Sanduíche indigesto

Lei paulistana que exige depósito recursal é inconstitucional

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2 de janeiro de 2007, 10h34

O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, sancionou a lei nº 14.256, que altera a legislação tributária do município, resultante do projeto de lei 552, que recebeu na imprensa o apelido de “X-tudo”.

Algumas questões foram eliminadas da redação original do projeto, como as relacionadas com o imediato aumento do IPTU e do ISS, com o que se vislumbrou a preocupação da prefeitura em minimizar os questionamentos que a matéria vinha sofrendo.

Mas uma alteração importante, que vai prejudicar os contribuintes e o próprio Município, acabou sendo aprovada e pode causar inúmeros processos judiciais. Trata-se da criação do “depósito recursal”, que obriga o contribuinte autuado pelo fisco a fazer um depósito em dinheiro correspondente a 30% (trinta por cento) da exigência fiscal, para tornar possível o recurso administrativo junto ao Conselho Municipal de Tributos.

De fato! A lei 14.256 de 29/12, publicada no Diário Oficial de 30 de dezembro, em seu artigo 38 altera a legislação municipal que trata do processo administrativo fiscal e dá nova redação ao artigo 43 da lei 14.107/2005, acrescentando-lhe 6 parágrafos para criar o tal depósito recursal.

A exigência de depósito em dinheiro para admissão de recurso administrativo é um absurdo jurídico que já causou e ainda causa inúmeras ações judiciais, que o Município poderia e deveria evitar.

Tantos foram e são os processos judiciais sobre o assunto, que o Fisco Federal já deixou de fazer tal exigência, substituindo-a por um “arrolamento”, ou seja, aceitando a indicação de bens suficientes para garantir a demanda, muito embora o próprio “arrolamento” já tenha sido considerado ilegal pela Justiça.

A primeira razão que aponta o depósito recursal como uma aberração jurídica decorre do texto da Constituição Federal, cujo artigo 5º inciso LV assegura que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

O Conselho Municipal de Tributos é um órgão de julgamento inspirado no princípio de que a administração deve procurar solucionar da forma mais racional, rápida e econômica, todos os conflitos que surjam entre o fisco e o contribuinte.

Recentemente criado e instalado em São Paulo, o CMT já vem funcionando de forma muito satisfatória, tudo nos levando a crer que poderá atingir plenamente seus objetivos, que são os de rever os julgamentos da primeira instância, procurando fazer justiça em relação a tais decisões, dando ao contribuinte a oportunidade de solucionar suas demandas sem necessidade de procurar o Judiciário.

Se a criação do Conselho foi um avanço na solução dos conflitos tributários no Município, a instituição do “depósito recursal” é um retrocesso e um grande equívoco.

Veja-se que a defesa ou impugnação do auto de infração, já em primeira instância, suspende a exigibilidade do credito tributário, na forma do artigo 151, III do Código Tributário Nacional.

Portanto, a possibilidade de recurso a uma segunda instância administrativa, não pode se sujeitar a um depósito ou mesmo a um arrolamento, pois isso representaria tornar parcialmente exigível um crédito, ainda não definitivamente constituído.

A Justiça já tem decidido, em diversas oportunidades, que os depósitos para garantia de instância na esfera administrativa não podem ser exigidos. Embora haja também decisões no sentido de que a exigência do depósito é legal, a matéria ainda não está pacificada nos Tribunais.

Em uma decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região, em que foi relator o Dr. André Nabarrete (Processo nº 1999.03.99.072563-1) assim foi decidido:

“A Carta Magna de 1988 estabeleceu nova ordem constitucional e criou garantias para o administrado em face da administração pública, inexistentes no ordenamento jurídico anterior, como o inciso LV do seu artigo 5º, que assegura ampla defesa, com os recursos a ela inerentes no processo administrativo.Tal dispositivo recepcionou o art. 151 , inciso III do CTN, segundo o qual a interposições de reclamações e recursos administrativos constitui causa suspensiva da exigibilidade do crédito tributário. A lei complementar, interpretada agora à luz da atual Constituição, consagra o princípio da ampla defesa e o faz, independentemente de depósito, estabelecendo para o recorrente direito ao efeito suspensivo. Logo, o legislador ordinário, hierarquicamente inferior, não pode condicioná-lo a obstáculo ilógico, uma vez que representa verdadeira contradição impor ao contribuinte que deposite percentual do crédito ainda a ser discutido para suspender-lhe a exigibilidade. Mesmo a título de depósito, significa exigir antes parcela do crédito para sustar depois a exigibilidade do crédito todo, incluindo a parcela já exigida. Não faz sentido.O processo administrativo tributário, ao contrário, deve ser regulado em harmonia com o ordenamento jurídico. A exigência de depósito prévio não tem natureza de pressuposto processual de admissibilidade dos recursos.” (RDDT 58/2156).

Mesmo o “arrolamento” já foi considerado ilegal , como consta da sentença do processo nº 2004.61.26.004653-5, do Juiz Federal da 3a. Vara de Santo André, dr. Uilton Reina Cecato, já noticiada aqui no CONJUR.

Outra razão lógica que desaconselha o depósito recursal é que o Município dispõe de adequados mecanismos legais para proteger seus créditos, seja através da Execução fiscal, seja ainda através da Medida Cautelar Fiscal (Lei 8398/92), onde bens do contribuinte podem ser bloqueados.

Por outro lado, se existe uma segunda instância administrativa é porque há a possibilidade de que os julgamentos da primeira instância sejam corrigidos, alterados. O Conselho Municipal de Tributos não é nem pode ser considerado como um órgão apenas destinado a “homologar” das decisões da instância inferior.

Tivemos a oportunidade de acompanhar a criação e a instalação desse Conselho, ao que consta dirigido atualmente por um dos mais cultos servidores de carreira da Secretaria das Finanças, o dr. Luiz Augusto Casseb Nahuz, profundo conhecedor não só da legislação tributária municipal como também do Direito Tributário em geral.

Esse Conselho, que recentemente entrou em funcionamento, poderá tornar-se um valoroso aliado do próprio Município, além de instrumento da cidadania para os paulistanos, na medida em que, corrigindo eventuais falhas dos julgamentos administrativos da primeira instância, consiga evitar demandas judiciais que venham a causar mais custos e despesas para o Erário e para os contribuintes.

A exigência do depósito recursal, além de ser flagrantemente inconstitucional , por impedir a ampla defesa e limitar o contraditório, entra em contradição com a própria criação do Conselho Municipal de Tributos, justamente implantado para ampliar as possibilidades de defesa do contribuinte e tornar mais justos, mais imparciais e portanto mais eficazes os julgamentos da segunda instância.

Sendo um grande equívoco, tal dispositivo precisa ser revisto. O nosso Prefeito já deu mostras de ser uma pessoa de bom senso. Trata-se de um engenheiro e economista, com excelente formação acadêmica, além de um político respeitável e respeitável, cuja capacidade administrativa já vem sendo reconhecida pela população.

O infeliz dispositivo criado pela nova Lei é um erro a ser corrigido. Da forma como está, pode estimular a corrupção, se houver algum funcionário corrupto. O contribuinte que está sendo autuado, ciente de que um recurso administrativo só será possível mediante depósito, pode interessar-se por meios ilegais de evitar ou reduzir o lançamento.

Como se sabe, corrupção é via de duas mãos com bandidos em ambos os lados. Qualquer norma legal que a incentive deve ser revogada. Esperemos, pois, que se reconheça o erro, corrigindo-o, já que não se pode atribuí-lo à Câmara, que apenas aprovou o infeliz projeto preparado assessores do Prefeito.

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