Casos verídicos

Chamar irmãos Cravinhos de delinqüentes não causa dano moral

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29 de janeiro de 2007, 15h26

A revista IstoÉ e o psiquiatra Içami Tiba estão livres de pagar indenização por danos morais para Daniel, Cristian e Astrogildo Cravinhos, por chamar os três de delinqüentes. A decisão é da juíza Fernanda de Carvalho Queiroz, da 14ª Vara Cível de São Paulo. Cabe recurso.

De acordo com o processo, Içami Tiba, como especialista em educação, deu uma entrevista à revista IstoÉ para falar sobre a educação dos filhos na sociedade contemporânea. Nesta entrevista, ele foi perguntado sobre o caso Suzane Von Richtofen, condenada por matar os pais com a ajuda do namorado (Daniel Cravinhos) e o irmão dele (Chistian Cravinhos).

O psiquiatra afirmou que Suzane é uma pessoa com baixa estima. A afirmação serviu como gancho para a seguinte pergunta: “mas nem todo mundo que tem baixa estima é um criminoso em potencial, não?”. Içami Tiba respondeu: “ Não é. Para chegar a esse ponto, precisa de mais distorções. Nesse caso, estão envolvidos a baixa auto-estima, que vem da educação, o uso de drogas, que compromete a personalidade, e as más companhias. Esses rapazes, Daniel, o irmão e o próprio pai, já eram altamente delinqüentes”.

Pai e filhos não gostaram a afirmação e entraram com a ação de indenização por danos morais. Eles pediram R$ 417 mil de reparação. A juíza não acolheu o pedido. “Os casos verídicos mencionados pelo entrevistado ora réu somente o foram por se tratar de casos notórios passíveis de enquadramento e ilustração das explicações científicas por ele prestadas”, explicou a juíza.

A juíza afirmou que o próprio psiquiatra, quando ouvido, disse que para a psiquiatria, delinqüente é aquele que pratica o ato e cujos responsáveis não tomam qualquer medida para proibir a prática. “O depoente baseado em reportagem publicada em revista que narrava que os irmãos Cravinhos tinham praticado atos delinqüentes na vizinhança, tendo inclusive motivado a mudança de vizinhos, teriam praticado atos de delinqüência antes da ocorrência do crime mencionado nestes autos. Assim, sob o ponto de vista psiquiátrico seriam delinqüentes, bem como o pai, que não teria tomado as medidas cabíveis”.

A juíza concluiu que, se o texto foi fundado em reportagens e em afirmações dos próprios condenados, não há como dizer que houve “qualquer juízo de valor, ou pessoalidade capaz de reconhecer, no agir das rés, prática de ato além dos limites lhe impostos pela Constituição Federal”.

Içami Tiba foi representando pelo advogado José Ernesto de Barros Freire, do Barro Freire Advogados.

Outro pedido

Em maio do ano passado, a Editora Globo foi condenada a pagar R$ 35 mil de indenização por danos morais para Astrogildo Cravinhos. Astrogildo Cravinhos processa a editora porque a revista Crescer publicou uma entrevista com a mulher dele, Nadja, dizendo que ele tinha sido “condenado por falsidade ideológica e uso de documento falso”, referindo-se a carteira da OAB.

Advogado ele não é. Nos registros da OAB paulista há um Astrogildo Cravinhos de Paula e Silva. Certamente, pai do Astrogildo Cravinhos de Paula e Silva Filho, já que nasceu em 1916 e tem número de inscrição 4.166 (a numeração atual da OAB já passa dos 250 mil). Se ele usou carteira da OAB, sua é que não é.

Mas o que ocorreu, de acordo com o processo, é que Astrogildo Cravinhos foi “indiciado” e não “condenado”. O juiz Maury Ângelo Bottesini, da 31ª Vara Cível de São Paulo, afirmou: “A culpa da ré [a editora] e a correspondente responsabilidade pela indenização decorem fundamentalmente da escolha de prepostos ignorantes do idioma em que devem expressar o pensamento e os fatos noticiados. No caso sob exame a autora da reportagem se mostrou ignorante a respeito do significado das palavras indiciado e condenado, e a editoria e a revisão do veículo que publicou a reportagem se mostraram inoperante, ou inexistente, ou até mesmo tão ignorantes como a autora da reportagem”.

