Legal, mas iníquo

Remuneração de suplentes no Congresso remunera o quê?

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21 de janeiro de 2007, 23h00

Ultimamente, estamos todos à volta com uma situação, no mínimo, curiosa (para não dizer trágica): a indignidade da remuneração sem trabalho. E — o que é pior — com dinheiro público. Dinheiro esse arrecadado de todo cidadão contribuinte, inclusive daqueles desempregados que, mesmo sem remuneração, auferem outras rendas, compram produtos industrializados, movimentam contas correntes, etc..

Falamos, é claro, dos subsídios dos 13 suplentes de deputado federal que, a partir do dia 3 de janeiro, tomaram posse de cargos eletivos para receber, durante um mês, cerca de R$ 46 mil cada um, sem poder prestar um único serviço à nação. Não discursarão na Câmara, não comporão comissões e nem apresentarão projetos, simplesmente porque o Congresso Nacional está em recesso.

O mais comezinho bom senso manda perguntar: afinal de contas, remunerar o quê? A palavra remuneração vem do latim (remuneratìo, ónis) e significa, etimologicamente, recompensa. Mas recompensar o quê? O bom-mocismo de quem afirma ter as melhores intenções, projetos de lei revolucionários e a infelicidade de não poder apresentá-los? Certamente, os subsídios previstos no artigo 39, parágrafo 4º, da Constituição, não se prestam a isso. Do contrário, qualquer outro cidadão — igualmente bem intencionado — poderia reivindicá-los, escudando-se na infelicidade de não ter composto uma chapa vencedora.

Ouve-se de parlamentares que há de ser assim, porque é o que dita a Constituição. Os jornais comungam desse mesmo fatalismo, já com alguma indignação. Essas impressões, porém, não correspondem à lógica do sistema jurídico brasileiro. Diziam os romanos que nem tudo o que é lícito, é honesto (“non omne quod licet honestum est”); e no Brasil, felizmente, há mecanismos jurídicos para debelar a aplicação iníqua da lei, sem desautorizá-la enquanto lei.

A lei — ou, mais amplamente, a regra jurídica — deve ser interpretada e aplicada conforme os princípios constitucionais. Entre os princípios que regem a administração pública de qualquer dos Poderes da República, está o da moralidade administrativa (artigos 5º, LXXIII, e 37, caput, da Constituição). Noutras palavras, às administrações públicas não basta o comportamento lícito; ele tem de ser, ainda, conforme a justiça, a eqüidade e o sentido comum de honestidade.

É certo que a Constituição, em seu artigo 56, parágrafo 1º, prevê a convocação do suplente quando o deputado é investido em cargo de secretário de Estado. Também o diz o artigo 241, II, do Regimento da Câmara. Mas essas regras não podem ser aplicadas, sem mais, quando significarem desperdício do dinheiro público. Não têm o condão de justificar pagamentos graciosos a 13 felizardos que, por mais bem-intencionados que estejam, nada farão que mereça ser remunerado. Do contrário, revestem-se — na aplicação — de imoralidade administrativa, ferindo de morte o princípio constitucional.

Cabe aqui percutir, d’além-mar, a lição memorável de Canotilho, conhecido jurista português, segundo a qual as administrações, ao praticarem atos de execução de regras constitucionais, devem executá-las constitucionalmente, interpretando-as e aplicando-as de conformidade com os direitos, liberdades e garantias. Ora, a moralidade administrativa é, no Brasil, uma garantia da sociedade e de todo cidadão. Ao cidadão — ou ao seu guardião maior, o Ministério Público — incumbe, agora, reclamá-la. E ao Judiciário, se provocado, fazê-la valer.

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