Lei e direito

Maioria do STF delimita direito de greve de servidor

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12 de abril de 2007, 18h34

A greve no funcionalismo público continua sem regras, mas por pouco tempo. Um pedido de vista do ministro Joaquim Barbosa adiou a definição do julgamento de dois Mandados de Injunção, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre a regulamentação da greve dos servidores públicos.

 Apesar do adiamento, o STF dificilmente não decidirá por aplicar ao serviço público as mesmas limitações do trabalhador da área privada enquanto o Congresso Nacional protela a aprovação de lei que regulamentaria esse direito: são sete votos a favor da aplicação da Lei de Greve (Lei federal 7.783/89) e um contra. Isso porque, mesmo com o pedido de vista, cinco ministros adiantaram seus votos.

 Para os ministros Eros Grau, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia e Cezar Peluso, o Judiciário pode apontar as regras a ser seguidas nos casos em que um direito constitucional não é exercido por conta da omissão legislativa. “A Constituição Federal não é um estatuto subordinado à vontade do legislador comum”, afirmou Celso de Mello.

 A discussão é travada em duas ações. O primeiro Mandado de Injunção, de número 670, foi ajuizado pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo contra o Congresso Nacional e pretende assegurar aos seus filiados o exercício do direito de greve. O segundo, de número 712, foi impetrado pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Pará pelo mesmo motivo.

 O ministro Ricardo Lewandowski, que trouxe seu voto a julgamento nesta quinta-feira (12/4), garantiu o exercício de greve aos servidores, mas não concordou com a aplicação da Lei de Greve (7.783/89) para o funcionalismo.

 Lewandowski determinou ao governo do Espírito Santo (no caso dos policiais) e ao Tribunal de Justiça do Pará (no caso dos servidores do Judiciário) que se abstenham de “adotar medidas que inviabilizem ou limitem o direito de greve”, tais como o corte do ponto dos servidores, imposição de multa pecuniária diária ou o desconto dos dias parados.

 Ou seja, reconheceu o direito de greve e a efetiva aplicação do Mandado de Injunção no lugar da mera declaração de mora, mas não aceitou a tese da aplicação das regras da iniciativa privada. “Não vejo semelhança relevante entre a greve dos trabalhadores do setor privado e a greve dos servidores públicos. Com efeito, não reconheço, data vênia, identidade jurídica entre os dois fenômenos que autorize a aplicação da Lei 7.783/89 ao serviço público”, sustentou o ministro.

O ministro ainda ressaltou que a lei aplicada à iniciativa privada não serviria para ser aplicada genericamente. “Parece inquestionável que uma greve de professores do ensino fundamental, por exemplo, não deve ter o mesmo tratamento que o dispensado à uma greve de controladores de vôo ou de profissionais da saúde pública. Cada uma dessas paralisações requer regulamentação que atenda às suas especificidades e ao mesmo tempo resguarde os interesses da coletividade”.

 Mandado de Injunção

Os ministros Eros Grau e Gilmar Mendes — que propuseram originalmente que a greve do funcionalismo deve se sujeitar às mesmas regras da iniciativa privada, ao menos até que o Congresso regulamente o direito constitucional — reforçaram suas posições após o voto de Lewandowski.

Para o ministro Gilmar Mendes, a falta de regras dá margem a negociações heterodoxas e a proibição do desconto dos dias parados acaba por representar um acréscimo em termos de férias para os servidores. “A não atuação do tribunal neste caso se configuraria quase que como uma espécie de omissão judicial”, sustentou. Gilmar afirmou que o julgamento não trata de uma revisão de toda e qualquer orientação quanto ao Mandado de Injunção, mas que a falta de regras dá margem ao abuso.

 Ao pedir vista, o ministro Joaquim Barbosa defendeu que o foro adequado para a discussão não é o Judiciário e afirmou que o Congresso Nacional tem duas audiências marcadas para discutir o tema nas próximas semanas. E perguntou se não seria o caso de esperar a discussão legislativa, antes de decidir o tema. O ministro Gilmar Mendes, então, lembrou que já se espera uma decisão neste caso há 19 anos. Em seguida, os ministros Celso de Mello, Sepúlveda Pertence, Carlos Britto, Cármen Lúcia e Cezar Peluso adiantaram os votos.


 O decano da Corte, ministro Pertence, lembrou que “a greve nunca esperou pela lei para se manifestar”. Logo, a questão da regulamentação deveria ser enfrentada.

