Conto do vigário

Advogado engana cliente com venda fictícia de juiz

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12 de janeiro de 2007, 14h54

Gravações da Polícia Federal flagraram um advogado dando a entender que obteve uma liminar no Supremo Tribunal Federal graças a uma propina de R$ 600 mil que teria sido paga ao ministro Sepúlveda Pertence. A notícia, do jornalista Bob Fernandes, foi divulgada pelo site Terra Magazine.

A decisão em questão se deu em torno de matéria pacificada na Corte. O ministro apenas aplicou a jurisprudência da Casa, obedecendo entendimento do colegiado já consolidado e adotado em centenas de casos sempre no mesmo sentido.

Nas investigações, não há provas nem indicação da participação do ministro em qualquer negociação. Ele não é parte das gravações e nem mesmo é citado. Mas o caso referido foi de sua autoria. Em entrevista ao site do Terra, Pertence explica como funciona o esquema de venda de juízes: “Isso é coisa de um advogado sem escrúpulos, que diz ter comprado uma sentença que, na verdade, só poderia ter uma decisão em respeito a decisões iguais e anteriores do próprio tribunal”.

Em outras palavras, o cliente foi enganado pelo advogado. Isso porque, no caso da liminar em questão, a decisão do ministro Sepúlveda Pertence não poderia ser outra. Sem propina, todos os ministros do STF decidem da mesma forma quando o que está em discussão é o alargamento da base de cálculo da Cofins por meio da Lei 9.718/98.

O entendimento sobre o tema foi adotado pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, que é formado pelos 11 ministros, com base num voto do ministro Cezar Peluso. E Medida Cautelar em matéria pacificada é decidida rapidamente na maior parte das vezes.

A matéria versa sobre a base de cálculo da Cofins. A Emenda Constitucional 20 permitiu o alargamento da base de cálculo da contribuição ao determinar que ela incidisse sobre faturamento ou receita bruta das empresas. Mas antes mesmo da aprovação da Emenda, para apressar o processo e poder arrecadar mais rapidamente, o governo editou uma Medida Provisória em vez de enviar projeto de lei ao Congresso.

A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal, que decidiu que o alargamento da base de cálculo da Cofins foi inconstitucional porque não poderia ser regulamentado por MP. Essa esperteza do Fisco gerou oito anos de atraso de arrecadação para o governo.

Com a decisão, todas as empresas que perdem processos contra o recolhimento maior da Cofins nos tribunais de segunda instância recorrem ao STF. E os ministros que recebem em seus gabinetes os recursos, apenas aplicam o que já foi decidido no caso, como estabelece o Código de Processo Civil (artigo 557). E, por ser tratar de matéria fiscal, geralmente já com execuções judiciais em andamento nos calcanhares das empresas, as decisões costumam ser rápidas.

Caim e Abel

O conto da venda de sentença, em casos que o advogado conhece previamente a jurisprudência ou a posição do juiz, é antigo e bastante conhecido. Certa vez, um cliente quis certificar-se de que o pagamento a um ministro do STF seria feito. O advogado, conhecido em Brasília, à distância, no intervalo de uma sessão, entregou um envelope ao ministro onde, supostamente, estaria um cheque de uma quantia equivalente a 500 mil reais (a moeda era outra à época). Dentro do envelope, na verdade, havia um convite de casamento.

Anos depois, num encontro casual, o cliente que pensara ter “comprado” a decisão, cruzou com o ministro e resolveu agradecer o “favor”. O ministro, perplexo, tentou entender o que acontecera e, juntando informações, reconstituiu a tramóia — o que serviu para desmascarar o golpista.

Antes do advento da Internet, quando uma decisão levava dias para ser publicada, há o registro de pelo menos um caso em que advogado de outro estado acompanhava julgamentos do TST pela manhã. Com um resultado favorável na mão, o mau profissional telefonava para os clientes e avisava que sem pagar determinada quantia naquele dia, o pedido seria negado. Feito o depósito, horas depois o advogado informava que a tática funcionara. Outro caso que entrou para o folclore dá conta de que o irmão de um juiz “vendia” a decisão favorável às duas partes envolvidas. Depois do julgamento, o “Caim” devolvia o dinheiro a quem perdeu dizendo que o irmão não pudera atender o pedido.

No caso atual, um ministro da Corte classificou de “molecagem” a acusação de venda de sentença. “Isso deriva do clima podre de Brasília. Advogado afirmar que a aplicação de uma jurisprudência pode ser vendida é brincadeira.”

O advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano afirmou que “houve algum tipo de armação” de algum dos envolvidos. “Isso não pode prejudicar a escolha do ministro Pertence para o Ministério da Justiça. Caso isso prejudique sua nomeação, está aberta a temporada de caça às reputações de ministeriáveis.”

Leia a entrevista de Pertence ao Terra Magazine

Ministro, acabo de relatar ao senhor algo do conteúdo de conversas gravadas entre advogados e uns outros senhores que dizem, entre si, claramente que teriam comprado uma sentença dada pelo senhor. Certamente entraremos no mérito do caso, mas, para começar, pergunto ao senhor: o que significa isso?

Sepúlveda Pertence — Significa mais um caso de uma praga à qual, creio eu, todo juiz está sujeito diariamente…

Qual seria essa praga?

Sepúlveda Pertence —A suposta venda de decisões judiciais que de antemão se sabe qual será o teor…

Por que se sabe de antemão?

