Grampo público

Gravação de entrevista sem autorização serve como prova

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5 de julho de 2007, 18h12

Por sugerir, em entrevista a um jornal, que o antecessor tinha Aids, um prefeito foi condenado a pagar R$ 15 mil de indenização por danos morais. A decisão é da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que considerou como prova a gravação da entrevista com o prefeito de Candelária (RS), divulgada em um jornal de Santa Cruz do Sul (RS).

Com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, o desembargador Odone Sanguiné, relator do caso, considerou legal a gravação da entrevista como prova. Segundo ele, a Constituição veda a interceptação, quando um terceiro faz a gravação sem o consentimento dos que participam, de fato, da conversa.

Mas não foi o caso do prefeito, já que ele falou com os jornalistas, sabendo que se tratava de uma entrevista. “Ora, o réu chega a perguntar aos seus interlocutores: ‘quem faz a impressão para vocês? Gazeta?’”, afirmou.

A 9ª Câmara do TJ gaúcho considerou que não havia qualquer interesse público ao divulgar uma informação do estado de saúde de outras pessoas, sobretudo, uma doença que gera preconceito e que o ex-prefeito não tem.

O prefeito havia dito que jogou a cadeira do antecessor fora, com medo de pegar Aids, e que levou uma cadeira da própria loja. Ele alegou que não agendou entrevista com a imprensa e que os repórteres não haviam se identificado, de forma que a conversa foi gravada clandestinamente. O argumento não foi aceito no TJ gaúcho. Cabe recurso.

Leia a decisão:

APELAÇÃO CÍVEL 70019425313

NONA CÂMARA CÍVEL

COMARCA DE CANDELÁRIA

APELANTE/APELADO: LAURO MAINARDI

APELANTE/APELADO: ELCY SIMOES DE OLIVEIRA

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Nona Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em desprover o 1º recurso de apelação e prover o 2º recurso de apelação, para o fim de majorar o valor da indenização para R$15.000,00 (quinze mil reais), mantendo, no mais, a bem lançada sentença.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des.ª Marilene Bonzanini Bernardi (Presidente) e Des. Tasso Caubi Soares Delabary.

Porto Alegre, 20 de junho de 2007.

DES. ODONE SANGUINÉ,

Relator.

RELATÓRIO

Des. Odone Sanguiné (RELATOR)

1. Trata-se de duas apelações cíveis interpostas por LAURO MAINARDI (1º apelante) e por ELCY SIMOES DE OLIVEIRA (2º apelante) nos autos da AÇÃO DE INDENIZAÇÃO por danos morais movida pelo 2º apelante em face do 1º apelante, inconformados com a d. decisão do Juízo a quo que julgou procedente o pedido, condenando o réu a pagar ao autor a importância correspondentes a trinta salários mínimos na data da sentença, daí corrigida monetariamente pelo IGPM, acrescida de juros de mora, à taxa de 12% ao ano, a contar da citação, mais custas e honorários de advogado, fixados em 20% do valor da condenação.

2. Em suas razões (fls. 170/178), o 1º apelante alega que é cediço que ninguém pode contrair o vírus HIV pelo simples fato de sentar-se numa cadeira. Diz que o apelante mencionou apenas a expressão “o cara que sentava na cadeira”, do que não se pode extrair tenha o apelado sofrido danos morais. Assevera que a conversa telefônica não foi autorizada pelo apelante, tanto que o Compact Disk trazido aos autos já inicia a gravação no meio do diálogo. Alega que foram dois jornalistas a entrar na sala do apelante, um mantinha o diálogo, enquanto o outro o gravava. Afirma que o simples fato de tirar fotografia, por ocasião da visita dos jornalistas, não implica a sua ciência sobre o ocorrido. Sustenta que em momento algum foi agendada entrevista com a imprensa tampouco os repórteres identificaram-se, de forma que a conversa foi gravada clandestina e ilicitamente. Em tese alternativa, pugna pela redução do valor indenizatório e pela minoração dos honorários advocatícios, arbitrados em 20% sobre o valor da condenação.

3. Em suas razões (fls. 170/178), o 2º apelante pede a majoração do valor indenizatório. Assevera que não tem grandes condições financeiras, mas possui patrimônio moral invejável que precisa ser preservado. Diz que o apelado detém condições econômicas compatíveis com a majoração da verba. Por fim, requer o provimento do recurso.

4. Os apelados ofereceram contra-razões (fls. 190/195 e fls. 201/204), postulando o desprovimento da apelação da parte adversa.

5. Subiram os autos a esta Corte. Distribuídos, vieram conclusos.

É o relatório.