 Celso de Mello sustentou que “a jurisprudência do STF evoluiu no sentido positivo, de dar ao Mandado de Injunção o sentido previsto pelo legislador constituinte”. De acordo com o ministro, até então o Supremo “permaneceu numa posição de virtual abstenção”. Carlos Britto também acompanhou o entendimento de que deve se aplicar a lei neste caso.

 A ministra Cármen Lúcia lembrou que a falta de lei que venha regulamentar a greve no funcionalismo já atravessou cinco legislaturas. “Se há o abuso do poder de legislar, esse é um caso de abuso do poder de não legislar”, afirmou. Cármen Lúcia ressaltou que acompanha o entendimento majoritário, mas sem eficácia erga omnes. Ou seja, sem aplicação para todos os casos, e sim apenas aos dois Mandados de Injunção em discussão. E observou que “há 13 anos o STF já tinha declarado a mora do legislativo para regulamentar a matéria”.

 Em seguida, o ministro Cezar Peluso ponderou que não é possível reconhecer o direito de pagamento dos dias parados, já que um serviço deixou de ser prestado. Outro ponto por Peluso foi sobre a essencialidade do serviço público. Os ministros discutiram a aplicabilidade dos artigos 10 e 11 da Lei 7.783/89 e reconheceram que todo serviço público é considerado essencial. Por isso, deveria ser mantido parte em funcionamento.

Decisão provisória

Suspenso o julgamento do mérito, o ministro Eros Grau propôs que o tribunal deferisse uma medida cautelar, de ofício, para garantir a regulamentação da matéria. Depois de uma acalorada discussão em plenário, a proposta foi rejeitada. O entendimento majoritário foi o de que não cabe cautelar em Mandado de Injunção.

Lei a caminho

Enquanto o Supremo não define a questão, o advogado-geral da União, ministro José Antonio Dias Toffoli, anunciou na quinta-feira passada que o Palácio do Planalto deve enviar ao Congresso, ainda este mês, o projeto de lei para regulamentar o direito de greve de servidores públicos. 

“Estamos trabalhando no anteprojeto junto ao Ministério do Planejamento”, informou o ministro, que não omite a preocupação do governo com movimentos como o dos controladores de vôo. 

Embora prevista na Constituição de 1988, o direito de greve no funcionalismo até hoje não está regulamentado. Isso tem feito com que o poder público considere toda greve ilegal, enquanto os servidores cruzam os braços sem observar qualquer limitação do direito. “Greve não pode virar férias”, afirma Toffoli.

Leia um dos votos do ministro Lewandowski 

MANDADO DE INJUNÇÃO 670-9 ESPÍRITO SANTO

RELATOR:-MIN. MAURÍCIO CORRÊA

IMPETRANTE:SINDICATO DOS SERVIDORES POLICIAIS CIVIS DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – SINDPOL

ADVOGADOS:HOMERO JUNGER MAFRA E OUTRO

IMPETRADO:CONGRESSO NACIONAL

V O T O

(VISTA) 

O Sr. Ministro RICARDO LEWANDOWSKI (Relator): Trata-se de mandado de injunção, com pedido de medida liminar, impetrado por SINDIPOL – SINDICATO DOS SERVIDORES POLICIAIS CIVIS DO ESPÍRITO SANTO, contra omissão do Congresso Nacional, consistente na ausência de regulamentação do direito de greve dos servidores públicos, previsto no art. 37, VII, da Constituição de 1988.

 O impetrante narra, em suma, que deflagrou movimento grevista na Polícia Civil capixaba, após infrutíferas negociações com o Governo do Estado. Diz, ainda que, instado por este, “o MM Juiz da Vara dos Feitos da Fazenda Pública Estadual, Dr. Eraldo Gomes de Azevedo, deferiu tutela antecipada em ação ordinária (…), impedindo o exercício do direito constitucional de greve por parte dos associados do impetrante (fl. 05).

Destaca-se da referida decisão o seguinte trecho:


“… diante do exposto, defiro, em parte, o pedido e determino a intimação do Sindipol, na pessoa do seu representante legal, de que a tutela antecipada deferida nos autos do presente processo, que proibiu o movimento paredista, ainda se encontra em vigor, sendo ilegítimo qualquer movimento grevista que porventura pretendam deflagrar e que a não obediência à ordem judicial emanada redundará, além da pena criminal correspondente, no corte do ponto de servidores, bem como na multa pecuniária diária a incidir sobre os dias parados que mantenho em R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Argumenta, mais, que, “após o advento da Emenda Constitucional nº 19/98, passando a condicionar o exercício do direito de greve à edição de lei específica e não mais a lei complementar, caso claro da Lei de Greve – específica, pugna-se como razoável a aplicação desta Lei ao caso concreto, analogamente, sem que se fira suscetibilidades, e impere o primado da legalidade” (fl. 14).

