Crise do imposto

Propriedade é direito e por isso não gera obrigação tributária

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13 de dezembro de 2007, 13h22

A propósito do artigo do eminente advogado e professor Ives Gandra Martins, publicado pelo ConJur em 12 de dezembro de 2007, reproduzido do jornal Gazeta Mercantil (Leia aqui o artigo), em que repudia e demonstra a inconstitucionalidade das ações do governo paulista em perseguição aos que possuem automóveis registrados em outros Estados da Federação, inclino-me a concordar com os argumentos apresentados.

Porém, vou mais adiante, e neste passo exponho o que há muito venho investigando e tem sido objeto de reflexões incessantes ao longo do meu caminhar e dos meus estudos sobre o direito.

Já faz algum tempo, tenho afirmando serem inconstitucionais tanto o IPVA quanto o IPTU e o ITR da forma como estão regulamentados.

A Constituição autoriza os estados federados e o Distrito Federal a institur impostos sobre a propriedade de veículos automotores. Mas não define esse espécime de imposto. O mesmo faz em relação aos municípios, que podem instituir imposto sobre a propriedade territorial e predial urbana. Mas também nesse caso não define o imposto.

Cabe à lei definir esses impostos de que trata a Constituição, mas sem perder de vista as disposições do Código Tributário Nacional.

As inconstitucionalidades começam no artigo 29 do CTN. Nele está disposto que “o imposto, de competência da União, sobre a propriedade territorial rural, tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localizado fora da zona urbana.” O mesmo vício inquina o artigo 32.

Releva notar o próprio CTN remete para o Código Civil como fonte do conceito que se deve reter a respeito do que sejam a propriedade, o domínio útil e a posse de imóvel por natureza ou acessão física. Tal remissão, presente nos artigos 29 e 32, é reforçada pelo artigo 109 do CTN.

Ocorre que o conceito de propriedade não se confunde nem com o de domínio útil nem com o de posse.

Segundo a lei civil, o domínio útil, embora seja um direito real, não passa de uma soma de direitos que se destacam da propriedade para serem exercidos por pessoa diversa do proprietário. No entanto, a propriedade convive com o domínio útil, embora sofra uma redução em seus atributos.

A Constituição, no entanto, só autoriza a instituição de imposto sobre a propriedade, não sobre seus atributos ou desdobramentos isoladamente, já que estes podem ser destacados daquela sem eliminá-la, e muito menos sobre a aparência de propriedade, que se configura na posse. Os conceitos do Direito Civil apartam-se do modo como são referidos no CTN, causando uma cisão entre este e o que está disposto na Constituição Federal.

Por outro lado, o CTN incide em erro crasso ao dizer que a propriedade constitui fato gerador. A propriedade não é um fato, mas sim um direito, que só existe porque reconhecido pelo ordenamento jurídico. Chama-se propriedade, ou melhor, direito de propriedade ao vínculo reconhecido e protegido pelo ordenamento jurídico que liga a pessoa à coisa com exclusão absoluta de todos os demais. Por outra forma, o reconhecimento daquele vínculo implica uma proteção que pode ser oposta erga omnes pelo titular do direito.

No caso específico do Direito brasileiro isso se torna ainda mais evidente pelo modo como está disciplinado e organizado o direito de propriedade. Prova disso é a aquisição derivada da propriedade imobiliária, que só se aperfeiçoa com o registro do título translativo no Registro de Imóveis. Antes desse registro, não há transferência da propriedade, embora possa ter ocorrido transmissão da posse (CC, artigo 1.227, c.c. artigo 1.245). Também o título translativo deve seguir a forma solene e ser passado por escritura pública (CC, artigo 108).

Já a posse, esta sim, é fato que produz efeitos jurídicos, goza de proteção até em face do proprietário, e é assim reconhecida pelo ordenamento jurídico porque constitui a manifestação exterior da propriedade. Mas também a posse não se confunde com a propriedade. Os traços distintivos de uma e outra são manifestos, e se podem concluir do cotejo das disciplinas diversas que lhes comete o Código Civil. A posse está regulada nos artigos 1.196 a 1.224, em título próprio. Já a propriedade figura entre os direitos reais, coisa que a posse não é, e está disciplinada, também ela, em título específico, nos artigos 1.228 a 1.368.

Aliás, até hoje não houve quem conseguisse definir adequadamente a propriedade. E toda vez que a razão não consegue obter uma definição para determinado objeto do conhecimento, socorre-se da tipificação ou exemplificação. É exatamente isso o que acontece com o direito de propriedade, referido sinteticamente apenas como propriedade, desde os idos do direito romano. Não se logrou obter uma definição satisfatória para exprimi-lo. Então, passou-se à sua tipificação, enunciando seus atributos, que são aqueles proclamados no art. 1.228 do Código Civil. Por outro falar, a lei civil não define propriedade, mas elenca os poderes que são reconhecidos ao proprietário e sujeitos à tutela do Estado-juiz.

