Licitações em perigo

É preciso ter cautela com novo Estatuto da Microempresa

Autor

  • Jonas Lima

    sócio de Palomares Advogados pós-graduado em Direito Público pelo IDP. Especialista em licitações e contratos administrativos é autor do livro A defesa da empresa na licitação – Processos administrativos e judiciais.

16 de julho de 2007, 16h11

Passado o primeiro semestre de experiências com a Lei Complementar 123/2006 deve-se reconhecer o mérito da inserção de várias microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações públicas. Entretanto, nos primeiros seis meses de aplicação da nova lei foi verificado um quadro caótico, no qual centenas microempresas, empresas de pequeno porte e até grandes empresas foram dramaticamente prejudicadas pela prática distorcida dos dispositivos legais.

Supostas microempresas ou empresas de pequeno porte venceram ilegalmente licitações em detrimento de verdadeiras microempresas ou empresas de pequeno porte e, ainda, de grandes empresas.

As perguntas e respostas abaixo demonstram claramente a dimensão dos problemas constatados.

O que aconteceu nos casos de mera declaração da própria empresa sobre o seu enquadramento como ME ou EPP?

Principalmente nos primeiros meses desse ano, houve um verdadeiro festival de editais, de diversas esferas de governo e nas mais variadas modalidades licitatórias, apenas com a exigência da “declaração de enquadramento de microempresa ou empresa de pequeno porte”, a ser apresentada antes do início da disputa.

Assim, foram aceitos documentos elaborados unilateralmente, assinados pelos próprios representantes das empresas, chegando-se ao absurdo de alguns casos de editais prevendo que o pregoeiro “poderá” solicitar documentos que comprovem o enquadramento da licitante na categoria de microempresa ou empresa de pequeno porte, ou seja, deixando o problema completamente aberto e transformando uma verdadeira imposição legal do agente público em uma mera faculdade.

Com se pode trabalhar dessa maneira, sem a declaração de enquadramento acompanhada, obrigatoriamente, de documento hábil a respaldá-la, ou seja, a comprovar a verdadeira condição de enquadramento da empresa?

Ademais, declarações foram exigidas com termos simplórios como, por exemplo: “declaramos, sob as penas da Lei, que a empresa cumpre os requisitos estabelecidos no artigo 3º da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, e está apta a usufruir do tratamento favorecido estabelecido nos artigos 42 ao 49 da referida Lei”.

Isso implica em reconhecer que muitos foram os modelos de declarações nos quais restou esquecido o seguinte trecho: “declaramos, ainda, que não existe qualquer impedimento entre os previstos nos incisos do § 4º do artigo 3º da Lei Complementar nº 123/2006”.

E o que dizer da mera aceitação de certidões emitidas pelas Juntas Comerciais?

Depois de cinco meses de vigência do novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, foi publicada no Diário Oficial da União, de 22 de maio de 2007, a Instrução Normativa 103/2007, do Departamento Nacional de Registro do Comércio — DNRC, dispondo, especificamente, sobre “o enquadramento, reenquadramento e desenquadramento de microempresa e empresa de pequeno porte, constantes da Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, nas Juntas Comerciais”.

Antes disso, documentos das Juntas Comerciais também estavam sendo aceitos nas licitações, mas nem mesmo a Instrução Normativa em questão resolveu o problema, uma vez que o próprio empresário faz a declaração da condição da sua empresa perante a Junta Comercial e, em um momento posterior, requer a emissão de certidão, que, logicamente, vai fundamentada em sua própria declaração.

É preciso observar que as informações declaradas na Junta Comercial podem não refletir a realidade dinâmica da vida empresarial, sendo certo que muitas empresas podem ter a condição declarada, como microempresa ou empresa de pequeno porte, mas, na prática, já terem ultrapassado o limite máximo de receita bruta no ano-calendário de R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais), previsto como teto no artigo 3º, inciso II, da Lei Complementar 123/2006.

Muitas empresas apresentaram e muitos pregoeiros e presidentes de comissão de licitação aceitaram apenas tais certidões, mesmo sem qualquer intenção negativa, mas eventualmente com informações desatualizadas e sem a segurança, por exemplo, da Demonstração do Resultado do Exercício — DRE, documento esse que não deixa dúvida quanto à receita bruta da empresa, mas que, ainda assim, da mesma forma que a certidão da Junta Comercial, não comprova a inexistência de algum dos impedimentos dos incisos do § 4º do artigo 3º do Novo Estatuto.