Requer o impetrante, ao final, “seja o presente mandado de injunção julgado procedente, garantindo-se o exercício do direito de greve dos impetrantes com base na Lei Federal nº 7783/89, enquanto este direito não for regulamentado pelo Congresso Nacional; assim como sejam definitivamente banidos do mundo jurídico os efeitos da decisão proferida pelo Juízo Singular no Processo nº 024.010.028.918, anulando-se, definitivamente este processo, posto ferir de morte direito consagrado na Constituição Federal” (fl. 15).

O pedido de medida liminar foi indeferido à fl. 69.

O Presidente do Congresso Nacional, em suas informações, sustentou, em síntese, ter o Supremo Tribunal Federal firmado o entendimento “no sentido de que a finalidade a ser alcançada pela via da injunção resume-se à declaração, pelo Poder Judiciário, da ocorrência de omissão constitucional, a ser comunicada ao órgão legislativo inadimplente, para que promova a integração normativa do dispositivo constitucional nela objetivado” (fl. 76).

Aduz, ainda, a inexistência da alegada omissão por parte do Poder Legislativo, tendo em vista os inúmeras projetos de lei sobre o tema em tramitação no Congresso Nacional (fl. 78).

A Procuradoria-Geral da República opinou pelo deferimento parcial do pedido, para que seja declarada a mora do Poder Legislativo, nos termos da jurisprudência da Corte sobre a matéria (fls. 81-83).

Em petição de fls. 86-90, o impetrante informou a publicação da Lei estadual 7.311/2002, que regulamentou o direito de greve por parte dos servidores públicos estaduais, insistindo na procedência do presente mandado de injunção para garantir o exercício do direito de greve aos policiais civis com base na Lei federal 7.783/89 ou no mencionado diploma local, enquanto o Congresso Nacional não estabelecer normas gerais sobre a matéria.

Na sessão plenária de 15.5.2003, o Relator, Ministro Maurício Corrêa, conheceu em parte da impetração e, nessa parte, concedeu a ordem, para certificar a mora do Congresso Nacional.

Na sessão de 07.06.2006, o Ministro Gilmar Mendes, em voto-vista, conheceu do writ e acolheu a pretensão “tão-somente no sentido de que se aplique a Lei nº 7.783/1989 enquanto a omissão não seja devidamente regulamentada por Lei específica para os servidores públicos”.

Pedi vista dos autos, para melhor refletir sobre a delicada questão, a qual passo a examinar em meu voto, que ora trago à apreciação do Plenário desta Casa.

Preliminarmente, sublinho a especial relevância do pleito sob exame, porquanto, neste julgamento, encontra-se em causa precisamente a própria conformação que o Supremo Tribunal Federal emprestará a este inovador remédio constitucional.

Não resta dúvida, a meu ver, de que é chegada a hora desta Corte avançar no sentido de conferir maior efetividade ao mandado de injunção, dando concreção a um dos mais importantes instrumentos de defesa dos direitos fundamentais concebidos pelo constituinte originário.


E essa é visivelmente a tendência do STF, cuja jurisprudência acerca do instituto vem evoluindo de forma firme e progressiva, como, aliás, demonstram os votos dos eminentes Ministros que me antecederam no julgamento deste mandado de injunção.

É bem verdade que, no passado, ainda no início dessa evolução jurisprudencial, os limites assinalados pelo Supremo à decisão judicial em mandado de injunção foram objeto de críticas por parte de alguns doutrinadores, que os consideravam excessivamente angustos. (1) Mas esses limites, sobre os quais me permito tecer algumas reflexões, foram sendo paulatinamente ampliados (veja-se, a propósito, acórdãos proferidos nos MIs 107-QO, Rel. Min. Moreira Alves; 168, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; 232, Rel. Min. Moreira Alves; 235, Rel. Min. Moreira Alves; 283, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; 284, Rel. Min. Marco Aurélio; 384, Rel. para o acórdão Min. Celso de Mello, entre outros).

