Tamanho do crime

Entrevista: Alberto Silva Franco, presidente do IBCCrim

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26 de agosto de 2007, 0h00

Alberto Silva Franco - por SpaccaSpacca" data-GUID="alberto_silva_franco.jpeg">A legislação penal brasileira dá mais valor ao patrimônio do que à vida. Prova disso é que a pena mínima do crime de homicídio qualificado, por mais cruel que seja, é de 12 anos de reclusão. Nos casos de extorsão mediante seqüestro, com lesão corporal grave, a pena mínima é o dobro: 24 anos de reclusão.

No ano de 1998, depois do escândalo das pílulas de farinha, um artigo foi incluído no Código Penal determinando que adulterar medicamentos é crime punido com, no mínimo, 10 anos de reclusão. A mesma pena se aplica para a falsificação de cosméticos (artigo 273 do CP). Criou-se nova aberração. Falsificar batom dá 10 anos de cadeia. Lesão corporal gravíssima, dois anos. Conclusão: o batom vale mais do que os lábios.

Quem compara a lei para mostrar qual o bem de maior valor na ótica legal é o desembargador aposentado Alberto Silva Franco, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Segundo o juiz, há ainda o agravante de que as chances de o criminoso ser punido pelo delito é baixa. Silva Franco explica que existe uma cifra oculta entre o número de crimes cometidos e o de delitos punidos. A estimativa é de que apenas 12% dos atos ilícitos praticados sejam devidamente processados e julgados. Os 88% restantes ficam na chamada de cifra oculta e nunca serão apurados.

Silva Franco assumiu a presidência do instituto neste ano, mas desde 1992, quando o IBCCrim foi fundado, participa das atividades da entidade. Em entrevista na sede da ConJur, o desembargador aposentado contou que o instituto foi criado quando se percebeu que não existia no Brasil uma entidade capaz de lidar com questões do Direito Penal.

Em 1992, época da fundação, o Brasil vivia no campo político o impeachment de um presidente. Na esfera criminal, uma das maiores crises do sistema penitenciário paulista: o massacre do Carandiru — quando o pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, no complexo do Carandiru, foi invadido por policiais durante uma rebelião e 111 presos morreram. “Percebemos como o Estado pode ser violento e como é capaz de produzir violência. Aquilo preocupou muito as pessoas que militavam no crime. Não poderíamos ficar de mãos atadas.”

O instituto foi então, fundado, para discutir o Direito Penal. Hoje, o IBCCrim tem 4,4 mil associados. É consultado para opinar sobre projetos de lei, “não pelos deputados, obviamente, mas por órgãos do governo federal”, afirma. “Certa feita, representantes do IBCCrim foram ao Senado para discutir determinada questão. Foram procurados alguns senadores em seus gabinetes. Acredita que eles tiveram que mandar buscar a Constituição na biblioteca, pois não tinham no gabinete.”

O presidente do IBCCrim se formou em 1954 em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ingressou na magistratura três anos depois. Silva Franco conta que abandonou a magistratura antes do que queria porque não era bem quisto entre seus colegas por defender, em plena ditadura militar, princípios como o da presunção de inocência. Promovido em 1985 do Tribunal de Alçada para o Tribunal de Justiça, assumiu o cargo sem a cerimônia habitual e pediu aposentadoria do mesmo ano.

Participaram da entrevista os jornalistas Gabriela Invernizzi, Maurício Cardoso e Rodrigo Haidar.

Leia a entrevista

ConJur — Violência e criminalidade significam a mesma coisa?

Alberto Silva Franco — É extremamente prejudicial dizer que se existe crime, logo há violência. Violência é um conceito muito mais amplo do que o da criminalidade. A concentração de riquezas, por exemplo, é um tipo de violência. O Brasil é o oitavo país com pior divisão de riqueza do mundo. Somos campeões em acidentes de trabalho e de trânsito, o que também pode ser considerado violência. Acreditar que o conceito de violência esteja exclusivamente vinculado ao conceito de crime é falso.

ConJur — Logo, é errado também acreditar que o Direto Penal pode ser usado para combater a violência?

Silva Franco — Essa é a mentira mais deslavada que existe. Não há como resolver problemas sociais por meio do Direito Penal. Se algum dia este país melhorar, será quando fizermos uma aplicação maciça de políticas de caráter social. O resultado será obviamente a imediata diminuição de qualquer tipo de violência. Agora, se continuarmos a encontrar soluções que nada têm a ver com as políticas sociais, os resultados vão continuar a ser danosos.

