Circo da notícia

Uso da imprensa na criminalização prévia é fato rotineiro

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17 de janeiro de 2007, 13h31

Imaginemos, só para argumentar, que o casal que comanda a Igreja Renascer seja absolutamente inocente. Que, nos tribunais, fique claro que jamais cometeram delito algum. Não importa: já estão condenados. E ai do juiz que se atrever a inocentá-los: a opinião pública (ou “clamor popular”) vai considerá-lo suspeito.

Este é um tema que precisa ser discutido entre nós, jornalistas: a aceitação passiva das versões de promotores, delegados, autoridades diversas, divulgadas amplamente, maciçamente, nos títulos, enquanto a defesa fica com um parágrafo tipo “fulano nega as acusações”, o que leva à condenação moral dos acusados (e a casos como o da Escola Base). As autoridades têm de ser ouvidas, mas sem que se esqueça que nunca, nem nos crimes mais escancarados da época da ditadura, faltaram autoridades que endossaram formalmente a tese do suicídio.

O uso da imprensa na criminalização prévia dos acusados é hoje fato comum, rotineiro. Autoridades municiam a imprensa com farto material de reforço à versão que defendem, para que os juízes, sentindo-se pressionados pelo “clamor popular”, concordem mais facilmente com as medidas propostas pelos promotores. Num caso recente, em Ribeirão Preto, num dia especialmente quente, um promotor saía da sala onde se interrogava um suspeito, subia e descia escadas, esfalfava-se, suava desesperadamente, tudo para garantir à imprensa, quase on-line, a versão dos acusadores.

Um grande advogado, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, escreveu excelente artigo no O Estado de S. Paulo do dia 10 deste mês “A realidade do combate ao crime das elites”, que pode ser encontrado no endereço eletrônico www.brickmann.com.br , mostrando que o aparato usado nas buscas e prisões, aliado ao noticiário francamente desfavorável aos acusados, constitui-se numa pena extra, não prevista na lei. Imaginemos outro cenário: um jornalista sendo acusado por crime de opinião, com promotores ávidos por entrevistas e repórteres ávidos para publicá-las. Como vemos, está mais do que na hora de debater este tema.

A morte e a morte

A imprensa noticiou que a faxineira do novo governador do Rio, Sérgio Cabral, morreu de infarto depois de ficar seis horas na fila de um hospital público. O secretário da Saúde do município desmentiu as matérias: disse a paciente foi atendida em nove minutos, fez vários exames (incluindo uma tomografia), teve três paradas cardíacas, duas das quais revertidas e a terceira fatal. Resposta do jornal: a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal da Saúde, procurada, disse apenas que “todo o atendimento necessário nesse caso foi dado”.

Quem tem razão? É questão a ser investigada. O fato é que não se deve crucificar um hospital porque as informações da Assessoria de Imprensa foram genéricas e insatisfatórias. Certos dados estão registrados, são concretos: hora da chegada, hora do atendimento, procedimentos médicos. Por que não insistir em consultá-los e, caso o pedido seja negado, registrar o fato na reportagem?

Pouca pesquisa, claro. E má vontade: o sistema público de saúde poderia ser muito melhor, mas será impossível para a imprensa que esteja certo alguma vez?

Nacional x global

O caso de Daniella Cicarelli contra o .YouTube tem um ângulo que precisa ser amplamente discutido: as leis que nos protegem são nacionais, enquanto a Internet é internacional. Vamos esquecer a transa à milanesa, na praia, e entrar no que realmente interessa: com a globalização das comunicações, como fica a proteção aos direitos individuais?

Vejamos um caso hipotético: alguém acusa o Sr. Fulano de Tal, via Internet, de estuprar ovelhas. A acusação pode ser acompanhada de um filme, possivelmente forjado, mostrando o cavalheiro em ação. Como evitar que o ataque continue a ser divulgado? Não dá: mesmo que o provedor esteja num país civilizado (o que nem sempre acontece) e se disponha a atender a um pedido judicial de outra nação, retirando algum conteúdo condenado, este conteúdo pode ser facilmente recolocado por qualquer pessoa que entenda um pouco do assunto.

Imaginemos um caso ainda pior: endereços eletrônicos racistas, distribuídos na rede por provedores situados em países longínquos, que garantem a seus clientes o absoluto anonimato, inclusive pela freqüente mudança do IP (uma espécie de número de identidade) de seus computadores.

Liberdade de expressão? Claro; só que ninguém é livre para gritar “fogo” num estádio lotado. E essa situação fica ainda mais clara se o caro colega imaginar que alguém decida difamá-lo, utilizando a tecnologia da rede mundial. Que fazer? Este colunista não tem a menor idéia. Sabe apenas que o assunto tem de ser debatido, envolvendo especialistas em Internet, juristas, gente das mais diversas áreas do conhecimento. Por enquanto, discute-se a rapidinha da modelo com seu namorado, num site de boa reputação, com sede conhecida e dirigentes certos e sabidos. E quando houver algum assunto realmente sério, num desses sites que não informam de jeito nenhum quem são seus clientes?

Rápido no gatilho

Certas notícias deveriam despertar a atenção dos editores por suas características. São esquisitas; merecem maior investigação antes de publicadas. É o caso, por exemplo, da informação do Sunday Telegraph de que Israel prepara um ataque ao Irã com bombas nucleares táticas, para impedir que o país desenvolva armas atômicas. Por que a notícia é esquisita?

O principal motivo é que significaria que Israel, que até agora negou a posse de armas nucleares, estaria admitindo a existência de um arsenal atômico. Tudo indica que Israel tenha armas nucleares: nega-se a permitir inspeções internacionais em seus reatores, seqüestrou e prendeu um especialista israelense que denunciou a produção de bombas atômicas, tem mísseis de longo alcance que podem transportá-las. No momento em que Israel usar armas nucleares, táticas ou não, estará aberto o caminho para retaliações. E pelo menos um país muçulmano, o Paquistão, possui bombas atômicas.

Se a notícia fosse mais bem investigada, o editor descobriria que o repórter que assina a matéria, Uzi Mahnaimi, tem o hábito de publicar esta mesma matéria de vez em quando. Em 2000, no próprio Sunday Telegraph, informou que Israel atacaria a Síria se as negociações de paz com os palestinos gorassem. As negociações goraram e não houve ataque. Em 2005, Mahnaimi escreveu que Israel estava pronto para atacar o Irã. Em 2006, disse que Israel estava preparando um ataque à Síria e ao Irã. Um dia, quem sabe, ele pode acertar.

A bomba inteligentíssima

A melhor história de Uzi Mahnaimi, entretanto, é a da bomba étnica: uma bomba desenvolvida por Israel que mataria exclusivamente palestinos, poupando todos os demais seres humanos (a notícia não esclarecia se os árabes cristãos seriam ou não poupados).

Idiotas do mundo inteiro, inclusive do Brasil, a-do-ra-ram a besteira e se apressaram em republicá-la. Ninguém fez a pergunta mais óbvia: como a bomba distinguiria um palestino de um israelense? Faria entrevistas antes de explodir?

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