Xerife supremo

Entrevista: Marco Aurélio, ministro do STF e presidente do TSE

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8 de dezembro de 2007, 23h01

Marco Aurélio - por SpaccaSpacca" data-GUID="marco_aurelio.png">O ministro Marco Aurélio, há 17 anos no Supremo Tribunal Federal e, pela segunda vez, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, não é homem de evitar polêmicas. Dá opiniões cortantes e julga com tal convicção e independência que quase sempre se coloca em posição de divergência tanto em relação ao voto de seus colegas de corte como em referência ao senso comum da sociedade. Seu norte é o respeito às regras do jogo. “Eu percebo, é claro, os anseios sociais. Mas a sociedade também está submetida à Constituição Federal.”

E por seguir este norte, o do respeito às regras postas, é que comanda decisões como a que impediu o Supremo de julgar o deputado federal Ronaldo Cunha Lima depois de sua renúncia. Ou a que garantiu a liberdade a um piloto espanhol acusado de atentado violento ao pudor, sustentando que o fato de o acusado ser estrangeiro, por si só, não justificava sua prisão preventiva.

Apesar de conduzir certas decisões, ainda é o Senhor Voto Vencido em muitas matérias. Recentemente, na 1ª Turma do Supremo, foi o único a divergir dos outros quatro ministros quando se decidiu que a apresentação de Recurso Especial não suspende a execução provisória da pena.

Por estas e outras decisões, o ministro se torna incompreendido em uma sociedade acuada pela crescente criminalidade e, por isso mesmo, sedenta de punição — ou vingança. Suas posições garantistas dos direitos fundamentais lhe valeram o Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos. Em sua vigésima-quinta edição, o prêmio conferido pela seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil homenageia pessoas e entidades que se destacam na defesa dos Direitos da pessoa. A solenidade de entrega acontece nesta segunda-feira (10/12), em São Paulo.

Marco Aurélio recebeu a revista Consultor Jurídico em seu gabinete no Supremo, em Brasília, na última quinta-feira (6/12). A entrevista foi marcada para traçar o perfil do ministro no Anuário da Justiça 2008, que será lançado em março pela ConJur. A riqueza da conversa levou a revista a publicar parte do material com antecedência.

Leia a entrevista

ConJur — O senhor é reconhecidamente intransigente na defesa do direito de defesa e das garantias do devido processo legal. Como é adotar essa postura em um mundo no qual a escalada da violência faz a população exigir a punição de supostos criminosos a qualquer preço?

Marco Aurélio — Eu puxei a divergência no caso Ronaldo Cunha Lima. E sabia que a bandeira não é uma bandeira simpática à sociedade. Eu percebo, é claro, os anseios sociais. Mas a sociedade também está submetida à Constituição Federal. Paga-se um preço por se viver em um Estado Democrático. E esse preço é módico porque está ao alcance de todos: o respeito às regras estabelecidas. A sociedade precisa perceber que a segurança jurídica é indispensável à vida gregária, ao dia-a-dia do cidadão, ao dia-a-dia do homem. E que as franquias, as garantias constitucionais, são acionadas justamente por aqueles que cometeram desvio de conduta. O chicote muda de mão.

ConJur — O caso Cunha Lima é emblemático.

Marco Aurélio — Sim. Uma corrente queria o julgamento pelo Supremo quando o processo não envolvia mais um deputado federal e prevaleceu, por sete votos a quatro, a ótica segundo a qual a competência está restrita ao julgamento de deputado federal. A renúncia é um ato de vontade inquestionável. Ela surte efeitos. Há uma problemática porque tivemos uma emenda à Constituição Federal quanto ao processo administrativo político. Neste caso, instaurado o processo de cassação de deputado na Câmara, a renúncia só surte efeito depois que ele estiver encerrado. Isso foi feito para evitar o que vivemos em um passado muito recente, de renúncias para fugir à cassação. Mas esse é um dado que nada tem a ver com a atuação jurisdicional. A atuação jurisdicional não é regida por esses preceitos. É regida pela Constituição Federal, ao artigo 102, no que disciplina a competência do Supremo, e também pelo Código de Processo Civil.

ConJur — As divergências no Supremo o transformaram em alvo de recentes reportagens que identificaram uma troca de farpas entre ministros nas sessões plenárias. O senhor acha que a sociedade está mais de olho no STF ou o clima está realmente mais quente no tribunal?

