Ramos no exterior

Leia voto do Marco Aurélio sobre tributos de empresas no exterior

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29 de setembro de 2006, 17h00

O pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski adiou, pela terceira vez, o julgamento pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Confederação Nacional da Indústria. A CNI ataca o artigo 74, parágrafo único, da Medida Provisória 2.1583-35/01, e do artigo 43, parágrafo 2º, do Código Tributário Nacional, que determinaram a tributação de IR e CSLL para empresas controladas ou coligadas no exterior.

O ministro Marco Aurélio votou pela procedência integral da ação ajuizada pela CNI. O ministro considerou que houve violação de três preceitos constitucionais: a) artigo 62, por ter havido absoluta falta de urgência para justificar a edição de uma medida provisória; b) artigos 153, inciso III, e 195, inciso I, alínea “c”, ante a exigência de imposto e contribuição sobre situação que não configura renda ou lucro; c), por fim, artigo 150, inciso III, pelo fato que o dispositivo da MP questionado pretende tributar lucros acumulados relativos a períodos anteriores à sua edição e também relativos ao mesmo exercício financeiro em que adotada a MP.

O ministro Sepúlveda Pertence adiantou o seu voto e acompanhou o entendimento de Marco Aurélio.

Leia a íntegra do voto do ministro Marco Aurélio.

28/09/2006 TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.588-1 DISTRITO FEDERAL

VOTO VISTA

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – O ato normativo atacado mediante esta ação direta de inconstitucionalidade é o artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001:

Art. 74 – Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do artigo 25 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do artigo 21 desta medida provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.

Parágrafo único. Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrida, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor.

Na inicial, citando-se trecho de voto do ministro Luiz Gallotti por mim referido no Recurso Extraordinário nº 150.764-1/PE, aponta-se que esta Corte já estabeleceu o conceito constitucional de renda, fazendo-o mediante decisão unânime no julgamento do Recurso Extraordinário nº 117.887-6/SP, relatado pelo ministro Carlos Velloso, no que veio a ser interpretado o artigo 15, inciso IV, da Constituição de 1946, cujo teor se afirma praticamente igual ao do 2 artigo 153, inciso III, da Carta Política de 1988. Então, sustentase que as normas atacadas conflitam com os seguintes dispositivos da Lei Maior:

a) artigo 62, ante a falta de urgência para chegar-se à disciplina da matéria mediante medida provisória;

b) artigos 153, inciso III, e 195, inciso I, alínea “c”, no que exigidos imposto e contribuição sobre situação jurídica que não configura renda ou lucro;

c) artigo 150, inciso III, alíneas “a” e “b”, no que o parágrafo único do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35/01 teria implicado a tributação de lucros acumulados relativos a períodos anteriores à edição e também de lucros do mesmo exercício financeiro.

Na inicial, alude-se a voto do ministro Sepúlveda Pertence na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.753-2/DF, no sentido de o Supremo jamais haver afastado o exame dos requisitos de relevância e urgência previstos no texto constitucional para ter-se a disciplina de certa matéria mediante medida provisória.

Sob o ângulo da urgência, faz-se a seguinte colocação (folha 7):

4.4 Suponha-se, por exercício de abstração, que a regra do artigo 74 ora em questão seja materialmente constitucional – o que não é, como veremos adiante. Qual a urgência que se pode imaginar para dar, em julho de 2001 (o artigo foi introduzido na 34ª Edição da MP, em julho do 3 corrente ano), a disciplina jurídica de situações que só ocorrerão, pela literalidade do artigo, em 31 de dezembro de 2002 ?

Argumenta-se que poderia ter sido encaminhado projeto de lei em que observada a separação e o equilíbrio de Poderes. Daí afirmar-se faltar, no caso, o requisito “urgência”, indispensável à edição da medida provisória.

No tocante ao desrespeito ao artigo 153, inciso III, da Constituição Federal, assevera-se que a matéria em discussão guarda similitude com o caso do imposto de renda sobre o lucro líquido, criado pelo artigo 35 da Lei nº 7.713/88, que foi examinado pelo Supremo quando da apreciação do Recurso Extraordinário nº 172.058-1/SC. Na assentada, o Tribunal teria proclamado a inconstitucionalidade, no que previsto o imposto de renda na modalidade “desconto na fonte” relativamente aos acionistas, na simples apuração, pela sociedade, e na data do encerramento do período-base do lucro líquido, já que o fenômeno não implicaria qualquer das espécies de disponibilidade versadas no artigo 43 do Código Tributário Nacional, isso diante da Lei nº 6.404/76. Glosara a Corte o artigo 35 da Lei nº 7.713/88, por não guardar sintonia com o Código Tributário Nacional e, inexistindo lei complementar a ampará-lo, configurada estaria a violação do artigo 146, inciso III, do Diploma Máximo. Então, alega-se que nessa oportunidade não houve o exame do citado artigo 35 à luz do disposto no mencionado artigo 153, inciso III, e parte-se para a elucidação de precedente em que apreciada a constitucionalidade de lei de imposto de renda anterior ao Código Tributário Nacional – Recurso Extraordinário nº 117.887- 6/SP -, reproduzindo-se o seguinte trecho do voto proferido pelo relator ministro Carlos Velloso:


Convém esclarecer, de início, que a Lei 4.506, de 30.11.64, foi tirada a lume anteriormente ao Código Tributário Nacional, Lei 5.172, de 25.10.66, com vigência a partir de 01.01.67. Não obstante isso, não me parece possível a afirmativa no sentido de que possa existir renda ou provento sem que haja acréscimo patrimonial, acréscimo patrimonial que ocorre mediante o ingresso ou o auferimento de algo, a título oneroso. Não me parece, pois, que poderia o legislador, anteriormente ao CTN, diante do que expressamente dispunha o art. 15, IV, da CF/46, estabelecer, como renda, uma ficção legal.

Segundo as razões expendidas, ter-se-ia disciplina a extravasar o que previsto no artigo 153, inciso III, da Constituição Federal, sendo que, para chegar-se à instituição de um novo imposto, deveria ser atendida a forma prescrita no artigo 154, inciso I, da Carta da República:

Art. 154. A União poderá instituir:

I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam nãocumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;

[…]

O artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35 encerraria ficção jurídica em que enquadrada como renda situação que não revela renda em si. Isso estaria evidenciado ao se prever a consideração, como disponibilizados, para a controladora ou coligada no Brasil, lucros constantes do balanço formalizado pela controlada ou coligada no exterior, ou seja, a simples apuração do resultado. O conceito constitucional de renda direcionaria à disponibilidade. Daí o Supremo ter decidido que resultado de atividade de pessoa jurídica não distribuído a acionistas e cotistas não constitui disponibilidade, deixando, assim, de se ter como legítima a cobrança de imposto de renda, salvo no caso de firma em nome individual, subsidiária integral ou sociedade de cotas em que haja, no contrato social, previsão de distribuição obrigatória de resultados.

No item 5.7.6 da inicial, ressalta-se a extravagância maior do que previsto quanto às empresas coligadas, porque inexistente o que se poderia tomar como definição, pela empresa sediada no Brasil, da oportunidade de se distribuir, ou não, os resultados. O pedido inicial visa a conferir interpretação conforme a Carta da República ao artigo 43, § 2º, do Código Tributário Nacional, acrescentado pela Lei Complementar nº 104/01, para, sem redução de texto, afastar-se interpretação que ignore a possibilidade única de se definir, no campo da legislação ordinária, o momento de ocorrência do fato gerador, em se tratando de receita ou rendimento auferidos no exterior, jungido ao fenômeno da aquisição por disponibilidade econômica ou jurídica.

A seguir, procede-se à análise referente ao parágrafo único do mencionado artigo 74, afirmando-se que violado estará o princípio da anterioridade tributária estabelecido no artigo 150, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal, caso se confira ao preceito o alcance de viabilizar a cobrança no período compreendido entre a edição da Medida Provisória nº 2.138-35 e 31 de dezembro de 2001, dos lucros apurados mas não distribuídos ou, de forma mais alargada, desde épocas remotas até 31 de dezembro de 2001. Evoca-se o que decidido pela Corte ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 138.284-8/CE, também relatado pelo ministro Carlos Velloso, quando, à unanimidade, o Colegiado concluiu pela inconstitucionalidade do artigo 8º da Lei nº 7.689, no que instituíra contribuição sobre o lucro apurado em 31 de dezembro de 1988, datando a lei do dia 15 do citado mês.

As informações do Chefe do Poder Executivo fizeram-se calcadas em pronunciamento da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, revelando não se ter excepcionalidade maior a levar o Tribunal a glosar a medida provisória pela falta de urgência. No tocante à disponibilidade, remete-se ao artigo 43 do Código Tributário Nacional, asseverando-se que (folha 219):

15. […] realizado o balanço da pessoa jurídica controlada ou coligada no exterior – e verificada a existência de lucro – estes já estão na esfera de disponibilidade da controladora ou coligada no Brasil, que decidirá o destino de tais lucros.

Conclui-se (folha 220):

18. Tanto lhe estão disponíveis que podem ser estes lucros. A) efetivamente pagos ou creditados a elas (disponibilidade econômica); ou podem elas deliberarem, p. ex, B) a sua destinação ao fundo de reserva da controlada ou coligada, implicando aumento na distribuição de ações ou majoração do valor das já existentes, hipótese esta em que o patrimônio da controladora ou coligada também sofrerá acréscimo (disponibilidade jurídica).