Está claro, portanto, que apenas a certidão da Junta Comercial ainda não é suficiente para a aplicação integral do sistema de benefícios da nova Lei.

Como ficaram as licitações nas quais foram aceitos apenas o comprovante de opção pelo Simples?

Foram muitos os casos de injustiça nas licitações, uma vez que microempresas ou empresas de pequeno porte venceram licitações usufruindo, por exemplo, do benefício do chamado “desempate” de propostas, previsto nos artigos 44 e 45 da Lei Complementar nº 123/2006, mas apresentaram, em seguida, apenas o “comprovante da opção pelo Simples”.


Acontece que esse documento de nada serve para as licitações, a começar porque a Lei Complementar, na forma em que foi redigida, deixa muito claro, em seu Capítulo II, que as definições de microempresa e de empresa de pequeno porte são genéricas e atinentes a diversos benefícios, por exemplo, nas áreas empresarial, civil, processual civil, trabalhista, compras governamentais, entre outras. Já a questão tributária, como se sabe, sempre foi independente do restante das matérias, até na vigência, como, por exemplo, para a própria opção pelo Simples Nacional, a partir de 1º de julho de 2007.

Isso significa que o comprovante de opção pelo Simples, dependendo do caso, não refletia a realidade dinâmica da atividade comercial da empresa, sendo importante mencionar que várias empresas optantes pelo Simples aparecem no portal www.transparencia.gov.br como recebedoras no ano de 2006 de muitos milhões de reais do Governo Federal, ou seja, muito além dos limites de enquadramento no Simples, disciplinado pela Lei 9.317/96, bem como, muito além da definição de microempresa e de empresa de pequeno porte, inclusive, para fins do Simples Nacional, nos termos da Lei Complementar 123/2006.

Em resumo, muitas que apresentaram comprovante de opção pelo Simples tiveram receita bruta anual em 2006 superior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais), o que revela uma completa incompatibilidade com o novo Estatuto.

Muitos foram os vícios encontrados nas licitações eletrônicas em face da Lei Complementar 123/2006?

Sim, apesar do grande e louvável empenho na adaptação dos sistemas eletrônicos de licitações públicas, muitos foram os vícios graves nas licitações eletrônicas.

No caso de portais como o www.licitacoes-e.com.br foram criadas rotinas a serem observadas em campos de textos com “informações adicionais” para que a licitante pudesse informar ou declarar a sua condição de microempresa ou empresa de pequeno porte, além da utilização do conhecido sistema de chat como canal de comunicação para a aplicação das regras da Lei Complementar 123/2006.

Os sistemas foram adaptados, mas, embora aberto o caminho, na prática, isso ainda não resolveu o problema em todas as licitações, uma vez que os textos de determinados editais nem sempre exigiam, para um momento posterior da licitação, a apresentação de prova documental, inconteste, da receita bruta do ano-calendário da empresa, ou seja, de que ela não teria ultrapassado o limite de R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais). E isso o sistema também não conseguiu identificar automaticamente, por não ter acesso aos dados atualizados de receita da empresa.

Enfim, embora o canal de comunicação estivesse disponível, a declaração virtual fosse feita e o benefício do desempate, por exemplo, chegasse a ser exercido dentro do sistema, ainda assim, ao final da licitação eletrônica, também deveria sempre ser exigida a documentação impressa e hábil a comprovar a veracidade da declaração eletrônica de enquadramento na Lei Complementar nº 123/2006, por exemplo, com a Demonstração do Resultado do Exercício – DRE.

No caso do www.comprasnet.gov.br a opção de adaptação do sistema para que o mesmo identificasse automaticamente as microempresas e as empresas de pequeno porte foi feita pela informação do “Porte ME/EPP”, constante da base de dados da Receita Federal, além de incorporada uma opção de “Declaração ME/EPP”.

Acontece que muitas empresas com receita bruta anual de 2006 de vários milhões de reais passaram a aparecer automaticamente no sistema com “Porte ME/EPP” na opção “Sim” e muitas outras que sequer chegaram perto de R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais) no ano passado continuaram aparecendo como grandes empresas e com a informação “Não” no campo de “Porte ME/EPP”. Isso foi uma distorção gritante que prejudicou pequenos e grandes empresários.