Marco Aurélio — O Supremo passou por uma mudança substancial. Houve uma alternância de sete cadeiras em 11. Então, temos aí um período de adaptação, considerada a vida em colegiado. O que é o colegiado? É o somatório de forças distintas. Nós nos completamos mutuamente. Divergimos sim, mas quanto a idéias, quanto a convencimento. Isso não pode descambar, de forma alguma, para ofensa pessoal. No julgamento do caso Ronaldo Cunha Lima, por exemplo, eu ouvi de um colega que eu teria me adiantado porque, ao invés de examinar apenas uma preliminar, apreciei as duas preliminares em conjunto, que se confundiam. Eu fui ao microfone para dizer a ele que ainda bem que eu não me atrasei. Percebi que até talvez houvesse um atrito entre dois colegas, o ministro Joaquim Barbosa e o ministro Eros Grau. O ministro Eros Grau estava em um dia de contemplação, porque talvez tivesse mandado a bengala no ministro Joaquim Barbosa se não estivesse. O ministro Joaquim Barbosa, entusiasmado, talvez até pelo aplauso que teve da sociedade brasileira no caso do mensalão, pelo fato de ter saído até mesmo como capa de duas revistas, está de pilha nova. Está com a corda toda. Mais isso se acomoda. Logo ele volta a uma atuação mais tranqüila. Uma atuação menos agressiva. Agora, o acompanhamento é muito importante — e para isso as sessões são públicas. Porque ele cobra postura dos integrantes da corte. Ele implica a eficiência dos trabalhos. E que cada um perceba que não pode extravasar certos limites.

ConJur — O senhor é um defensor da urna eletrônica. Testes atestaram a segurança do voto eletrônico, mas o sistema é muito questionado ainda. Tanto que a Subcomissão Especial de Segurança do Voto Eletrônico da Câmara dos Deputados acaba de elaborar projeto que institui voto impresso e auditoria manual em um percentual as urnas. A que o senhor atribui as diversas tentativas de mudar o sistema para voto impresso?

Marco Aurélio — Eu atribuo ao ranço. Ao apego ao que está estabelecido e à aversão a tudo que é novo. Ao misoneísmo. A um certo saudosismo por parte de um segmento político que quer restabelecer o sistema anterior, que permitia a manipulação dos votos pelo próprio homem. Qual é a diferença entre o eleitor ver o voto digitado na telinha da urna ou ver o que aparecerá na fita da impressão? Não há qualquer diferença. E nós não podemos, por exemplo, como quer o projeto da subcomissão, auditar um sistema moderno por um sistema ultrapassado, sob pena de mitigarmos o sistema moderno. Eu presidi as primeiras eleições informatizadas em 1996, voltei a presidir as últimas eleições e, nesse período, nós não tivemos uma impugnação com indícios minimamente sérios. Muito menos uma impugnação que tivesse sido acolhida. Será que somos todos, eleitores e eleitos, um bando de ingênuos? Voltaria eu a presidir o Tribunal Superior Eleitoral se tivesse a mínima dúvida quanto ao sistema adotado? A resposta é negativa. Agora, no Brasil, nós precisamos modificar não o que está dando certo e é orgulho nacional, como é o sistema eleitoral brasileiro da urna eletrônica, mas o que está errado. Vamos abrir os nossos olhos para o que está errado.

ConJur — Como foi o ano de 2007 para o Tribunal Superior Eleitoral?

Marco Aurélio — Mais tranqüilo porque não houve eleições, mas um ano de reafirmação da diretriz traçada no início do meu mandato. Ou seja, de busca da eficácia da lei, da correção de rumos para ter-se um apego maior aos princípios estabelecidos, principalmente pelos políticos e candidatos. Estamos também julgando os processos das eleições de 2006 e alguns processos anteriores, das eleições municipais de 2004.

ConJur — Apesar de o ano não ser eleitoral, é de preparação para novas eleições. E há movimentação intensa, não?

Marco Aurélio — Sempre há, porque não se prepara uma eleição da noite para o dia. Nós estamos agora aprovando as resoluções que disciplinarão as eleições 2008. Os calendários, a disciplina quanto à propaganda eleitoral, ao registro, etc..

ConJur — A decisão do TSE sobre a fidelidade partidária também foi um marco.

Marco Aurélio — Foi a decisão mais importante, em termos de purificação, dos últimos tempos. Foi um avanço considerável em termos de cidadania e de fortalecimento dos partidos políticos. Comparo essa decisão à do Supremo, preservando minorias, quanto à cláusula de barreira.

ConJur — Há a crítica de que, ao regulamentar o processo para que os partidos reclamem de volta os mandatos de políticos infiéis, o tribunal extrapolou suas atribuições. O TSE legislou?