Assim, o primeiro traço de inconstitucionalidade identifica-se no situar o domínio útil e a posse como fatos geradores, já que a Constituição só autoriza a instituição do imposto sobre a propriedade, e não sobre seus desdobramentos isoladamente nem sobre sua aparência, como são o domínio útil, no primeiro caso, e a posse, no segundo.

A inconstitucionalidade não cessa nisso. Se, como dito, a propriedade não é fato, mas direito, não pode entrar na categoria dos chamados fatos geradores de obrigação tributária. Essa exegese tanto mais se afirma quando se tem em consideração que imposto, na definição estatuída pelo artigo 16 do CTN, é “o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte”.

Em que pese a ausência de contrapartida específica, nem por isso o imposto é devido em virtude da titularização de um direito, mas sempre em decorrência de um acontecimento concreto, qual seja, a ocorrência de um fato. O vício aí estabelece uma aparente antinomia entre a Constituição e o Código Tributário Nacional, pois enquanto a primeira autoriza a instituição de imposto sobre a propriedade, o segundo define imposto como a obrigação que surge em decorrência de um fato, e fato é somente aquilo que acontece no mundo empírico.

Poder-se-ia objetar que o próprio CTN define a propriedade com fato gerador de obrigação tributária. Fato na acepção adotada pelo CTN abarcaria não só os fatos, na acepção própria da palavra, como também o direito de propriedade. Tal interpretação, contudo, não põe a salvo da inconstitucionalidade a disciplina cometida pelas diversas leis instituidoras desses impostos, ditos reais porque seguem a coisa com quem quer que a detenha.

A razão é mesmo lógica e direta. Ainda que se considere a propriedade um fato, força convir tratar-se de um fato contínuo, que não sofre solução de continuidade no tempo, a menos do ato de vontade do proprietário em se despedir do direito que titulariza e depois readquiri-lo. Vale dizer, a propriedade, ainda que tratada de modo herético como um fato (jurídico), e não apenas como um direito, sua ocorrência não cessa às 24 horas do dia 31 de dezembro do ano X para instantaneamente recomeçar a ocorrer à zero hora do ano X + 1, como se fora um novo fato. Numa palavra, mesmo desvirtuando o conceito de propriedade para reputá-la um fato (gerador), ela só ocorre uma vez, quando o proprietário a adquire. Depois disso, o que se tem é um estado contínuo, sem interrupção, de permanência, por que perdura o “direito-fato” de propriedade.

Ora, se não há recorrência temporal da propriedade bem delineada no mundo fenomênico, onde está o fundamento constitucional para as diversas leis instituírem o imposto que sobre ela incide anualmente? O fato ocorreu uma só vez, no momento em que a propriedade foi adquirida. Admitir a possibilidade de renovação do imposto a cada ano significa aceitar um caráter meramente temporal para a instituição do imposto, e não um caráter real, como são os fatos ditos geradores. Posto em outros termos, sendo a questão apenas de índole temporal, não há diferença alguma entre o imposto incidente e cobrado a cada ano e aquele instituído sobre a propriedade a cada semestre, ou a cada mês, ou a cada dia, ou ainda, a cada segundo, pois a instituição tem no tempo, e não na propriedade, o seu fundamento. Infere-se que o imposto sobre a propriedade tem, na verdade, por fato gerador o tempo, não a propriedade. É o perpassar do lapso de um ano que gera novo imposto sobre o “direito-fato” contínuo da propriedade. A propriedade serve apenas como parâmetro para a base de cálculo.

O perigo disso é que pode-se modificar a lei para, pretextando tributar a propriedade, instituir imposto cuja base de cálculo nela recaia, em períodos arbitrariamente fixados. Mas pior, levado às últimas conseqüências por um legislador sem pejo, rende ensanchas para tributar o tempo sob os mais diversos embuços, como, v.g., a vida, que não só é um fato, como sua preservação, um direito, até hoje não tributado (felizmente).

Ademais, sendo o fato gerador o tempo, seu transcurso acabará levando a um confisco velado, que se opera por via oblíqua, já que dependendo da magnitude da alíquota do imposto, em maior ou menor lapso o contribuinte estará entregando ao Fisco o equivalente ao bem cujo valor serve de base de cálculo.

Estas as sinóticas razões da inconstitucionalidade das diversas leis estaduais e municipais que disciplinam tanto o IPVA quanto o IPTU e o ITR, mas que, infelizmente, assim não são declaradas porque o Poder Judiciário age, desde os memoráveis tempos de Rui Barbosa, com uma inclinação fazendária, talvez por que refém do Poder Executivo, dependente dos recursos que este arrecada para sobreviver e prestar os serviços jurisdicionais, mesmo aquém das necessidades da sociedade e ao arrepio da letra da Constituição.

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  • Brave

    é advogado, diretor do Departamento de Prerrogativas da Federação das Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (Fadesp) e mestre em Direito pela USP.

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