VOTOS

Des. Odone Sanguiné (RELATOR)

Eminentes Colegas!

6. O autor, ex-prefeito do Município de Candelária, ingressou com ação de indenização contra o então prefeito da Cidade, ora réu, em razão de publicação jornalística datada de julho de 2005, no jornal Autódromo, de Santa Cruz do Sul, em cuja manchete lê-se “Lauro Mainardi critica prefeitos anteriores” e cujo teor relevante ao caso consiste no seguinte, verbis: “(…) O Prefeito falou também de uma mulher que foi a Prefeitura brigar com ele porque estava na justiça por falta de pagamento de impostos, tudo porque segundo ele, o cara que sentava na cadeira que ele jogou no lixo com medo de pegar AIDS e trouxe a que ele senta da sua própria loja, disse a ela que não precisaria pagar e logo que perdeu a eleição processo de cobrança, e agora ele leva a culpa. (…) O difícil é fazer dinheiro, gastar qualquer bobo gasta. (…) porque os outros prefeitos sabiam gastar mas não sabiam arrecadar (…).” (p. 06 do jornal, exemplar completo à fl. 23).


7. O Juízo a quo julgou procedente o pedido, condenando o réu a pagar ao autor a importância, a título de danos morais, correspondente a trinta salários mínimos na data da sentença, daí corrigida monetariamente pelo IGPM, acrescida de juros de mora, à taxa de 12% ao ano, a contar da citação.

8. Em apelação, LAURO MAINARDI centra as suas teses recursais em três pontos: (a) imprestabilidade da prova coletada ao presente caso, tendo em vista a ausência de sua autorização, para a gravação do diálogo e posterior publicação; (b) ausência de danos morais decorrentes das palavras proferidas; (c) excessividade do valor condenatório. Por sua vez, em seus recurso, ELCY SIMOES DE OLIVEIRA pede a majoração da indenização.

a) Da alegação de prova ilícita

9. A despeito do arrazoado recursal, entendo que a gravação da conversa entre o apelante e os jornalistas foi produzida de forma lícita, prestando-se como meio de prova a fim de demonstrar os fatos narrados na exordial. O registro de diálogo com o fito de comprovar ilícito penal e civil praticado por um dos interlocutores ofensivo a direito subjetivo do outro serve como prova lícita e moralmente legítima.

10. A jurisprudência do STF e a do STJ consideram lícita a gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último, não havendo violação do direito à privacidade (HC 75338/RJ, Rel. Min. Nelson Jobim, 2ª Turma, STF, julgado em 11/03/1998; RESP 9012/RJ, Rel. Min. Cláudio Santos, Rel. p/ acórdão Min. Nilson Naves, 3ª Turma, STJ, julgado em 24/02/1997).

11. Na esfera civil, ainda que a gravação tenha sido feita por um dos interlocutores sem a ciência dos outros, pode ser utilizada como meio de prova no processo, inexistindo razão para ser considerada ilícita, haja vista que a garantia constitucional refere-se à interceptação telefônica feita por terceiros (HC 75.338, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 25.09.98).

12. Além de não configurar interceptação telefônica, cujo procedimento exige formalidade indispensável, os autos demonstram a ciência do apelante sobre a sua condição de entrevistado naquela ocasião, sobre a qualidade de jornalistas das duas pessoas que ingressaram em seu gabinete, com quem desenrolou a conversa e sobre a publicação do teor do diálogo.

13. Ora, o réu chega a perguntar aos seus interlocutores: “quem faz a impressão para vocês? Gazeta?”, ao que os repórteres responderam que a impressão se realizava em Cachoeira do Sul. Além disso, a fotografia do apelante, com o calendário aberto no mês de julho de 2005, mês da publicação jornalística, em postura informal, deixa entrever o caráter não-oficial da foto e corrobora ainda mais a completa ciência do autor sobre o caráter de entrevista dado ao diálogo posteriormente publicado. Nada há nos autos a conduzir para a utilização de fotografia disponibilizada pela sua assessoria anteriormente à entrevista. Ainda no ponto, também merece chancela a conclusão da sentença no sentido de que “a audição da entrevista permite verificar que o gravador esteve disposto perto do réu e distante dos entrevistadores, o que seria incomum em gravação clandestina, havendo ruído de pancadas, facilmente identificáveis como batidas de dedos ou caneta sobre a mesa, onde, por óbvio, estava posicionado o gravador.” (fls. 157/158).