Marco Aurélio — Nós agimos por decisão do Supremo Tribunal Federal, que tem a última palavra sobre o alcance da Constituição. E tem a última palavra, eu diria mais, sobre a vida nacional. Porque depois que o Supremo bate o martelo, não há a quem recorrer. É bom que seja o Supremo que o faça, porque é um órgão que não está engajado em qualquer política momentânea, isolada ou governamental.

ConJur — O Judiciário vem ocupando os vácuos deixados pelo Legislativo?

Marco Aurélio — Não. O que está ocorrendo é que não se observa a legislação existente. A atuação do Judiciário é sempre uma atuação vinculada, muito embora a interpretação seja um ato de vontade. Mas é interpretação de algo que existe. Ou seja, da norma. Então, como não há observância da lei, o Judiciário atua. E atua glosando certas posturas. Ao fazê-lo, ele legisla? Não. Ele dá eficácia à lei, às regras do jogo. Quem estabelece as regras do jogo é o Legislativo.

ConJur — Por que, então, a crítica recorrente de que o Judiciário legisla?

Marco Aurélio — Eu tributo a um certo direito, que é o direito de espernear. O Judiciário não legisla. A não ser o Judiciário do Trabalho que tem o poder normativo quando surge um conflito coletivo de trabalho. Ou então o Supremo, mas no caso concreto, não de forma abstrata autônoma, quando julga o Mandado de Injunção. E julga o Mandado de Injunção por quê? Porque o Legislativo não regulamentou o preceito constitucional relativo aos direitos do cidadão. Assim como existem inúmeros preceitos constitucionais até hoje latentes, passados quase 20 anos dessa Constituição que já se tornou um verdadeiro periódico, de tão emendada que foi nos últimos anos.

ConJur — Existem propostas no Congresso para emendá-la um pouco mais. No que diz respeito às eleições, há propostas para um terceiro mandato e outras para acabar com a reeleição. Como o senhor vê o fato de tentarem mudar as regras do jogo com tanta freqüência?

Marco Aurélio — O avanço cultural pressupõe estabilidade normativa. No Brasil nós precisamos muito mais de homens, especialmente de homens públicos, que observem as leis existentes, do que de novas leis. Nós não teremos dias melhores por simples canetadas. Ou seja, pela simples aprovação de uma lei e sua publicação no Diário Oficial. É preciso atentar para um princípio muito caro em uma sociedade que se diga democrática, que é o princípio da legalidade. Dando ênfase a um outro princípio que se sobrepõe ao aspecto formal, que é o princípio da realidade. De nada adianta ter algo na vitrine apenas em exposição. É preciso ter a lei observada por todos, especialmente pelo Estado, a quem cumpre dar exemplo que sirva de norte aos cidadãos. Se o próprio Estado adota postura extravagante como ocorre, por exemplo, no que eu denominei como calote oficial…

ConJur — A falta de pagamento dos precatórios.

Marco Aurélio — Sim. Se o Estado age à margem da ordem jurídica existente, o que se pode esperar do homem comum? E aí estão as estatísticas. O número de processos no Supremo e no Superior Tribunal de Justiça envolvendo o Estado é exorbitante. Será que o cidadão comum litiga com o mais forte, que é o Estado, por bel prazer? Claro que não. É que nos últimos anos o Estado vem tripudiando, deixando a sociedade viver em sobressaltos, aos solavancos.

ConJur — Muitos dizem que está em avanço no Brasil um Estado Policial. O senhor concorda com isso?

Marco Aurélio — A quadra é uma quadra alvissareira. Sou arauto da atuação da Polícia, especialmente da Polícia Federal, e sou arauto da atuação do Ministério Público. Nós precisamos corrigir rumos. E a única forma de se corrigir rumos sem atropelos é afastando esse sentimento de impunidade. Não há um Estado policialesco porque nós temos a democracia em pleno funcionamento. Há equilíbrio entre os Poderes e o Judiciário estará sempre de portas abertas ao cidadão que se diga prejudicado por um ato da Polícia, do Executivo, do Legislativo, ou até mesmo do Ministério Público, a quem cumpre zelar pela integridade da lei.

ConJur — O senhor assistiu a Tropa de Elite? O que achou?

Marco Aurélio — Assisti e achei que ali se revela de forma escancarada a truculência do Estado. Eu não posso conceber a tortura. E a tortura é mostrada. Há de haver a repressão, mas sempre guardados parâmetros. Sem haver extravasamento, sem execuções, sem a submissão do homem a condições verdadeiramente animais.

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