Poder invisível

Foro privilegiado é um meio de favorecer a impunidade

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24 de abril de 2007, 15h51

O foro privilegiado, também chamado de foro por prerrogativa de função, não tem nenhuma justificativa ética. Ao contrário, desrespeita frontalmente o princípio republicano da igualdade, segundo o qual a lei deve ser aplicada da mesma maneira a todas as pessoas que se encontrem na situação prevista por ela, independentemente da posição social que ocupem.

Assim, o acusado de cometer um crime deve ser julgado pelo juiz do local onde o fato se consumou, qualquer que seja o cargo, o emprego ou o ofício que ele exerce. Do presidente da república ao faxineiro, todos devem ser tratados igualmente, sob pena de não se ter uma democracia, mas uma aristocracia, em que uma elite governante se coloca acima da lei.

No Brasil, a aristocracia está bem definida: são mais de 700 autoridades dos três Poderes (presidente e vice-presidente da república, ministros de estado, senadores, deputados federais e ministros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior Eleitoral e Tribunal Superior do Trabalho) que só podem ser julgadas penalmente pelo STF1. Essa situação traz problemas de cunho ético e prático.

Eticamente, tem-se uma situação em que os ministros do STF são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado. O surrealismo da situação é visível: potenciais “acusados” são os responsáveis pela nomeação de seus julgadores! Mais ainda: esse mesmo roteiro é seguido para a nomeação do procurador geral da república, responsável pela acusação perante o STF.

Isso mesmo: os potenciais “acusados” são também os responsáveis pela nomeação de seu acusador! Por mais que o acusador e os julgadores contem com garantias constitucionais para sua independência, há, no mínimo, um grande risco de vinculação política e ideológica com os políticos responsáveis por sua nomeação2.

Em termos práticos, verifica-se que o STF não é um órgão apto a realizar investigações, coletar documentos e ouvir depoimentos de testemunhas. Tais atividades instrutórias são típicas de juízos de primeiro grau, que têm por função precípua lidar com os fatos no local onde eles ocorreram. A finalidade do STF é radicalmente oposta a essa, pois cumpre a ele proteger a Constituição Federal, principalmente por meio do controle abstrato das normas. Percebe-se claramente que a realização de processos penais é incompatível com seu caráter de corte constitucional.

Essa incompatibilidade é cabalmente demonstrada pelas estatísticas: levantamento feito pelo próprio Supremo verificou que, nos últimos dez anos, foram concluídos apenas vinte processos penais envolvendo políticos. Em treze, foi declarada a prescrição, e em outros nove, os réus foram absolvidos. Ou seja, não ouve condenação nenhuma nesse período. A situação é semelhante no STJ, que nunca condenou criminalmente um desembargador.

No livro A República, de Platão, é contada a história de Giges, um camponês que encontra um anel capaz de torná-lo invisível. Com ele, pôde cometer diversos crimes sem nunca ter sido apanhado. No Brasil de hoje, algumas autoridades contam com esse anel, que lhes dá a certeza da impunidade. Para tornarem-se invisíveis aos olhos da Justiça, bastou adotarem um mecanismo que inviabiliza qualquer condenação: o foro privilegiado, ou, em um eufemismo, o foro por prerrogativa de função.

Notas de rodapé

1 – Não se ignora os milhares de agentes políticos com foro privilegiado perante o STJ, os tribunais regionais federais e os tribunais de Justiça.

2 – Nesse sentido, tivemos um ministro do STF que era considerado “líder do governo” nesse tribunal e um Procurador-Geral da República que deixava continuamente de denunciar a situação governista, pelo que ganhou a alcunha de “Engavetador-Geral da República”.

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