Direitos de todos

As situações subjetivas existenciais e o direito civil

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15 de dezembro de 2007, 23h00

O presente artigo, fruto do estudo da Teoria da Relação Jurídica, pretende abordar aspectos das situações jurídicas existenciais. Esta categoria foi introduzida por Pietro Perlingieri, o qual deu grande contribuição ao estudo dos conhecidos direitos da personalidade; indiscutivelmente, alvo de promoção de dissensos em uma relação jurídica.

Na lição do renomado civilista italiano, os direitos da personalidade, vistos como uma série aberta de hipóteses de fato, são situações subjetivas não patrimoniais merecedoras de tutela1 qualitativamente diferenciada, por se tratarem de questões atinentes à condição existencial do homem, pessoa humana, posto no vértice do ordenamento jurídico.

Passados quase 20 anos desde a entrada em vigor da mais festejada Constituição da República, um olhar histórico sobre os institutos de direito privado revela uma alteração substancial de suas fontes. Nas palavras de Maria Celina B. Moraes2:

“Diante da nova Constituição e da proliferação dos chamados microssistemas, como, por exemplo, a Lei do Direito Autoral, e recentemente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei das Locações, é forçoso reconhecer que o Código Civil não mais se encontra no centro das relações de direito privado. Tal pólo foi deslocado, a partir da consciência da unidade do sistema e do respeito à hierarquia das fontes normativas, para a Constituição, base única dos princípios fundamentais do ordenamento.”

A questão, todavia, reside não apenas em escolhas topográficas das fontes normativas (se o fundamento está na Constituição, Códigos ou leis especiais), mas na correta individuação dos problemas.

Pretende-se lançar mão do paradigma próprio da metodologia civil — constitucional, a fim de se delinear argumentos e fundamentos para uma maior abrangência das situações jurídicas existenciais, os direitos da personalidade.

As situações subjetivas existenciais. O Direito Civil — Constitucional e os fundamentos da República. A dignidade da pessoa humana como valor

Os atualmente conhecidos direitos da personalidade são frutos de construção doutrinária recente, surgida na segunda metade do século XX.

Sob a nomenclatura dos direitos da personalidade, estão compreendidos os direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais à sua dignidade e integridade3.

Dito desta forma parece bem simples a compreensão, porém, disputas doutrinárias foram travadas em debates sobre a tipificação, aceitação de tais direitos e disciplina jurídica.

Em apertada síntese elaborada por Tepedino, se afirmava que a personalidade, identificando-se com a titularidade de direitos, não poderia, ao mesmo tempo, ser considerada como objeto deles; sendo, portanto, uma contradição lógica (Tepedino, 2004: 25).

A vida, a saúde e a honra não se enquadrariam na categoria do ter, mas do ser, o que os tornaria incompatíveis com a noção de direito subjetivo. Vista desta forma, a proteção jurídica da personalidade não se revestia de características do direito subjetivo. O ordenamento reagia contra danos injustos a tais bens, através do princípio de não causar danos a outrem, ou seja, reflexos do direito objetivo (responsabilidade civil) 4

Não se trata aqui de percorrer o caminho da tipificação dos direitos da personalidade até a positivação ocorrida no Código Civil de 2002. O conceito de situação jurídica subjetiva, proposto por Pietro Perlingieri, permite a dissociação dos argumentos de cunho patrimonialista, elevando os direitos da personalidade como valor.

Citado por Gustavo Tepedino5, Pietro Perlingieri supera a insuficiência das correntes doutrinárias que se apegam ao caráter patrimonial intimamente associado à teoria do direito subjetivo:

“a personalidade humana mostra-se insuscetível de recondução a uma relação jurídica — tipo ou a um novelo de direitos subjetivos típicos, sendo, ao contrário, valor jurídico a ser tutelado nas múltiplas e renovadas situações em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daí resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado será necessariamente insuficiente para atender às possíveis situações em que a personalidade humana reclame tutela jurídica.

O que se verifica, a rigor, do debate antes enunciado em torno das diversas correntes que buscam explicar a conceituação, o objeto e o conteúdo dos direitos da personalidade, é que todas elas se baseiam no paradigma dos direitos patrimoniais.