14. Sobre a questão, veja-se que a testemunha ANDRÉ ROHDE também foi entrevistada pelos mesmos jornalistas para a referida edição de julho de 2005 do jornal, afirmando que a conversa foi gravada e que foi informado de que se trava de uma entrevista (fl. 132). Ademais, CLÉCIO DO NASCIMENTO (fl. 134), diz que, como recepcionista do gabinete do prefeito, conduziu os dois homens à sala de imprensa. Ora, dificilmente dois cidadãos comuns, senão jornalistas, seriam conduzidos à sala de imprensa.

15. Portanto, a gravação foi revelada pelos jornalistas, quando da sua execução. Na esteira desse raciocínio, eis douto aresto do colendo Superior Tribunal de Justiça, mutatis mutandis:

“RECURSO ESPECIAL. PENAL. PROCESSO PENAL. (omissis). GRAVAÇÃO DE CONVERSA TELEFÔNICA. DIVULGAÇÃO PELA IMPRENSA. VALIDADE DA PROVA. (omissis). Alínea “c”. Este Superior Tribunal de Justiça vem prestigiando a tese de que a gravação de conversa telefônica por um dos interlocutores não é interceptação telefônica, sendo lícita como prova no processo penal.

(omissis).”1

16. No mesmo diapasão, voto exarado pelo Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha, nos autos do Agravo de Instrumento nº 70006265821, abaixo transcrito:

“A decisão agravada no que tange à autorização para degravar a fita magnética juntada pela autora na ação de indenização proposta, não fere norma constitucional ou infraconstitucional. A prova impugnada é lícita, pois não configura invasão de privacidade ou intimidade do recorrente, pressupostos inarredáveis para atribuir-se a pecha de ilicitude à prova.

A gravação feita pela parte autora, de diálogo mantido com o preposto da parte demandada, configura simples registro da conversação havida entre os locutores. Não pode ser considerada como prova obtida de forma subreptícia ou por simulação, com violação do direito constitucional de privacidade.

Doutrinando sobre o uso legítimo da gravação magnética como meio de prova, ensina HUMBERTO THEODORO, em artigo publicado na RJTAMG 51/25, citado pela 5ª Câmara Cível do TAMG, ao ensejo do julgamento do AI 185.338.5, acórdão publicado na RJ 218/87 que: “não é a gravação magnética, em si, um ato imoral ou ilícito. O que não se tolera é o seu emprego de maneira clandestina, com violação da garantia de intimidade e de sigilo telefônico, ou de qualquer outro sigilo legalmente tutelado’‘.

A finalidade da garantia constitucional de que nenhuma prova será produzida no processo se obtida por meio ilícito, não é restringir o emprego da técnica na produção da prova judicial, mas de conciliar o desenvolvimento tecnológico, tão almejado por todos.

O que a Constituição veda é a interferência de terceiro no diálogo, sem a aceitação dos interlocutores. Aquilo que se denomina de interceptação, dando azo à gravação clandestina. Mas a conversa regular entre duas pessoas, em livre expressão de pensamento, admite gravação por uma das partes”.


17. Neste passo, reconheço como legítima a prova ensejadora do alegado dever de indenizar do réu.

b) Dos pressupostos da responsabilidade civil

18. A contenda funda-se na discussão quanto à existência de responsabilidade civil extracontratual, em virtude de lesão a direito subjetivo do autor ELCY. Presente o nexo de causalidade entre a conduta culposa/dolosa do demandado LAURO e o constrangimento sofrido pela apelante, surge o dever de indenizar os danos morais por esta suportados, consoante as regras consubstanciadas nos artigos 186 e 927 do CC/2002.

19. Considerando que o dano moral refere-se à violação dos direitos referentes à dignidade humana, a doutrina especializada e a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça vêm entendendo que a conseqüência do dano encontra-se ínsita na própria ofensa, porquanto deflui da ordem natural das coisas. Nessa perspectiva, para a demonstração do dano moral basta a realização da prova do nexo causal entre a conduta indevida e o resultado danoso. Cuida-se de hipótese de dano moral in re ipsa, que dispensa a comprovação da extensão dos danos, sendo estes evidenciados pelas circunstâncias do fato.

Nos mesmos lindes, segue jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

“CIVIL. DANO MORAL. (…). A jurisprudência desta Corte está consolidada no sentido de que, na concepção moderna do ressarcimento por dano moral, prevalece a responsabilização do agente por força do simples fato da violação, de modo a tornar-se desnecessária a prova do prejuízo em concreto, ao contrário do que se dá quanto ao dano material. (…) Recurso não conhecido”.(RESP 556200 / RS ; Recurso Especial 2003/0099922-5, Quarta Turma do STJ, Relator Min. Cesar Asfor Rocha (1098), Data da Decisão 21/10/2003, DJ Data:19/12/2003 PG:00491).