No que se refere aos efeitos da decisão em mandado de injunção, ponto que considero nodal neste julgamento, é possível identificar-se três correntes de pensamento. (2) Para a primeira delas, a decisão nessa espécie de ação seria meramente declaratória, ou seja, teria como escopo tão-somente declarar a inconstitucionalidade da omissão legislativa e de dar ciência dela ao órgão competente, para as providências cabíveis.

Tal concepção, defendida por adeptos de uma visão mais ortodoxa do princípio da separação dos poderes, e já contemplada em julgado desta Corte, (3) tem sido considerada ineficaz, por frustrar a expectativa do impetrante de lograr uma tutela efetiva do direito cujo exercício é obstado pela ausência de norma regulamentadora.

A segunda corrente, por sua vez, admite a remoção, pelo Judiciário, do referido obstáculo, viabilizando o exercício do direito no caso concreto. Ultrapassa, assim, a apontada fragilidade da solução aventada pela primeira corrente, uma vez que supera a inefetividade da decisão judicial ao conferir-lhe uma natureza condenatória. Dentre os autores que defendem essa concepção, pode-se mencionar Celso Agrícola Barbi, (4) Flávia Piovesan (5) e José Afonso da Silva. (6)

A  terceira corrente, por fim, entende competir ao Judiciário elaborar a norma faltante para disciplinar a matéria pendente de regulamentação, suprindo, desse modo, a omissão do legislador. A decisão judicial ostentará, então, caráter constitutivo, podendo ser adotada com validade erga omnes ou limitada à situação concreta. É a posição de José Ignácio Botelho de Mesquita, encampada pelo Ministro Eros Grau em seu voto no MI 712, bem como pelo Ministro Gilmar Mendes, para a solucionar este caso.

Especificamente quanto à matéria de fundo deste mandado de injunção, verifico que de há muito vem sendo preconizada nesta Corte a aplicação da Lei 7.783/89, que regula o direito de greve no setor privado, aos servidores públicos, tendo sido essa tese acolhida por alguns Ministros. Destaco, a propósito, o voto do Ministro Marco Aurélio, no MI 20, cujo julgamento ocorreu em 19.05.1994, o qual propôs fosse a referida Lei aplicada aos servidores públicos desde que feitas as necessárias adaptações.

No mesmo julgamento, em abono dessa tese, o Ministro Carlos Velloso consignou o seguinte:

“Sei que na Lei 7.783 está disposto que ela não se aplicará aos servidores públicos. Todavia, como devo fixar a norma para o caso concreto, penso que devo e posso estender aos servidores públicos a norma já existente, que dispõe a respeito do direito de greve.”

Essa posição minoritária prosseguiu sendo defendida nos MIs 438, Relator Ministro Néri da Silveira, 631, Relator Ministro Ilmar Galvão e 485, Relator Ministro Maurício Corrêa. Dentre os debates que a solução suscitou, merece destaque a reflexão proposta pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do MI 438, sendo Relator o Ministro Néri da Silveira:

“Senhor Presidente, no Mandado de Injunção nº 20, julgado em 19 de maio último, votei vencido, não conhecendo do pedido, por entender que a norma do art. 37, inciso VII, é, na terminologia divulgada pela conhecida monografia de José Afonso da Silva, chamada norma de eficácia contida, limitável pelo legislador, mas enquanto não editada a lei, de eficácia imediata.


 Não vou, sequer, ao ponto que chega o eminente Ministro Carlos Velloso porque, na medida em que Tribunal conhece do mandado de injunção, ele declara, mediante o recurso à analogia, ou a outros processos de integração, que não há norma viabilizadora do direito constitucional pleiteado.

 

Parece-me, na minha perspectiva, impossível, para quem conhece do mandado de injunção, depois, adotar uma norma de lei vigente, porque essa norma se aplicaria, ainda que por analogia, e obstaria o conhecimento do pedido de injunção.

 

Não posso, partindo dos pressupostos estabelecidos do Mandado de Injunção 107, uma vez superada a barreira do conhecimento, dizer que existe uma norma que seria aplicável à hipótese, ainda que por analogia.”

 

A solução proposta pelo Ministro Gilmar Mendes, no caso sob análise, como visto, filia-se, exatamente, à terceira corrente de pensamento, nos termos da sistematização do tema desenvolvida pela doutrina brasileira, afinando-se com os votos minoritários mencionados. Sua adoção sustenta-se, essencialmente, na preocupação em conceder-se plena efetividade às normas constitucionais e na aceitação de um modelo de separação de poderes mitigado.