Imaginando-se a personalidade humana do ponto de vista estrutural (ora o elemento subjetivo da estrutura das relações jurídicas, identificada como o conceito de capacidade jurídica, ora o elemento objetivo, ponto de referência dos chamados direitos da personalidade), e protegendo-a apenas em termos negativos, no sentido de repelir as ingerências externas à livre atuação do sujeito de direito, segundo a técnica própria do direito da propriedade, a tutela da personalidade será sempre setorial e insuficiente.”

Assim, classificar os direitos da personalidade, segundo as doutrinas tradicionais, é insuficiente. O aspecto essencial das situações subjetivas, na visão de Perlingieri6, é aquele normativo ou regulamentar, extraído do ordenamento como um todo. A juridicidade traduz-se no poder de realizar, de exigir que outros realizem ou que se abstenham de realizar determinados atos. Tal afirmação encontra confirmação em princípios e normas jurídicas. Nesse aspecto, a situação constitui uma norma de conduta que pode significar atribuição ao sujeito — no interesse próprio e/ou de terceiros, no interesse individual e/ou social — do poder de realizar ou de não realizar determinados atos ou atividades. A tipificação encontrada no Código Civil de 2002 não encerra uma proteção total da pessoa humana.

É correto afirmar, conforme faz Tepedino, que é preciso considerar a personalidade mais que um reduto de poder do indivíduo no âmbito do qual seria exercido a sua titularidade. Ao contrário, devemos elevar a sua proteção como valor máximo do ordenamento. Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, na redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do parágrafo 2º do artigo 5º, no sentido da não exclusão de qualquer direito ou garantias, embora não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana (Tepedino, 2004: 49).

O ponto de confluência desta cláusula geral é, sem dúvida7, a dignidade da pessoa humana, posta no ápice da Constituição Federal de 1988 (artigo 1º, III). Em seu cerne, encontram-se a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade, e a solidariedade. Neste sentido, deve-se inibir ou reparar, em todos os seus desdobramentos, a conformação de tratamentos desiguais — sem descurar da injustiça consubstanciada no tratamento idêntico aos que são desiguais —; o atentado à saúde, entendida esta em sua mais ampla acepção; o constrangimento e o estreitamento da liberdade individual, com foco voltado para as situações existenciais, e o desprezo pela solidariedade social — mandamento constitucional que não admite nem a marginalização, tampouco a indiferença.

A cláusula geral visa proteger a pessoa em suas múltiplas características, “naquilo que lhe é próprio”, aspectos que recompõem à consubstanciação de sua dignidade, valor reunificador da personalidade a ser tutelada. Evidentemente, também se abrigam sob o seu manto os demais direitos que se relacionam com a personalidade, alguns deles descritos pelo próprio legislador constituinte no artigo 5º da Constituição.

Está presente, no ordenamento jurídico brasileiro, a base normativa para dar elasticidade às situações subjetivas existenciais a fim de ampliar a tutela dos denominados direitos da personalidade. A relação jurídica consiste em um dos ângulos de averiguação do fenômeno jurídico, não deve ser tomada apenas como relação entre pessoas determinadas. É melhor ser vista como um vínculo entre situações subjetivas, levando-se em consideração os aspectos distintivos da pessoa humana na hierarquia dos valores constitucionais.

Notas de rodapé

1- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pág. 90.

2- MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um Direito Civil Constitucional. Publicado na Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. I, 1991. Pág. 4.

3- TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil – constitucional Brasileiro in Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino (coordenador). 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Pág. 25

4- Idem.

5- TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil – constitucional Brasileiro in Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino (coordenador). 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004. Pág. 47

6- PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Pág. 107

7- MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Dignidade Humana in Princípios do Direito Civil Contemporâneo / Maria Celina Bodin de Moraes (coordenadora). Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Pág. 55.

Bibliografia

MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Dignidade Humana in Princípios do Direito Civil Contemporâneo / Maria Celina Bodin de Moraes (coordenadora). Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

TEPEDINO, Gustavo. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil – constitucional Brasileiro in Temas de Direito Civil / Gustavo Tepedino (coordenador). 3ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

DONEDA, Danilo. Os Direitos da Personalidade no Novo Código Civil in A parte geral do novo código civil: estudos na perspectiva civil – constitucional / Gustavo Tepedino (coordenador). 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução. 5ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

MORAES, Maria Celina Bodin de. A Caminho de um Direito Civil Constitucional. Publicado na Revista Estado, Direito e Sociedade, vol. I, 1991.

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