De Mônaco à Abaetetuba

Falta de assistência estatal é culpada pelo trauma no Pará

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11 de dezembro de 2007, 10h41

[Artigo publicado originalmente no Correio Brasiliense, de 9 de dezembro de 2007].

A história da garota de 15 anos encontrada presa na cadeia de Abaetetuba, no interior do Pará, em companhia de 20 homens, retrata a deprimência social que nos cerca. Forçada a submeter-se a abusos sexuais e a violências físicas durante quase um mês, a menor só pôde livrar-se dos ataques após denúncia feita pelo Conselho Tutelar da cidade. Acionado o Ministério Público do Estado, evitou-se a continuação do flagelo.

Não há explicação para tamanha insanidade. Pouco importa saber, depois do desastre ocorrido, se a culpa é da polícia ou de outra autoridade. Isso fica por conta dos promotores do Estado que, por certo, responsabilizarão os culpados. Esse triste episódio leva-nos à dura reflexão. É preciso saber o que os governos têm realizado nesse campo de tanto desamparo estatal para mitigar o quadro das iniqüidades perpetradas.

O país tem conseguido significativos avanços em termos econômicos. Deixou de ser dependente do petróleo externo. Notícias recentes sobre as descobertos do campo de Tupi, no litoral santista, sinalizam que podemos ganhar cadeira cativa no bloco dos privilegiados da OPEP. Primeiro país do mundo em exportação de carne bovina, suco de laranja, minério de ferro, soja, frango, as reservas do Brasil chegaram a patamares nunca imaginados. A produção de veículos automotores tem batido recordes. A fábrica da Embraer exporta aviões para o mercado internacional. Várias empresas nacionais tornaram-se multinacionais.

O que não se compreende é a abstinência oficial no trato de questões como as que afloram da absurda e chocante prisão da menor. Junto ao Ministério da Justiça, administrado pelo Departamento de Assuntos Penitenciários, funciona o Fundo Penitenciário Nacional. Compete-lhe a administração de recursos para a construção e reparação das prisões no país. Entre as receitas que o mantêm, há participação — três por cento — no montante arrecadado dos concursos de prognósticos, sorteios e loterias do governo federal. É um bom dinheiro. Há mais fontes também rentáveis. Desconhece-se como se tem gasto o dinheiro proveniente dessa fonte. Uma coisa é certa: não o estão aplicando criteriosamente na ampliação e melhoria dos estabelecimentos penais dos estados.

Se geridos esses recursos com competência, os estados já poderiam ter razoável sistema de estabelecimentos penais. Quem sabe assim, a pocilga prisional de Abaetetuba não existisse. Com isso, ainda que ilegal e criminosa a prisão da menor, ter-se-ia evitado a loucura de colocá-la entre marmanjos marginais, sabe-se lá presos a que título. A verdade é que questões que dizem respeito à construção de penitenciárias e à administração de assuntos pertinentes à infância desamparada não são boas geradoras de votos.

A maior preocupação de Lula está ligada aos programas sociais de distribuição de dinheiro diretamente às pessoas de pouca ou de nenhuma renda. O assistencialismo tem sido o melhor cabo eleitoral de alguns governos de países pobres. É o caso da Venezuela, cujo povo quase faz de Chaves seu ditador, na recente marotagem da reforma constitucional submetida a plebiscito. É também o nosso caso. Quem recebe favores dessa natureza, pouco importa se é o povo quem paga, vai agradecer é quem os dá. A resposta vem, em seguida, nas urnas. Basta olhar qual foi o maior manancial de votos de Lula nas últimas eleições. Lá está a prova provada.

Tudo bem. Ganharam o presidente que deu os trocados e os assistidos que os receberam. A negligência com temas sociais, que não dão voto, tem sido a regra de governos populistas. Estranha-se que o ministro da Justiça tenha ido a Monte Carlo atrás de Cacciola e não tenha ido à Abaetetuba para registrar a indignação e revolta do governo de que faz parte. No mínimo, confortaria o povo da cidade que, mais do que ninguém, se viu afrontado e vilipendiado. Quem sabe acariciaria algum parente da garota seviciada.

Em síntese, decerto nada poderia fazer o ministro para reverter o absurdo cometido. Entretanto, sua presença, como membro do governo, teria efeito moral e demonstraria vigilância no acompanhamento do caso. Por outro lado, aplacaria a exploração do fato, que foi fartamente noticiado pela mídia internacional, repercutindo os protestos das organizações de defesa dos direitos humanos e outros organismos paralelos.

A culpa pelo trauma de Abaetetuba não é do Poder Judiciário, do Ministério Público, da polícia, dos aplicadores do Estatuto da Criança e do Adolescente. A culpa é da falta de assistência estatal. O fenômeno que ronda tal barbárie é genérico Brasil afora. Não pode ser analisado isoladamente. Está ligado, em geral, a fatores como delinqüência infantil, uso de drogas, pedofilia, exploração sexual, prostituição, traficância de menores e a outros componentes correlatos.

Se houver mais atenção do governo para essas políticas, quiçá se possa fazer a reversão desse quadro, que é o eixo de um dos nossos mais agudos problemas sociais.

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