Ora, a efetividade das normas constitucionais, em especial a “operatividade dos direitos fundamentais”, nas palavras de Ricardo Luis Lorenzetti, Presidente da Corte Suprema da Argentina, (7) não sem razão, representa tema caro aos constitucionalistas estrangeiros e nacionais. Estes, de um modo geral, reconhecem que o mandado de injunção pode e deve consubstanciar instrumento de realização do princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, abrigado no art. 5º, § 1º, da Carta Magna.

Para que isso ocorra, não há dúvida, é preciso superar uma visão estática, tradicional, do princípio da separação dos poderes, reconhecendo-se que as funções que a Constituição atribui a cada um deles, na complexa dinâmica governamental do Estado contemporâneo, podem ser desempenhadas de forma compartilhada, (8) sem que isso implique a superação da tese original de Montesquieu.

Não vou tão longe, porém, a ponto de ultrapassar a finalidade do mandado de injunção – que é, nas palavras de José Afonso da Silva, a de “realizar concretamente em favor do impetrante o direito, liberdade ou prerrogativa sempre que a norma regulamentadora torne inviável seu exercício” (9) -, avançando sobre a própria razão de ser do Poder Legislativo, ao qual compete expedir normas de caráter geral e abstrato para regular determinadas situações ocorrentes na realidade fenomênica.

Em outras palavras, não me parece possível, data venia, ao Poder Judiciário, a pretexto de viabilizar o exercício de direito fundamental por parte de determinada pessoa ou grupo de pessoas, no âmbito do mandado de injunção, expedir regulamentos para disciplinar, em tese, tal ou qual situação, ou adotar diploma normativo vigente aplicável a situação diversa.

Por isso, entendo, com o devido respeito, que não se mostra factível o emprego da Lei 7.783/89 para autorizar-se o exercício do direito de greve por parte dos servidores do Poder Judiciário do Estado do Pará, inclusive fazendo tabula rasa de disposição legal nela contida que expressamente veda tal hipótese. Ademais, ao emprestar-se eficácia erga omnes à tal decisão, como se pretende, penso que esta Suprema Corte estaria intrometendo-se, de forma indevida, na esfera de competência que a Carta Magna reserva com exclusividade aos representantes da soberania popular, eleitos pelo sufrágio universal, direto e secreto.

É que, como sustentou o Ministro Sepúlveda Pertence, em assim procedendo, o STF estaria recorrendo a uma analogia, que o levaria, inevitavelmente, a uma aporia de dífícil, senão impossível, transposição.


Com efeito, a analogia foi definida por Norberto Bobbio como o “procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina que a um caso regulamentado semelhante”. (10). O referido autor considerou-a o mais típico e importante dos procedimentos hermenêuticos, por meio do qual se verifica “a tendência de cada ordenamento jurídico a expandir-se além dos casos expressamente regulamentados”. (11) Assenta ele, contudo, que esse método, para que seja validamente empregado, pressupõe que haja, entre as duas hipóteses, uma semelhança relevante.(12)

Concessa venia, não vejo, no caso presente, semelhança relevante entre a greve na esfera pública e a greve no âmbito privado que autorize o recurso à analogia. Embora ambas as situações refiram-se ao fenômeno social “greve”, consistente na paralisação das atividades de determinado setor laboral, em face de reivindicações não atendidas, as distinções que as separam são maiores do que os pontos comuns que as aproximam, a começar do regime jurídico diferenciado ao qual estão submetidos os seus protagonistas.

As particularidades que distinguem os dois movimentos paredistas não deixaram de ser consideradas pelo constituinte originário, que lhes conferiu tratamento diverso no texto magno, com destaque para a ampla discricionariedade que, desde logo, emprestou aos trabalhadores do setor privado para decidirem sobre a oportunidade de exercer o direito de greve e os interesses que devam por meio dele defender (art. 9º, caput, da CF).

De fato, não me parece difícil imaginar que as conseqüências e implicações para a sociedade de uma greve de servidores públicos são distintas daquelas produzidas por uma paralisação de empregados na área privada. Mesmo no âmbito exclusivamente público, diferentes greves apresentam características variadas, que podem e devem ensejar tratamento diferenciado.

Parece inquestionável que uma greve de professores do ensino fundamental, por exemplo, não deve ter o mesmo tratamento que o dispensado à uma greve de controladores de vôo ou de profissionais da saúde pública. Cada uma dessas paralisações requer regulamentação que atenda às suas especificidades e ao mesmo tempo resguarde os interesses da coletividade. Essa é exatamente a dificuldade que o Congresso Nacional vem enfrentando para disciplinar o direito de greve na esfera pública.

