Lei da pulseira

Está no Código Militar: algema serve só para zé ninguém

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10 de fevereiro de 2007, 23h01

Quem tem diploma universitário não pode ser algemado. A regra já dava para livrar juízes e autoridades da incômoda pulseira, mas o Decreto Lei de 1969, que criou o Código de Processo Penal Militar faz questão de ser explícito. Não podem ser algemados de forma alguma juízes e também governadores, presidentes, ministros, secretários, deputados, senadores, padres e pastores e qualquer pessoa que tenha algum privilégio econômico ou social.

A regra é clara: só vai algemado quem oferecer resistência à autoridade e, além disso, não tiver eira nem beira. O que significa que toda vez a televisão mostrar uma cena espetacular da polícia prendendo e arrebentando, na qual o uso das algemas é visto como sinônimo da eficiência, de duas uma: ou o preso é um zé ninguém, ou a operação está coberta de ilegalidade, ou desnecessidade.

Não só por causa da proteção prevista na norma militar. A Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984) no artigo 199, prevê que “o emprego da algema será disciplinado por decreto federal”. Como ainda não foi efetuada tal regulamentação, o uso das argolas é no mínimo controvertido.

“Uso de algemas é exceção que só pode ser quebrada quando houver motivo real e concreto. Se a pessoa não apresenta risco, o uso é desnecessário. A regra se aplica tanto para o juiz, quanto para o pedreiro”, afirma o promotor de Justiça Fauzi Hassan Choukr.

O criminalista Luís Guilherme Vieira defende que o uso da algema não está relacionado à gravidade do delito, nem ao histórico do acusado. “Alguém que dirige embriagado, por exemplo, de tão alterado pode representar perigo para a autoridade policial. Por outro lado, alguém detido por furto não precisa ser algemado. O problema é que temos uma lei que protege o clero e a burguesia”, afirma.

“Cabe à autoridade policial reagir racionalmente. Qualquer abuso fere o princípio da dignidade humana. Tem de haver equilíbrio. A algema serve para inviabilizar a fuga. E só”, explica o advogado.

Ainda assim, há quem defenda que como o uso das algemas não é regulamentado, nem expressamente proibido, seu uso acaba admitido como meio de promoção da segurança, como determina o artigo 284 do Código de Processo Penal. “Só o excesso ou abuso pode configurar ilegalidade, punida nas esferas cível e criminal”, explica o criminalista Jair Jaloreto Junior.

Os autores da tese afirmam que não dá para imaginar o trabalho das autoridades policiais sem a algema, por entender o objeto como medida de segurança. Sustentam, ainda, que não dá para deputado ou chefe de Poder Executivo dizer quando a polícia deve ou não usá-la.

“A policia vai continuar do jeito que está. Munida de mandado de prisão, amparada pela Justiça e pelo Ministério Público, ou em caso de prisão em flagrante, o policial tem toda a liberdade de algemar, se julgar necessário. Essa questão do uso da algema deve ser analisada sem paixão”, defendeu Francisco Carlos Garisto, quando era presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), em entrevista à ConJur.

Análise da lei

O que está escrito no CPP Militar, apesar de ignorado, tem validade e inclusive pode ser usado por analogia. A recomendação é assinada pelo advogado Sérgio Niemeyer, diretor do departamento de prerrogativas da Fadesp. “Muita gente diz que o decreto-lei só se aplica aos militares. Mas não é verdade. O ordenamento prevê que na falta de legislação, o juiz deve aplicar outra regra por analogia. É o que acontece com o Código de Processo Penal Militar”, explica.

Segundo Niemeyer, enquanto o parágrafo 1º do artigo 234 diz que o emprego de algemas deve ser evitado para todos, o artigo 242, trata de algo mais específico, porque proíbe absolutamente para os presos listados na lei. É como se o primeiro desse uma orientação e o segundo estabelecesse uma condição, ou obrigação.

“As autoridades descumprem a lei, sob pretexto de cumprir outra lei, o que é o maior absurdo que existe. Qual é a garantia que o indiciado tem?”, questiona o advogado. “Uso de algema deve ser evitado, a menos que a pessoa ofereça risco. Se o acusado não resiste, acata a ordem de prisão, não há a menor necessidade de algemar”, insiste.

O advogado lembra que qualquer cidadão que assiste alguém cometendo delito, pode dar voz de prisão e prender o acusado. É o que determina o artigo 301 do Código de Processo Penal — este aplicado aos civis. Se o acusado tentar fugir, ou agir com violência, aí o cidadão comum pode algemá-lo, por analogia ao que determina o CPP Militar — claro, se andar com algema na pasta.

Desacertos

A opinião pública e a imprensa passaram a questionar e criticar com mais veemência o uso das algemas depois que as operações da Polícia Federal, com nome e cercadas de grande aparato, tiveram maior destaque na mídia. No entanto, o emprego da peça gerou polêmica em outros momentos da história do país. Um exemplo é a prisão do então senador Jader Barbalho (PMDB-PA), em 2002.

Barbalho foi acusado de envolvimento no desvio de R$ 1,7 bilhão da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Preso, foi exibido algemado perante as câmaras de televisão. Na época, alegou-se que o senador tentara agredir um policial, no ato de prisão. Em junho de 2005, o Supremo Tribunal Federal arquivou o inquérito contra Barbalho. O ministro Gilmar Mendes reconheceu a incompetência da Justiça Federal de primeira instância que recebeu a denúncia contra o ex-senador.

Se fosse aplicado ao caso os artigos 234 e 242 do Código de Processo Penal Militar, o ex-senador jamais poderia ter tido as mãos presas. O mesmo aconteceria no episódio da prisão de Flávio Maluf, filho do ex-prefeito paulistano Paulo Maluf, em 2005. Flávio tem curso superior, logo se enquadraria na proteção prevista em lei.

O mesmo aconteceria com o então presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia, Sebastião Teixeira Chaves. Ele foi preso no dia 4 de agosto do ano passado, na operação da Polícia Federal a que se deu o nome de Dominó.

O desembargador foi algemado e exibido à imprensa, o que pode ser classificado como constrangimento ilegal. Deputados estaduais, um juiz e um procurador, no mesmo dia, também usaram a pulseira.

Leia o que diz o Código de Processo Penal Militar sobre o uso de algemas:

Art. 234. O emprego de fôrça só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.

Emprego de algemas

1º O emprêgo de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do prêso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.

(…)

Art. 242. (…)

a) os ministros de Estado;

b) os governadores ou interventores de Estados, ou Territórios, o prefeito do Distrito Federal, seus respectivos secretários e chefes de Polícia;

c) os membros do Congresso Nacional, dos Conselhos da União e das Assembléias Legislativas dos Estados;

d) os cidadãos inscritos no Livro de Mérito das ordens militares ou civis reconhecidas em lei;

e) os magistrados;

f) os oficiais das Fôrças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, inclusive os da reserva, remunerada ou não, e os reformados;

g) os oficiais da Marinha Mercante Nacional;

h) os diplomados por faculdade ou instituto superior de ensino nacional;

i) os ministros do Tribunal de Contas;

j) os ministros de confissão religiosa.

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