Astrogildo alegou que a entrevista feita com a mulher “trouxe um acréscimo de responsabilidade”. A Justiça entendeu que o “equívoco desculpável da repórter teria que ser visto pela editoria ou pela revisão da publicação”. Como isso não ocorreu, o juiz decidiu que há o dever de indenizar. A Editora argumentou que a revista publicou nota reconhecendo o engano na entrevista dada pela mulher de Astrogildo, pessoa em tese habilitada a prestar informações sobre o cônjuge.

O crime

Suzane, seu namorado, Daniel Cravinhos, e o irmão dele, Christian Cravinhos, confessaram ter matado os pais dela, Marisia e Mandred Von Richthofen, com golpes de barra de ferro, na casa em que a família morava, em outubro de 2002.

Em julho do ano passado, Suzane e Daniel foram condenados a 39 anos e seis meses de prisão e Christian, a 38 anos e seis meses.


Processo 583.00.2005.002896-3

Leia a decisão:

Vistos. ASTROGILDO CRAVINHOS DE PAULA E SILVA FILHO, CRISTIAN CRAVINHOS DE PAULA E SILVA, DANIEL CRAVINHOS DE PAULA E SILVA, todos devidamente qualificados nos autos, moveram a presente ação de conhecimento, pelo rito ordinário contra IÇAMI TIBA e TRÊS EDITORIAL LTDA., também qualificados nos autos, alegando em síntese que tiveram conhecimento pela rede mundial de computadores (Internet) de que o primeiro réu concedeu entrevista a periódico publicado pela segunda ré, na qual diz que Susane Von Richthofen é uma pessoa de baixa auto-estima e que por isso, na adolescência, passou a fazer uso de maconha.

Nesta ocasião, conheceu um dos autores, Daniel, que somente estava interessado nos bens materiais dela, que a iludiu, culminando no assassinato dos pais dela.

Na mesma entrevista qualificou Daniel, seu irmão Cristian e o pai deles, Astrogildo, como delinqüentes. Com isso, ofendeu os direitos personalíssimos dos autores. Os réus são devedores solidários devendo ser condenados à reparação do dano causado por ato ilícito civil estimado em R$ 415.795,60 (quatrocentos e quinze mil setecentos e noventa e cinco reais e sessenta centavos), mais à obrigação de fazer consistente na publicação da sentença que acolher os pedidos.

Com a inicial vieram os documentos de fls. 31/64. Içami Tiba, devidamente citado, apresentou a contestação de fls. 92/106 impugnando o mérito da demanda e postulando pela improcedência do pedido. Juntou os documentos de fls. 107/157. Três Editorial Ltda., também citada, apresentou a contestação de fls. 159/173, invocando a preliminar de decadência do direito dos autores e em seguida, atacando o mérito do pedido. Requereu a extinção da ação com o acolhimento da preliminar ou pela improcedência do pedido. Colacionou aos autos os documentos de fls. 174/194. Houve réplica, fls.199/225. O feito foi saneado, rejeitando-se a preliminar levantada pela co-ré, fsl. 246/247.

No curso da instrução processual foram ouvidos o co-réu Içami em depoimento pessoal e duas testemunhas arroladas pelos autores, fls. 270/279. Encerrada a instrução processual foram apresentados os memoriais, fls. 284/289 e 291/295.

É o relatório.

Fundamento e DECIDO.

Bem se vê, por conseguinte, que a questão posta à apreciação passa pelo nevrálgico problema de superar a antinomia aparente que se apresenta entre a liberdade de expressão e os direitos da personalidade, um e outro tutelados com dignidade constitucional (CF/88., art. 5º, IV e V). A tese esposada pelos autores se sintetiza, sem maiores dificuldades em suposta caracterização de abuso de direito em detrimento da tutela de seus direitos da personalidade.