Não vejo, permito-me repetir, semelhança relevante entre a greve dos trabalhadores do setor privado e a greve dos servidores públicos. Com efeito, não reconheço, data venia, identidade jurídica entre os dois fenômenos que autorize a aplicação da Lei 7.783/89 ao serviço público.

Servindo-me, novamente, dos ensinamentos de Bobbio, entendo que o raciocínio por analogia, no Direito, somente é lícito se as duas situações, a regulamentada e a não-regulamentada, tenham em comum a mesma a ratio legis. (13) Não vislumbrando, porém, conforme assentei, essa circunstância no caso concreto, afasto a possibilidade de empregar tal procedimento lógico para solucioná-lo. 

Embora comungue da preocupação de que é preciso dar efetividade às normas constitucionais, sobretudo àquelas que consubstanciam direitos fundamentais, estou convencido que o Judiciário não pode ocupar o lugar do Poder ao qual o constituinte, intérprete primeiro da vontade soberana do povo, outorgou a sublime função de legislar.

Tomo de empréstimo, a esse respeito, as ponderações de Maria Helena Diniz, quando afirma que “ao Poder Judiciário está reservada a grande responsabilidade de adequar o direito, quando houver omissão normativa ou quando a sua eficácia apresentar sintomas de inadaptabilidade em relação à realidade fático-social e aos valores positivos, mantendo-o vivo”, ressaltando, no entanto, que “desta afirmação não se infere que o juiz tenha uma liberdade onímoda”.(14)

É que, como bem assentou a citada autora:


“O legislador, ao criar uma norma jurídica geral, generaliza estabelecendo um tipo legal que, em decorrência disso, está separado da realidade imediata da vida que lhe deu origem, abarcando, tão-somente, o seu aspecto geral, concentrando-se em seus traços essenciais ou fundamentais, ao passo que o magistrado, ao sentenciar, não generaliza, mas cria uma norma jurídica individual, incidente e com validade sobre um dado caso concreto.” (15)

São essas as razões que me levam a afastar a aplicação da Lei de Greve dos trabalhadores em geral às paralisações dos servidores públicos, sobretudo porque penso que a solução ideal para o caso sob análise deve passar pela autolimitação do Judiciário no que concerne às esferas de atuação dos demais poderes, sem que este abdique da transcendental competência que a Constituição lhe confere de dar concreção aos direitos e garantias fundamentais, qualquer que seja a natureza da norma que os abrigue quanto à respectiva eficácia.

 Em face do exposto, pelo meu voto, conheço do mandado de injunção, concedendo a ordem em parte para garantir o exercício do direito de greve aos Policiais Civis do Estado do Espírito Santo, assegurada por estes a prestação dos serviços inadiáveis, devendo o Governo do Estado abster-se de adotar medidas que inviabilizem ou limitem esse direito, tais como o corte do ponto dos servidores ou a imposição de multa pecuniária diária.

 Notas de Rodapé

1- Por exemplo, SARAIVA, Paulo Lopo. “O mandado de garantia social no direito constitucional luso-brasileiro”. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. Rio de Janeiro, ano XXXII, vol. 79, p. 138.2- Considerações sobre as três correntes de pensamento em mandado de injunção e seus principais efeitos podem ser encontradas em: PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Mandado de injunção. São Paulo: Atlas, 1999, pp. 80-116; e PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2003, pp. 134-182.

 3- MI 107-QO, Rel. Min. Moreira Alves.

 4- BARBI, Celso Agrícola. “Mandado de injunção”. In Mandados de Segurança e de Injunção. FIGUEIREDO TEIXEIRA, Sálvio (Coord.). São Paulo: Saraiva: 1990, pp. 387-396.

5- PIOVESAN, Flávia. Op.cit, loc. cit.

6- SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2ª ed., 2006, p. 166-167.

7- LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria de la decisión judicial. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2006, pp. 118-119.

8- ALAS, Leopoldo Tolívar. Derecho Administrativo y Poder Judicial. Madrid: Editorial Tecnos, 1996, p. 14.

9- Op.cit., p.166.

 10- BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª ed., 1997, p. 150.

 11- Idem, ibidem.

 12- Op. cit., p. 152, grifo meu.

 13- Op.cit., p. 154.

 14- DINIZ, Maria Helena. As lacunas no Direito. São Paulo: Saraiva, 4ª ed., 1997, p. 286.

 15- Op. cit., p. 291.

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