Terrorismo jurídico

Presunção de culpabilidade iguala culpados e inocentes

Autor

  • Manuel Alceu Affonso Ferreira

    é advogado juiz aposentado do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo ex-conselheiro da Associação dos Advogados de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil e da seccional paulista da OAB e ex-secretário de Justiça do estado de São Paulo.

25 de abril de 2007, 16h13

Lembro-me bem daquela calorenta manhã carioca. No escritório do seu apartamento da Rua Paissandu, Alceu Amoroso Lima, meu avô, recebeu o inesperado telefonema – direto, sem secretárias nem ajudantes-de-ordens – do presidente Castelo Branco, tentando convencê-lo da inexistência do “terrorismo cultural” que, dias antes, um revoltado Tristão de Athayde denunciara. Décadas desde então se passaram.

Os perseguidos da época conquistaram o poder, ou imaginaram tê-lo conquistado.E aí, àquele que era “cultural”, sucedeu um novo e não menos repulsivo terrorismo: o “jurídico”. As vítimas do patrulhamento e do clima de pânico não mais são os escritores, professores, artistas e jornalistas. É que, nestes tempos de sempre relembrados e excelsos “valores republicanos”, os intelectuais cederam os seus lugares aos bacharéis, advogados e magistrados.

A questão é simples. Apurem-se à exaustão, aos limites máximos do que for possível, os desvios funcionais e os delitos cometidos por juízes de quaisquer instâncias e patronos de quaisquer prestígios, tal como se vem fazendo no inquérito equilibradamente conduzido pelo ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal. Quanto aos investigados, exija-se a apuração, minuciosa e correta, que a lei penal e a ética administrativa reclamam, e tudo visando a que (se for o caso) possam mais tarde vir a ser responsabilizados e (se for o caso) punidos e (se for o caso) expiem as suas culpas nos cárceres e na perda dos seus ilícitos patrimônios.

Entretanto, no curso do procedimento investigatório, que, aliás, apenas começou, não se risque da Constituição brasileira o princípio, maior e fundamental, da presunção de inocência. Menos ainda, defenda-se como válida a antinômica regra da presunção de culpabilidade. E, ainda muito menos, porque alguns poucos e isolados dos seus membros erraram, corrompendo ou se vendendo, não se transforme a advocacia, como um todo, em súcia corruptora, ou a magistratura, como um todo, em quadrilha corrompida. Li há dias, ao se antecipar a chegada da “Operação Furacão” a São Paulo, uma relação de magistrados que teriam concedido liminares a “bingueiros”.

Esse rol foi logo após corrigido, seja porque aquelas medidas haviam sido revogadas pelos próprios juízes acusados, seja simplesmente porque aqueles magistrados jamais as haviam deferido. Entretanto, nesses desacertos fáticos não residiu aquilo que, a meu ver, era o mais grave. O mais relevante, isto sim, foi a operação mental de transformar o eventual deferimento de liminar em sugestão de venalidade ou em seu irrefutável sinal.

Noutras palavras, o que assusta e desserve à Justiça é o exercício do simplório raciocínio de que, porquanto (alegadamente) algum pervertido julgador concedeu liminar graças à farta moeda que recebeu, daí em diante todo e qualquer outro juiz que tenha despachado medida idêntica — a favor de “bingueiro” ou de qualquer impetrante —- também recebeu dinheiro, carros importados, viagens, etc. É nisso, nessa confusa operação mental baralhadora de alhos e bugalhos, que reside o terrorismo jurídico.

Dizendo de outro modo, esse terror nasce da furibunda cegueira incapaz de admitir que, nas suas avassalantes maiorias dignas e probas, a judicatura e a advocacia atuam “ex rigore juris”, aplicando aos casos concretos as leis que o Parlamento votou e o Executivo sancionou e, portanto, atuando honestamente.

Nesse ambiente de pânico forjado, involuntariamente que possa ser, por fontes anônimas e por afoitezas de comunicadores, o deus grego perturbador dos espíritos — o “Pã” — amedronta o eventual peticionário, que não ousa solicitar tutela ao Judiciário. Mas, caso a ousada impetração sobrevenha, o terrorismo jurídico então apavorará ao juiz que, se acolhê-la, tem como inevitável a sua inclusão na lista negra dos ímprobos. Atemoriza-se até mesmo ao Ministério Público, porque os pleitos de prisão preventiva e de restrições patrimoniais, caso não mecanicamente deduzidos, significarão conivência com a criminalidade ou pacto com a desonestidade no trato da coisa pública.

Por tudo isso, esse novo tipo de terrorismo, fundado na inconstitucional presunção de culpabilidade, entrava e bloqueia a jurisdição. Imobilizará principalmente aos juízes, que não são selenitas nem extraterrenos, mas seres humanos sujeitos, porque mortais, às inquietações do pavor. A tranqüilidade e a serenidade decisórias, atributos essenciais à arte do justo, serão substituídas pelo mais fácil e cômodo “deixar como está”, visto que, assim, risco algum o magistrado correrá. Jamais imaginei, nestes 40 anos de diuturna atividade forense, que a tal extremo pudéssemos chegar.

Ao apavoramento judicante aportamos, com todos os seus ruinosos efeitos para a coletividade. Falamos tanto, nos seminários e debates econômicos, da imprescindível necessidade de “segurança jurídica”, mas ao mesmo tempo constrangemos e amedrontamos àqueles que por ela são, e sempre serão, os maiores responsáveis.

Retorno àquela saudosa manhã guanabarina, a Tristão de Athayde e ao presidente Castelo. “Deixe-os em paz!”, bradou meu avô em solidariedade a seus colegas da intelectualidade. E, como a história se repete, agora essa mesma indignada resposta merecem os artífices, voluntários ou não, do terrorismo jurídico. Em suma, castiguem os rarefeitos juízes maus, mas deixem em paz e sem medos os muitos e muitos bons magistrados.

Afinal, serviço é o que não lhes falta…

[Artigo publicado originalmente nesta quarta-feira (25/4) no jornal O Estado de S. Paulo]

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!