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. Francis Galton, pai da eugenia, método científico para impedir a propagação dos ineptos: assim como um crocodilo jamais poderá chegar a ser uma gazela, um negro jamais poderá chega a ser um membro da classe média. Louis Agassiz, eminente zoólogo: o cérebro de um negro adulto equivale ao de um feto branco de sete meses, o desenvolvimento do cérebro é bloqueado porque o crânio do negro se fecha muito antes do que o crânio do branco”.

A última reclamação dos que se opõem ao sistema de cotas em benefício dos negros, arrima-se no argumento de que ao se instituir as cotas, candidatos com notas superiores podem perder suas vagas para candidatos com notas inferiores. Então, dizem, a produção de notas altas nas avaliações, como critério absoluto para escolha dos melhores, restaria inválido.

Porém, o critério intelectual não é absoluto, tampouco afere com precisão o mérito do esforço individual. Ora, o que tem melhores condições materiais e psicológicas efetuará menor esforço para atingir resultado idêntico ao do inferiorizado.

O professor Sandro Cesar Sell 10 afirma: “O que os estudos têm mostrado é que a supremacia intelectual freqüentemente não é uma conquista, mas um presente genético ou a resultante de condições ambientais na qual o indivíduo tem pouca ou nenhuma influência (como o fato de ter nascido num lar intelectualmente estimulante). Então, será que realmente se está premiando os mais dedicados com as seletas vagas, quando se as atribui aos melhores classificados nos testes intelectuais? Ou se estaria simplesmente premiando os mais agraciados pela natureza ou acaso? Ora, muitos dos estudantes, de qualquer origem étnica, que não ingressaram nas universidades podem ter se esforçado muito mais do que aqueles que, por sua natureza específica, ambiente social e inteligência herdada, pouco se preocuparam com esses testes. Suas condições de partida (genéticas e ambientais) os colocaram naturalmente à frente. Não haveria aqui discriminação intelectual?”.

Vemos, pois, que nem mesmo o conceito de mérito pode ser concebido de forma estática ou em caráter absoluto.

Em conclusão, podemos afirmar que o sistema de cotas em benefício dos integrantes da raça negra é justo, pelo aspecto histórico, e é constitucional, podendo ser imediatamente implantado, porém, não é o principal ponto de cisão social no Brasil. O abismo mais gritante na sociedade brasileira é o que afasta os abastados dos miseráveis, separação esta que exige dos poderes públicos uma resposta estrutural urgente e voltada para o futuro da nação.

Notas>

1. GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina, edição 41, editora Paz e Terra.

2. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. Companhia de Letras, 1995.

3. BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Editora Dicopel.

4. SANTOS, William Douglas Resinente dos. Cotas para Negros em Universidades. Artigo publicado no sítio eletrônico www.praetorium.com.br.

5. BARROS, Maria Magdala Sette de. Violabilidade das comunicações. Boletim dos Procuradores da República, ano IV, n.º 42 de 2001.

6. COMPARATO, Fábio Konder. Ordem sem progresso, Folha de São Paulo, publicado no dia 052995.

7. GUARESCHI, Pedrinho A. Sociologia da Prática Social. Editora Vozes, 1992.

8. FERREIRA, Luiz Pinto. Espaciologia Social, 2ª edição, Editora da Faculdade de Ciências Humanas de Pernambuco, 2000.

9. GALEANO, Eduardo. De Pernas pro Ar, a escola do mundo ao avesso, 6ª edição, Editora L&PM.

10. SELL, Sandro César. Ação Afirmativa e Democracia Racial, uma introdução ao debate no Brasil, 1ª edição, Fundação Boiteux.

Outras obras consultadas:

BARBOSA SOBRINHO, Osório Silva, A Constituição Federal vista pelo S.T.F., 2ª Edição, SP. Editora Juarez de Oliveira, 2000.

ROOS, Alf. Direito e Justiça – Tradução: Edson Bini, Bauru, SP. EDIPRO, 2000.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo – 19ª edição, editores Malheiros, 2000.

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