De pertinência singular, neste diapasão, o percuciente magistério de CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, segundo o qual, ‘o indivíduo, no exercício de seu direito, deve conter-se no âmbito da razoabilidade. Se o excede e, embora exercendo-o, causa um mal desnecessário ou injusto, equipara o seu comportamento ao ilícito e, ao invés de excludente de responsabilidade, incide no dever ressarcitório’ (Confira-se “Responsabilidade Civil”, 6ª Ed., pag. 296).

O mesmo mestre, ao desenvolver o tema em questão invoca ensinamentos dos mais renomados jurisconsultos franceses, cuja transcrição, longe de se tornar enfadonha, se me afigura sobremodo elucidativa. Senão, vejamos: RENÉ DE PAGE começa por assentar que o exercício dos direitos é condicionado a certas ‘regras fundamentais de polícia jurídica’.

Sem dúvida que todo direito enseja uma faculdade ou prerrogativa ao seu titular, mas ao mesmo tempo reconhece que tal prerrogativa deve ser exercida na conformidade do objetivo que a lei teve em vista ao concedê-la ao indivíduo’. Procurando elucidar o problema ligado ao limite do exercício do direito, essência da teoria em foco, EUGENE GAUDEMET sustenta que os direitos existem em razão de uma certa finalidade social e devem ser exercidos na conformidade deste objetivo.

Segundo o mestre, todo direito se faz acompanhar de um dever, que é o de se exercer perseguindo a harmonia das atividades. ‘A contravenção a este dever constitui abuso do direito’ (Théorie Générale des Obligations, p. 318). Citando os irmãos MAZEUD, esclarece que a caracterização da figura do abuso de direito toma forma quando o autor do dano exerceu um direito definido, mas além dos limites das prerrogativas que lhe são conferidas. Quando alguém se contenta em exercer estas prerrogativas estará usando o seu direito. Comete abuso quando as excede (Responsabilité Civile, vol. I, nº 550).

É do magistério de JOSSERAND, por fim, que se extrai, a meu ver, o verdadeiro fundamento e a essência da teoria, quando pontifica, in verbis: Os direitos se realizam, não em uma direção qualquer, mas em uma ambiência social, em função de sua missão e na conformidade destes princípios que são, como se disse, subjacentes à legalidade, e constituem, em seu conjunto, um direito natural de conteúdo variável e como uma superlegalidade.


É a teoria do abuso do direito que o mantém em seu caminho, e o impede de se afastar dele, conduzindo-o assim num impulso seguro até a finalidade a atingir (Louis Josserand, De l’Espirit des Droits et de le Leur Rélativité, p. 415, da ed. de 1939). Adverte-nos o mestre CAIO MÁRIO, ainda em sua obra ‘Responsabilidade Civil’, que a regularidade do exercício do direito deve ser apreciada pelo juiz com o seu arbitrium boni viri – o arbítrio de homem leal e honesto. Só assim equilibra-se o subjetivismo contido na excusativa do agente que, não obstante causar dano, exime-se de repará-lo.

A entrevista de fls. 37/43 concedida pelo co-réu Içami Tiba à Revista Isto é Gente e objeto da inicial tem como tema a educação dos filhos na sociedade contemporânea e as conseqüências dos modelos educacionais escolhidos à luz da psicologia. O co-réu é psiquiatra e psicoterapeuta especializado no relacionamento entre pais e filhos, sendo autor do livro Quem Ama Educa, um best-seller.

Nesta entrevista, perguntado sobre o caso Susane Von Richhofen, acusada de, juntamente com o namorado e com o irmão deste, ter matado os próprios pais, afirmou que ela é uma pessoa de baixa auto-estima. Esta afirmação serviu de gancho para a pergunta subseqüente: Mas nem todo mundo que tem baixa auto-estima é um criminoso em potencial, não? Sobreveio a seguinte resposta: Não é. Para chegar a esse ponto, precisa de mais distorções. Nesse caso, estão envolvidos a baixa auto-estima, que vem da educação, o uso de drogas, que compromete a personalidade, e as más companhias. Esses rapazes, Daniel, o irmão e o próprio pai, já eram altamente delinqüentes.

