Avanço do terceiro setor

Lei do esporte, por enquanto, tem de ser comemorada

Autor

  • José Maurício Fittipaldi

    é sócio de Cesnik Quintino e Salinas Advogados com atuação nas áreas de investimento social privado e incentivos fiscais consultor de empresas e entidades do terceiro setor.

6 de fevereiro de 2007, 23h01

“Dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 217, que ‘é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais como direito de cada um’. Essa obrigação, determinada pelo legislador, impõe o obrigatório dever de a administração do Estado atuar, de maneira incisiva, para que este direito constitua uma efetiva realidade.”

É dessa maneira que se inicia o texto justificativo do Projeto de Lei 1.367/03, cujo autor é o deputado Bismarck Maia (PSDB). Foi tal projeto que originou a Lei 11.438, também conhecida como Lei de Incentivo ao Esporte, recém sancionada pelo presidente da República.

A citada lei foi instituída com o objetivo de contemplar o desporto brasileiro, nos mesmos moldes que a Lei Rouanet (Lei 8.313/91) contempla a cultura, ou seja, estabelecendo benefícios fiscais àqueles que contribuam para a realização de projetos na área, previamente aprovados pelo Poder Executivo.

Dessa forma, antes de nos aprofundarmos na Lei do Esporte, vamos entender os mecanismos que a permeiam.

A aprovação de projetos de lei ordinária (como a presente lei) segue um rito específico, podendo ser apresentados por qualquer representante do Poder Legislativo. Sua tramitação tem espaço no Congresso Nacional, sendo este composto por duas casas: Câmara dos Deputados e Senado Federal. Caso o projeto emane da Câmara dos Deputados, esta casa configura-se como a iniciadora e o Senado como revisora, e vice-versa.

Foi assim que se deu o trâmite do Projeto de Lei supracitado: o deputado Bismarck Maia o propôs, já incluindo em seu texto justificativo que sua casa de origem acolhe tal iniciativa, sendo posteriormente encaminhado para discussão e votação no Senado e nas comissões temáticas pertinentes à matéria, no caso a Comissão de Educação e a de Finanças e Tributação. Seguiu-se para votação no Plenário, órgão de última instância para deliberações. Aprovado no Plenário da casa iniciadora há sua remessa à casa revisora, submetendo-se a todo o trâmite para revisão.

Depois de todas estas fases, é finalmente encaminhado para sanção do representante do Poder Executivo, ou seja, o presidente da República.

Com a aprovação da Lei 11.438, em 29 de dezembro de 2006, instauram-se incentivos e benefícios fiscais para fomentar as atividades de caráter desportivo, até o ano-calendário de 2015 (artigo 1º).

“Os incentivos fiscais funcionam da seguinte forma: são soluções criadas pelos governos para, por meio de estímulos tributários, gerar investimentos maciços em determinados setores da economia utilizando-se da canalização dos recursos para segmentos específicos. A partir daí a sociedade adquire consciência de sua importância e passa a contribuir voluntariamente”, assim expõe Fábio Cesnik, em Guia do Incentivo à Cultura1.

Diversos setores sociais já vinham sendo beneficiados por diferentes mecanismos de incentivo (de natureza tributária ou não), e de fato o segmento desportivo carecia de apoio se comparado ao dirigido aos projetos de índole cultural. Estes contam, desde 1991, com a Lei Rouanet (8.313/91), Lei do Audiovisual (Lei 8.685/93) e outros mecanismos de renúncia fiscal, canalizando para o setor cultural centenas de milhões de reais por ano.

Apesar das distinções entre os diferentes mecanismos de incentivo à cultura, a maior parte deles baseia-se na concessão de incentivos fiscais àqueles que patrocinarem ou investirem em projetos culturais. De acordo com a Lei Rouanet, por exemplo, a pessoa jurídica que faz doação ou patrocina um projeto cultural pode obter abatimento de até 4% do Imposto de Renda devido. No caso de pessoas físicas, este limite é de 6% do imposto devido, em cada período de apuração.

Com relação a estes limites, inclusive, merece ser destacado que a Lei do Esporte, quando aprovada, previa o mesmo limite de abatimento às pessoas jurídicas que a Lei Rouanet, vale dizer, 4% do IR devido. Esse fato originou uma discussão acirrada entre os setores esportivo e cultural, envolvendo inclusive os respectivos Ministérios, uma vez que o Ministério da Cultura temia perder grande parte dos recursos canalizados para a área que lhe corresponde, diante da constatação de que as empresas que patrocinam os projetos visam, na maior parte dos casos, à exposição de marca agregada aos projetos patrocinados, e por isso migrariam seus investimentos para o esporte (segmento em que, supostamente, as práticas de marketing e comunicação seriam mais desenvolvidas).

O debate apenas se encerrou após a edição da Medida Provisória 342, de 29 de dezembro de 2006, que alterou os benefícios previstos pela Lei do Esporte reduzindo, de um lado, o limite de dedução de Imposto de Renda para 1% e, de outro, desvinculando completamente as deduções autorizadas para aportes em esporte e cultura. Dessa forma, as pessoas jurídicas podem continuar fazendo suas doações para os projetos culturais (observado o limite de 4% do IR devido), e além disso investir em projetos de caráter desportivo (gozando de benefício limitado a 1% do IR devido).

De acordo com a lei, os recursos canalizados para o segmento esportivo poderão ser destinados para projetos de (i) desporto educacional, (ii) de participação ou (iii) de rendimento (artigo 2º), além dos que promovem a inclusão social por meio do esporte, neste caso preferencialmente em regiões de vulnerabilidade social.