Sepúlveda Pertence — Vamos ao caso em questão: discutia-se a inconstitucionalidade de um dispositivo da Lei 9.718, de 1988, que ampliava a base de cálculo da Cofins. Ora, em 9 de Novembro de 2005, o plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade daquele dispositivo legal, tendo-se, como habitual nas questões tributárias que envolvem centenas, senão milhares de processos idênticos…

Criando uma decisão, a tal jurisprudência, na qual se baserão outras decisões de igual teor?

Sepúlveda Pertence — Exato.

E a partir daí um advogado, ou um atravessador, “esperto” pode sempre vender a sua Crônica de um Resultado Anunciado?

Sepúlveda Pertence — Crônica de um Resultado Anunciado… é uma definição muito precisa para esses casos (NR: o de decisões que obedeçam a um rito estabelecido por decisões iguais anteriores). Os gabinetes de diversos ministros se organizam, cada qual à sua maneira.

Como é no seu gabinete?

Sepúlveda Pertence — Tão logo identificado que se trata da mesma questão, é decidir imediatamente o caso. Só isso explica que tanto nesta questão quanto em dezenas de problemas similares o Supremo venha julgando, a cada ano, entre 80 mil e 100 mil processos. É esse rito que permite o trabalho caminhar nesse ritmo, e foi o que aconteceu no caso.

O senhor conhece o teor dos documentos, estes que Terra Magazine tem em mãos?

Sepúlveda Pertence — Recebi informações sobre eles, mas, assim como você recebeu e certamente não pode nem deve revelar suas fontes, terei que fazer o mesmo. Recebi informações de uma fonte que não se identificou.

O que o senhor recebeu?

Sepúlveda Pertence — Há um ou dois meses recebi, dessa fonte, cópias de conversas telefônicas interceptadas pela Polícia Federal, com ordem judicial, nas quais parece que um dos interlocutores era um advogado de nome Luis Fernando Severo Batista, que eu desconhecia inteiramente e que, segundo apurei, não consta jamais ter estado em meu gabinete. Nessa conversa, o advogado se vangloria de um grande feito…

É que, em 24 horas, havia obtido deferimento de uma Medida Cautelar requerida pelo Banco do Estado de Sergipe, Banese…

E qual seria o interesse do Banese?

Sepúlveda Pertence —Uma Medida Cautelar visava apenas suspender a exigibilidade de um crédito relativo à Cofins. Mas há mais: dizia o advogado que 24 horas depois do deferimento da cautelar, conseguira a decisão definitiva do próprio recurso extraordinário… deferida a Medida Cautelar, como consta da minha própria decisão, os autos aguardam a chegada de recurso extraordinário. Neste caso do Banese o que se sucedeu é que os autos já se encontravam em meu gabinete, que é onde, pela organização interna, os autos já deveriam estar…

E por isso…

Sepúlveda Pertence —Por isso, vinte e quatro horas depois de deferida a Medida Cautelar, em vez de baixarem os autos à secretaria para aguardar os do recurso principal, esse de logo foi decidido.

O que o advogado anuncia nas fitas como sendo fruto de sua ação junto aos tribunais superiores de Brasília…

Sepúlveda Pertence — Isso é o que um advogado inescrupuloso chama de “fazer elefante voar”, e, para cobrar mais por esta “façanha”, fica mais fácil dizer que o ministro também levou o seu…

É essa a “praga” à qual o senhor se referiu no início da nossa conversa?

Sepúlveda Pertence — Quando ainda presidia o Supremo Tribunal Federal, num debate sobre a instituição da súmula vinculante, (NR: o que permite o rito de julgar casos iguais de acordo com sentenças anteriores do tribunal) eu já identificava que ela contrariaria um tipo de interesse, o da advocacia de causas de teor antecipadamente conhecido por força da vinculação. Nestes processos tudo depende do escrúpulo do advogado: ou receber apenas os honorários ou dizer, insinuar, que parte do que cobra é destinado ao juiz.

Que providências o senhor vai tomar?

Sepúlveda Pertence — Soube de um processo em curso na Justiça Federal de Mato Grosso; o juiz determinou a remessa de cópias ao Supremo Tribunal Federal para que se apurasse a minha eventual corrupção. Este, de certo modo, é um caso feliz.

Por que feliz?

Sepúlveda Pertence — Porque se teve a oportunidade de ter uma prova concreta do crime praticado pelo advogado sem escrúpulos. O mais triste é que, na maioria das vezes, o juiz jamais saberá que foi vendido.

Ouve-se muito falar em compra de sentenças, por todo o Brasil e também aqui em Brasília. O senhor crê na existência dessas ações?

Sepúlveda Pertence — Onde houver um advogado desonesto pode haver conversas como essa. E, lamentavelmente, é provável que ocorra em tais casos, os de resultado previamente sabido. Basta um advogado desonesto.

O senhor não vê nenhuma correlação entre isso surgir exatamente agora, quando é apontado como um possível futuro ministro da Justiça?

Sepúlveda Pertence — Não sei, e nem estou preocupado com isso. O que dói realmente é que isso ocorra mais de 20 anos depois do dia em que, convidado pelo presidente Tancredo Neves, assumi a Procuradoria-Geral da República, e quase 18 anos depois de ter passado a integrar o Supremo Tribunal Federal por escolha do presidente José Sarney.

O que o senhor pretende fazer, que medida vai tomar?

Sepúlveda Pertence — Espero que esse expediente encaminhado pelo juiz de Mato Grosso chegue ao Supremo Tribunal Federal e assim se torne público. Então, imediatamente tomarei as providências que me caibam para a responsabilização do advogado.

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