Muitos foram prejudicados, frise-se, porque sequer conseguiram “atualizar o porte da empresa” na opção própria do seu cadastro no sistema e, por isso, várias licitações foram perdidas injustamente, por impossibilidade do exercício dos direitos líquidos e certos previstos na Lei Complementar 123/2006. As empresas possuíam prova documental de que não ultrapassaram R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais) de receita bruta anual em 2006 mas, ainda assim, não conseguiam corrigir a informação do porte da empresa pelo sistema, sendo que muitas foram orientadas a aguardar a opção pela mudança do seu regime tributário, na Receita Federal, ou seja, a partir de julho de 2007, quando nasceu prazo de opção pelo Simples Nacional. Isso não era necessário, já que a parte tributária da Lei em nada poderia atrasar a aplicação dos benefícios nas compras governamentais, em vigor desde dezembro de 2006.


Nesse contexto, entretanto, empresas que estavam com a opção pelo antigo regime tributário do Simples estavam aparecendo no Comprasnet com a opção marcada “Sim”, no “Porte ME/EPP”, quando, na prática, já haviam em muito extrapolado os limites de enquadramento.

Para comprovar toda essa confusão basta consultar diversas atas de pregões eletrônicos no site Comprasnet, do final do primeiro semestre de 2007, e, depois, pelo nome de cada empresa, verificar, por exemplo, quanto ao exercício de 2006, no www.transparencia.gov.br, que armazena dados de gastos do Governo Federal, se a empresa recebeu mais ou menos do que o limite de enquadramento da Lei Complementar nº 123/2006. Muitos serão os casos encontrados nos quais as informações dos dois sistemas são incompatíveis entre si.

O que deve ser ressaltado quanto aos contratos de 2007 e os limites da Lei Complementar?

No Brasil está constatado um grave problema para o qual a lei não trouxe uma solução e que se alastra a cada dia, que é a falta de monitoramento e integração de dados sobre os contratos públicos assumidos pela empresa a cada dia.

Existem empresas que apenas em 2007 já ganharam contratos públicos de mais de 10 (dez) milhões anuais e continuam se qualificando como microempresas ou empresas de pequeno porte, inclusive no www.comprasnet.gov.br, o que pode ser verificado facilmente em vista dos valores constantes nas próprias atas publicadas naquele portal de compras e, em seguida, dos valores que vêm sendo pagos mensalmente por órgãos federais, conforme dados do presente exercício, constantes no www.transparencia.gov.br.

A injustiça está instalada, perdendo-se o verdadeiro sentido da Lei, que era de dar a primeira chance ao pequeno empresário. Mas agora que um pequeno já ganhou contas anuais que em muito ultrapassam R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais), porque ele continua, por exemplo, tendo direito ao chamado benefício de desempate? Porque não dar agora a vez a um outro pequeno empresário?

A respeito desse assunto, frise-se, apesar dos parágrafos finais do artigo 3º da Lei Complementar123/2006 terem trazido normas de exclusão da empresa do regime beneficiado, quando ela de torna grande, o fato é que a redação foi falha e, agora, nada está sendo acompanhado ou proibido, quando deveria sim haver um controle dos contratos vigentes, para evitar excessos como os que vêm ocorrendo.

É absolutamente inaceitável continuar aplicando o Estatuto da Microempresa ou da Empresa de Pequeno Porte a uma empresa que somente em 2007 já ultrapassou em muito o limite de enquadramento.

Urge, portanto, corrigir essa situação, com uma mudança legislativa, mudança nos sistemas, ainda mais integração de dados, ou seja, a oficialização do acompanhamento do crescimento da empresa nas licitações e contratos públicos, a exemplo do que fazem os norte-americanos, que passam a monitorar sempre os contratos que vão sendo assumidos pelas empresas enquadradas no conceito de “small business”.

Porque as punições previstas na Lei Complementar 123/2006 ainda não são freqüentes?

Todo empresário, ao disputar uma licitação, deve conhecer ao máximo o seu concorrente e o seu “market share”, ou seja, a parcela de mercado do mesmo dentro das contratações governamentais, a começar, por exemplo, por uma consulta ao www.transparencia.gov.br, pelo qual é possível avaliar, estrategicamente, pelo menos na área federal, quais os contratos públicos firmados com determinada empresa.