ConJur — Como se define a criminalidade?

Silva Franco — Existem dois tipos de criminalidade que precisam ser muito bem separados. Um tipo é a criminalidade de rua, aquela que perturba cada um de nós, cidadãos. O outro é o da criminalidade transnacional, organizada e com características próprias. Ficamos muito preocupados com a criminalidade de rua e pouco preocupados com a criminalidade transnacional, que é aquela que produz maiores danos.


ConJur — A segunda forma de criminalidade pode ser chamada de crime organizado?

Silva Franco — Sim, mesmo não tendo definição clara do que é crime organizado. E não há definição por falta de vontade política. Não tenho conhecimento de nenhum projeto que diga claramente o que é o crime organizado. E, se um dia houver, dificilmente passará pelo Congresso Nacional. Não temos no Brasil a chamada lei delegada que sirva também para os direitos e garantias fundamentais. Quando existe lei delegada, o presidente da República tem poderes para elaboração de leis em casos expressos. Ele pode nomear uma comissão de juristas para criar as novas regras. Feito isso, o projeto é remitido para o Congresso, que ou aprova in totum, ou rejeita na íntegra. Hoje, se o governo elaborar projeto de lei abordando a parte especial do Código Penal, ou não sai, ou sai completamente remendado.

ConJur — Ou é aprovada uma série de leis de ocasião…

Silva Franco — Precisamos encontrar um instrumento que permita a elaboração de projetos de lei mais abrangentes. É um absurdo criar lei para resolver a criminalidade e inventar penas absurdas, se comparadas com o tamanho do crime. A pena mínima é sempre o retrato daquilo que o legislador considera quanto à gravidade do delito. Pune-se com 12 anos de reclusão o homicídio mais cruel possível. Com 20 anos de reclusão o crime de latrocínio e com, no mínimo, 24 anos, a extorsão mediante seqüestro com lesão corporal grave. Veja que interessante. O crime mais sério na legislação penal deveria ser o homicídio. No entanto, o que o legislador fez foi proteger o patrimônio, no lugar da vida.

ConJur — Outro exemplo disso é a Lei de Crimes Hediondos.

Silva Franco — A Lei 8.072/90 foi capaz de igualar estupro com atentado violento ao pudor. Ambos os delitos são punidos com seis anos de reclusão, no mínimo. Atentado violento ao pudor faz pressupor uma gama imensa de atos de libidinagem, que pode ser desde passar a mão em alguém até roubar um beijo. Isso está equiparado à violência contra a mulher. E o juiz vai, em tese, ter de aplicar seis anos de reclusão no caso em que o sujeito eventualmente tenha obtido um beijo lascivo. E não fica por aí. O artigo 273 do Código Penal nasceu depois que um laboratório farmacêutico fabricou pílulas de farinha. Como o caso teve grande repercussão e causou enorme comoção popular, o legislador achou por bem criar punição criminal para isso. Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais tem pena mínima de 10 anos de reclusão. Mas aí decidiram tratar medicamentos e também cosméticos na mesma lei. Resultado: falsificar um batom também dá 10 anos de reclusão. Lesão corporal gravíssima, aquela que produz uma deformidade permanente, é punida com dois anos de reclusão.

ConJur — O batom vale mais do que o lábio.

Silva Franco — E esse não é o único problema. A partir da Lei de Crimes Hediondos, se instalou uma fábrica de leis penais. A cada dia uma nova lei surge para atender a um caso concreto que mobilizou a opinião pública. E isso significa destroçar o sistema.

ConJur — A reforma do Código Penal pode ser a solução?

Silva Franco — Sim, desde que haja algum expediente que permita a formulação de um projeto de reforma do Código que não fique subordinado a um nível grande de emendas. O Direito Penal serve para tudo, menos para resolver problema social. Precisamos é da escola, saúde e emprego.

ConJur — Cadeia resolve problema social?

Silva Franco — Não. E precisamos chamar a atenção para as estatísticas. Dos crimes cometidos, apenas 12% são processados e julgados. Os 88% restantes, chamados de cifra oculta, nunca serão apurados. Ficamos muito preocupados com as pessoas que estão presas e esquecemos que dentro da sociedade temos homicidas e estupradores que nunca serão punidos. Este é o sinônimo da incapacidade do sistema em lidar com a criminalidade. Se não conseguimos apurar mais do que 12%, 15% dos crimes, a conclusão a que se chega é a de que o sistema está falido. E mesmo assim, a população carcerária é muito grande. Punindo 12% dos criminosos, já temos cadeias superlotadas, imagine se condenássemos 99%.