Com efeito, tais recursos poderão ser destinados aos projetos por meio de duas modalidades, quais sejam, patrocínio ou doação. Em síntese, o patrocínio representa a transferência de recursos com finalidade publicitária (promocional, na dicção da lei) da empresa patrocinadora, enquanto, no regime da doação, veda-se a utilização dos recursos com finalidade publicitária, ainda que para a divulgação do evento beneficiário (artigo 3º, I e II, da Lei 11.438/06).

Além destas definições, a Lei 11.438 determina duas limitações importantes: primeiramente, a pessoa jurídica doadora/patrocinadora poderá apenas se beneficiar do incentivo se for tributada com base no lucro real (artigo 1º) — como acontece na grande maioria dos incentivos fiscais concedidos pela União —, e ainda o patrocínio ou doação que forem feitos em favor de projetos que beneficiem pessoa física ou jurídica vinculada ao doador/patrocinador não são dedutíveis do imposto de renda (artigo 1º, parágrafo 4º).

Analisando mais profundamente tal vedação, é no parágrafo 5º do mesmo artigo 1º que encontraremos a definição do que constitui o aludido vínculo entre patrocinador/doador e beneficiado, estabelecendo que estão vinculados ao doador ou patrocinador (a) a pessoa jurídica da qual o patrocinador ou o doador seja titular, administrador, gerente, acionista ou sócio, na data da operação ou nos doze meses anteriores; (b) o cônjuge, os parentes até o terceiro grau, inclusive os afins, e os dependentes do patrocinador, do doador ou dos titulares, administradores, acionistas ou sócios de pessoa jurídica vinculada ao patrocinador ou ao doador, nos termos do inciso I deste parágrafo; e (c) a pessoa jurídica coligada, controladora ou controlada, ou que tenha como titulares, administradores acionistas ou sócios alguma das pessoas a que se refere o inciso II deste parágrafo.

Da análise do conceito de vinculação, acima exposto, depreende-se o seguinte: em linhas gerais, o sistema é o mesmo adotado pela Lei Rouanet, que em seu artigo 27 prevê hipóteses muito semelhantes de vinculação. Contudo, a leitura atenta dos dois diplomas revela que, no regime da Lei Rouanet, excepciona-se esta vedação quando, no parágrafo 2º do artigo 27, admite-se que instituições criadas pelo doador ou patrocinador possam receber recursos das empresas a elas vinculadas. Esta exceção deu margem a que, no campo da cultura, florescessem entidades ligadas a empresas, fenômeno que não ocorrerá no esporte, pois, no regime da Lei 11.438/06, não há qualquer exceção ao princípio da vinculação.

A Lei de Incentivo ao Esporte possui ainda alguns itens importantes em seu texto, como a submissão de todos os projetos à avaliação e aprovação de uma Comissão Técnica vinculada ao Ministério do Esporte (artigo 4º), de composição mista, integrada por representantes do poder público e da sociedade civil (representada pelo do Conselho Nacional do Esporte). Ademais, há expressa previsão de que os recursos arrecadados para a execução dos projetos não poderão ser utilizados para o pagamento de remuneração de atletas profissionais (artigo 2º, parágrafo 2º).

Após a análise da lei, seu trâmite até a aprovação e de seus primeiros dias de vida, é sensato concluir que ela se configura como um novo capítulo na história do terceiro setor. Como mecanismo que visa à canalização de recursos para a realização dos direitos sociais inscritos na Constituição, com promoção da inclusão social, o mecanismo de incentivo fiscal ao esporte é, em tese, positivo.

Com efeito, é de se notar que o projeto de lei sofreu, durante sua tramitação, diversas críticas (tanto por parte do setor cultural como por parte de entidades voltadas ao desenvolvimento do terceiro setor), concernentes, de um lado, à forma com que o projeto de lei foi aprovado — de maneira excepcionalmente célere e sem uma discussão mais profunda sobre seu conteúdo e objetivos — e, de outro, ao fato de que o esporte, se comparado aos outros segmentos atualmente beneficiados pelo Estado, é aquele que menos dependeria de recursos públicos para o seu florescimento. Além disso, argumenta-se que as associações desportivas (os clubes) têm apresentado, ao longo do tempo, graves deficiências de gestão e, por isso, seria temerário conceder-lhes benefícios que redundam em utilização de verbas públicas.

A par da respeitabilidade de que gozam os críticos e da procedência de muitas de seus argumentos, cremos que ainda é cedo para que se tirem conclusões sobre a destinação dos recursos públicos e sobre o impacto dos incentivos fiscais no panorama das atividades do chamado terceiro setor.

Aguarda-se, com ansiedade, a regulamentação da lei (atualmente em gestação no âmbito do Ministério dos Esportes),e apenas após a edição do respectivo decreto é que se poderá ter real dimensão da abrangência do mecanismo estabelecido pela Lei 11.438. Até lá, resta-nos aguardar e comemorar, pois estima-se que serão aproximadamente R$ 300 milhões por ano canalizados para entidades do terceiro setor que atuam no segmento desportivo, contribuindo, de uma forma ou de outra, para o desenvolvimento e organização da sociedade civil

Nota de rodapé

1 – CESNIK, Fábio de Sá, Guia de Incentivo à Cultura. SP, Manole, 2007, p. 01, 2ª edição.

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