As considerações sobre o duplo homicídio bem como sobre a personalidade dos nele envolvidos cessaram na pergunta e resposta retro transcritas, vez que o co-réu passou a tecer outras considerações sobre a teoria de Anjos Caídos, ou seja, sobre a decepção dos pais que descobrem serem seus filhos usuários de drogas e o impacto que tal descoberta vem trazer às relações familiares, ou seja, permaneceu expondo considerações teóricas sobre educação, às vezes comentando fatos verídicos à medida que a entrevistadora os submetia a sua apreciação somente a título ilustrativo.

Às fls. 44/49 há cópias da mesma entrevista agora no periódico veiculado nas bancas de jornais. Os documentos subseqüentes tratam de informes sobre o total de circulação da revista Isto É, do curriculum vitae do co-réu Içami Tiba e das ações ajuizadas contra a co-ré Três Editorial Ltda. Da leitura da matéria impugnada se observa que se tratava de entrevista versando não sobre um fato concreto, mas sim sobre um estudo psicológico do atual modelo de educação dos filhos menores e as conseqüências dele decorrentes.

Os casos verídicos mencionados pelo entrevistado ora réu somente o foram por se tratar de casos notórios passíveis de enquadramento e ilustração das explicações científicas por ele prestadas. Nesta exata medida trouxe esclarecimentos o depoimento pessoal do réu: Para a psiquiatria, delinqüente é aquele que pratica o ato e cujos responsáveis não tomam nenhuma medida para coibir delinqüência.

O depoente baseado em reportagem publicada em revista que narravam que os irmãos Cravinhos tinham praticado atos delinqüentes na vizinhança, tendo inclusive motivado a mudança de vizinhos, teriam praticado atos de delinqüência antes da ocorrência do crime mencionado nestes autos. Assim, sob o ponto de vista psiquiátrico seriam delinqüentes, bem como o pai, que não teria tomado as medidas cabíveis para evitar a prática dessas condutas delinqüentes, pois se tivesse tomado poderia ter evitado a prática de atos delinqüentes.

Ressalte-se que o co-réu é médico psiquiatra com notório conhecimento em sua área de atuação, não tendo sobrevindo aos autos contraprova do conceito de delinqüência à luz da psiquiatria e psicologia. Dessarte, a notícia veiculada pela co-ré, oriunda de explicações científicas a respeito de um estudo de psicologia de autoria do co-réu, em nada excederam os limites de sua liberdade de expressão e de informação.

A matéria foi fundada em informações de notório conhecimento, vez que amplamente divulgadas pela imprensa nacional por ocasião das investigações sobre o duplo homicídio ocorrido na Família Von Richthofen, e do próprio julgamento dos acusados. Como já fora destacado, na notícia acima referida não se extrai qualquer juízo de valor, ou pessoalidade capaz de reconhecer, no agir das rés, prática de ato além dos limites lhe impostos pela Constituição Federal ou pela denominada Lei de Imprensa (Lei n.º 5.250/67). Assim, não há se falar em dano à esfera íntima dos autores passível de indenização.

Posto isso, julgo IMPROCEDENTES os pedidos formulados por ASTROGILDO CRAVINHOS DE PAULA E SILVA FILHO, CRISTIAN CRAVINHOS DE PAULA E SILVA, DANIEL CRAVINHOS DE PAULA E SILVA contra IÇAMI TIBA e TRÊS EDITORIAL LTDA., com supedâneo no artigo 269, I, do Código de Processo Civil.

Em virtude da sucumbência, condeno os autores ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios que arbitro em 15% (quinze por cento) do valor atribuído à causa, observando-se a disciplina do artigo 12 da Lei n. 1.060/50. P.R.I.C. Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.

São Paulo, 11 de janeiro de 2007.

FERNANDA DE CARVALHO QUEIROZ

Juíza de Direito

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