ConJur — E para que serve a cadeia, então?

Silva Franco — Serve para tranqüilizar os segmentos mais privilegiados da sociedade.

ConJur — Quer dizer, a cadeia é extensão do condomínio fechado.

Silva Franco — Um pouco, além de aumentar a exclusão social.

ConJur — Em quais ocasiões pode ser aplicado o Direito Penal Mínimo?

Silva Franco — A idéia do Direito Penal Mínimo é aplicar o Direito Penal em último caso. Temos dois tipos de controle social: o formal e o informal. A Igreja, por exemplo, é uma forma de controle social informal, assim como a imprensa, a escola, etc. As formas do Direito (Civil, Administrativo, Penal) são os controles sociais formais. Quando se fala em Direito Penal Mínimo, queremos dizer que o Direito Penal só deve intervir quando os outros controles sociais falharem. Hoje, o que se faz é o contrário.


ConJur — Os juízes têm dificuldade de reconhecer que criminalidade e violência podem ser resolvidas com aplicação menos severa da legislação penal?

Silva Franco — Há uma experiência interessantíssima dos chamados Centros de Integração da Cidadania, os CICs, implementados em São Paulo durante o governo Mário Covas. O CIC promovia reuniões comunitárias com a presença de um juiz, do promotor, do delegado, de moradores e assistente social para decidir o que era importante naquele momento à comunidade. O juiz que passa por uma experiência como esta tem uma visão diferente do mundo. Fui juiz e reconheço que nossa deficiência começa no ensino jurídico. Somos condicionados a aplicar a lei de forma rigorosa, sem olhar para as condições sociais do acusado.

ConJur — Juízes, na maior parte das vezes, pertencem a uma classe social privilegiada.

Silva Franco — E por isso tem pouco contato com a realidade social. Isso prejudica a análise e julgamento das causas, porque o magistrado não conhece o tamanho da exclusão social. O juiz examina o papel, não a realidade. O que se pede é que conheça primeiro a realidade, antes de se examinar o papel. Juiz tem de conhecer a realidade onde está inserido. Mesmo tendo meus códigos e valores, não posso impor isso a outras pessoas que não têm a menor compreensão do que entendo ser correto.

ConJur — O argumento contrário à videoconferência é o de que o procedimento afasta o acusado do juiz, o que pode ser muito prejudicial. O senhor é contra ou a favor da tele-audiência?

Silva Franco — Sou contra porque a videoconferência fere o direito a ampla defesa. Imagine um acusado em um presídio no interior do estado e o juiz, na capital, lhe fazendo perguntas. O advogado precisa estar com seu cliente, assessorando-o. A pergunta que fica é: quem vai fiscalizar o que constará da declaração do preso? Outro ponto é que o depoimento é feito dentro da própria prisão. Já imaginou a filtragem de informação que deve passar dentro do presídio sobre aquilo que o preso declarou ao juiz, ou sobre informações que ele deu sobre comparsas? O preso vai acabar sofrendo retaliações. E, por fim, considero que contato pessoal do juiz com o preso é um dos momentos fundamentais do processo penal, que não pode ser abolido.

ConJur — O juiz poderia ir à prisão também, para tomar o depoimento?

Silva Franco — Essa solução me parece razoável. Na Itália é muito comum os prédios da Justiça estarem ajustados ao próprio presídio.

ConJur — Além da cifra oculta, a morosidade do Poder Judiciário pode também ser considerada fator da impunidade?

Silva Franco — Pode, mas temos de levar em conta o volume incrível de processos. E também a quantidade exponencial de recursos que existe no Brasil. Aqui se tem possibilidade de recorrer de tudo. Os tribunais estão carregados de processos, por conta da enorme quantidade de recursos disponíveis.

ConJur — E advogado gosta de recorrer.

Silva Franco — Lógico que gosta. Mas recorre porque tem oportunidade e pode, com isso, protelar o desfecho de um caso. Se as custas judiciais fossem mais altas, muitos desistiriam de recorrer. E existe outro fator que merece ser destacado. O Estado é um grande recorrente. Tenho a impressão que 70% dos processos que estão hoje em tribunais superiores decorrem de recursos do Estado. Se o Estado reconhecesse os casos em que deveria efetivamente que cumprir sua parte, a Justiça não estaria onerada. Se for exata essa afirmação de que 70% dos casos decorrem de recursos do próprio Estado, você vai verificar que teríamos 30% para decidir. O que diminuiria muitíssimo a duração de um processo.

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