Essas informações deveriam ser apresentadas em licitações, aos pregoeiros e presidentes de comissão de licitação, a fim de que aqueles licitantes que efetivamente não têm direito aos benefícios da Lei Complementar 123/2006 não façam uso irregular das prerrogativas criadas para as microempresas e empresas de pequeno porte.

Também quanto à questão de não-regularização de documentação de uma microempresa ou empresa de pequeno porte, é preciso ter consciência de que isso pode gerar a aplicação de sanção entre as previstas no artigo 81 da Lei 8.666/93, conforme ressalvado no § 2º do artigo 43 da Lei Complementar nº 123/2006.

Entretanto, o fato é que hoje a situação fica resolvida, muitas vezes, no campo de falta de comprovação da condição de microempresa e, simplesmente, passa-se à próxima colocada, sem punir aquela que se declarou quando não poderia.

Em todos os casos, invocar os benefícios do novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte deve ser algo feito com responsabilidade e, aos outros licitantes, cabe fiscalizar e denunciar possíveis irregularidades, em face das quais o agente público tem o dever de agir e iniciar processo de punição.

Em termos de problemas, qual a comparação a ser feita com o sistema norte-americano, que inspirou a Lei brasileira?


Nos Estados Unidos, onde a política de inserção de pequenas empresas nas compras governamentais começou ainda na década de 40, a agência independente “The U.S. Small Business Administration”, atualmente, possui uma detalhada base de dados das empresas que se enquadram no conceito de “small business”, inclusive, com previsão de re-certificação periódica do estado da empresa.

Por outro lado, há a previsão de pena de multa de até U$ 500.000 (quinhentos mil dólares) e prisão de até 10 (dez) anos, ou ambos, além da perda dos contratos vigentes e impedimento de novos contratos por até 3 (três) anos, para quem falsear a verdade sobre o estado da empresa, pretendendo enquadrá-la dissimuladamente como “pequena empresa”, visando obter contratos do governo.

Não obstante, lá os problemas graves também existem e vários foram os casos de fraudes, podendo-se mencionar que, no período compreendido entre os anos de 2000 a 2005, mais de U$ 100.000.000.000,00 (cem bilhões de dólares) foram desviados das cotas que eram reservadas às verdadeiras pequenas empresas e, de forma oculta, foram parar em grandes companhias, entre outros, de setores de informática, internet, aviação e petróleo.

Aqui no Brasil, isso precisará ser evitado com a eficaz aplicação das regras de impedimentos previstas nos incisos do § 4º do artigo 3º da Lei Complementar 123/2006, o que ainda não vem ocorrendo.

As licitações concluídas com vícios na aplicação do novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte podem ser anuladas?

Sim, ato administrativo viciado pode e deve ser anulado, especialmente quando causa prejuízos a terceiros, mas é preciso lembrar que nos casos em que ocorreram entrega de bens, prestação de serviços e valores já foram pagos a situação fica mais complicada, porque, no Judiciário, corre-se o risco de uma decisão que adote a linha de entendimento de que se perdeu o objeto da demanda, uma vez já assinado e executado o contrato administrativo. Apesar de não haver unanimidade sobre o tema, é possível que isso aconteça.

Então, tudo dependerá das circunstâncias do caso, do estágio da licitação e da contratação, sendo certo que tanto o Poder Judiciário quanto os tribunais de contas podem suspender a assinatura e a execução do contrato.

O mais indicado é fazer um trabalho completo, desde a verificação de editais omissos, passando pela provocação dos temas aqui tratados em recursos administrativos, além das situações particulares do enquadramento da empresas, até, enfim, se partir para uma ação externa.

Conclusão

Nesse período de experiência do novo Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte ficou evidente que agentes públicos precisam ser cautelosos nos documentos exigidos nos editais e que empresários precisam fiscalizar ainda mais a verdadeira condição de enquadramento dos outros licitantes, zelando pela observância dos limites legalmente estabelecidos.

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    sócio de Palomares Advogados, pós-graduado em Direito Público pelo IDP. Especialista em licitações e contratos administrativos, é autor do livro A defesa da empresa na licitação – Processos administrativos e judiciais.

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