20. No caso, patente que a menção do demandado de que “o cara que sentava na cadeira que ele jogou no lixo com medo de pegar AIDS e trouxe a que ele senta da sua própria loja” refere-se ao autor, prefeito municipal na gestão anterior à do réu e quem sentava ‘naquela cadeira’ antes dele. É notório que o vírus HIV não é transmitido pelo simples contato físico, deixando subjacente, nas palavras do réu, manifesta carga preconceituosa aos acometidos pela doença e, sobretudo, maculando a honra subjetiva e objetiva do autor porque ele não tem AIDS (fl. 27).

21. Em caso semelhante, já reconheci a presença de danos morais a quem tem a sua intimidade violada em publicação jornalística que noticia, verdadeira ou falsamente, ser o autor portador do vírus HIV (Apelação Cível n. 70014534747). Isso porque tal informação desborda do direito à livre manifestação do pensamento, ausente qualquer interesse público na veiculação do estado de saúde do autor, mormente em se tratando de doença que gera preconceito e discriminação perante à sociedade.

c) Quantum indenizatório

22. Nestes lindes, em relação ao quantum indenizatório, registro que o mesmo deve representar para a vítima uma satisfação capaz de amenizar de alguma forma o sofrimento impingido. A eficácia da contrapartida pecuniária está na aptidão para proporcionar tal satisfação em justa medida, de modo que não signifique um enriquecimento sem causa para a vítima e produza impacto bastante no causador do mal a fim de dissuadi-lo de novo atentado.

23. De outra banda, importa salientar que a compensação pelo prejuízo moral não deve acarretar enriquecimento indevido. A propósito, com propriedade, asseverou o eminente Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana: Indenização por dano moral não é prêmio, não devendo tornar mais atraente o seu ganho do que a inexistência do fato (Ap. nº 70000180133, 10ª Câmara Cível do TJ/RS, j. 28/10/1999).

24. Neste quadrante, entendo que a condição econômica das partes, a repercussão do fato, a conduta do agente – análise de culpa ou dolo – devem ser perquiridos para a justa dosimetria do valor indenizatório. No ponto, o autor teve exposta sua intimidade, ao lhe ser aventada a possibilidade de portar o vírus HIV. A entrevista foi destinada a colher informações sobre a gestão financeira de recursos da prefeitura, com eventual patrocínio municipal ao concurso de Miss Rio Grande do Sul. Neste passo, nem mesmo o assunto encabeçado no diálogo justificaria a ofensa grave propalada pelo réu. O dolo do demandado em ofender moralmente o autor ficou caracterizado. As condições econômicas das partes indicam estabilidade compatível com o valor condenatório razoável fixado na sentença.

25. Ponderados tais critérios objetivos, o valor de trinta salários mínimos na data da sentença (08 de janeiro de 2007, quando o SM valia R$350,00) totalizando R$ 10.500,00 (dez mil e quinhentos reais), a título de indenização, merece majoração para atenuar as conseqüências causadas à honra da pessoa do ofendido, não significando um enriquecimento sem causa para a vítima, punindo a responsável e dissuadindo-a da prática de novo atentado. Neste passo, fixo em R$15.000,00 (quinze mil reais), mantidos os consectários legais fixados na sentença.

26. Sucumbente o demandado, condeno-o ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios ao patrono da autora, arbitrados em 20% (dez por cento) do valor da condenação, levando-se em linha de conta os preceitos do art. 20, § 3º, alíneas a, b e c, do Código de Processo Civil. No ponto, os causídicos do autor conduziram a causa com zelosa diligência, de acordo com a natureza singular da demanda.

d) Dispositivo

27. Ante o exposto, voto no sentido de desprover o 1º recurso de apelação e prover o 2º recurso de apelação, para o fim de majorar o valor da indenização para R$15.000,00 (quinze mil reais), mantendo, no mais, a bem lançada sentença.

Des. Tasso Caubi Soares Delabary (REVISOR) – De acordo.

Des.ª Marilene Bonzanini Bernardi (PRESIDENTE) – De acordo.

DES.ª MARILENE BONZANINI BERNARDI – Presidente – Apelação Cível nº 70019425313, Comarca de Candelária: “1º APELO DESPROVIDO. 2º APELO PROVIDO. UNÂNIME.”

Julgador(a) de 1º Grau: GERSON MARTINS DA SILVA

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