A previsão do artigo 74 em comento teria como escopo evitar a protelação do recolhimento por deliberação da controladora ou coligada interessadas, sendo para elas indiferente pagar antes ou quando da percepção dos rendimentos. Sustenta-se a impropriedade dos precedentes mencionados na inicial. O primeiro, de minha lavra, porque relativo a sócios acionistas cotistas e titulares de empresas individuais, e o segundo, porquanto ligado ao imposto de renda a ser recolhido por pessoas jurídicas sobre lucros distribuídos aos sócios. Sob o ângulo da anterioridade, as informações consignam que simplesmente a disciplina cuidou do momento de incidência do imposto de renda sobre bases de cálculos já sujeitas a cobrança. Não teria sido criado pela Medida Provisória nº 2.158-35/2001 tributo novo, não ocorrendo também a majoração, mas a simples definição do momento da incidência.


Ao processo veio a manifestação da Advocacia-Geral da União em idêntico sentido às informações do Chefe do Poder Executivo. O parecer do então Procurador-Geral da República, Dr. Geraldo Brindeiro, é pela constitucionalidade da medida provisória.

A certidão de julgamento de folhas 287 e 288 revela a rejeição, pela relatora, da preliminar de ilegitimidade e acolhida parcial do pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade da expressão “ou coligada” duplamente contida na cabeça do artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001, e o voto do ministro Nelson Jobim, julgando “improcedente para dar interpretação conforme a Constituição”, ao que tudo indica, havendo ocorrido o equívoco ao grafar-se improcedente, em vez de procedente e, no tocante à preliminar, legitimidade, ao invés de ilegitimidade.

Estabelecidas as balizas deste processo, rememorandoas ante a passagem do tempo, passo ao voto propriamente dito. Da disciplina da matéria mediante medida provisória. O sistema constitucional revela atuações precípuas dos Poderes, incumbindo, de regra, ao Poder Legislativo, normatizar; ao Executivo, executar as leis e, ao Judiciário, definir, mediante julgamento, o alcance do arcabouço normativo, fixando, nos processos subjetivos, a regra jurídica incidente, em face do conflito de interesses. A mesclagem das atividades consubstancia sempre exceção e apenas surge legítima quando harmônica com a Constituição Federal.

O Poder Executivo tem a iniciativa de leis complementares e ordinárias, sendo que, em alguns casos, há a exclusividade – artigo 61, § 1º, da Carta. O Presidente da República pode solicitar urgência para apreciação de projetos da própria iniciativa e, não se manifestando a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, cada qual sucessivamente, em até quarenta e cinco dias, ficam sobrestadas todas as demais deliberações legislativas da respectiva Casa, com exceção das que têm um prazo constitucional determinado, até que se ultime a votação – artigo 64, § 1º e § 2º, da Constituição Federal.

Acresce que o trato de matérias por meio de medida provisória surge no campo precário e efêmero. Presente a circunstância de a normatividade visar, acima de tudo, à segurança jurídica, essa via ganha contornos de excepcionalidade ímpar, não devendo ser acionada senão em situação a exigir, pela relevância e repercussão, urgência de tratamento. A não ser assim, é admitir-se que o Presidente da República pode substituir-se ao Congresso, atuando como se legislador fosse. Está-se diante de quadro a levar à conclusão sobre o desrespeito ao texto do artigo 62 da Constituição Federal, quer considerado o fator cronológico, quer o tema de fundo propriamente dito que, a todos os títulos, requer definição cabal advinda do Poder Legislativo.

Sob o aspecto cronológico, perceba-se que a problemática do imposto de renda encontrava-se, em 2001, devidamente disciplinada. Os contribuintes – no caso, as pessoas jurídicas – atuavam a partir da legislação de regência já sedimentada. Não obstante, a partir de óptica singular – para dizer o mínimo – emprestada ao artigo 43 do Código Tributário Nacional, na redação decorrente da Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, em julho do citado ano, quando havia ainda seis meses para o encaminhamento e aprovação de projeto objetivando a eficácia da nova disciplina no exercício subseqüente, lançou-se mão da medida provisória para dispor-se como se dispôs, desatendendo-se ao artigo 62 da Carta da República e alterando-se substancialmente a matéria relativa ao imposto de renda quanto a coligadas e controladoras de empresas no exterior, criando-se quadro de incerteza. É de registrar que, por isso ou por aquilo, alfim, por opção político-legislativa, passados quatro anos da edição da medida provisória, até hoje não ocorreu o crivo que lhe é peculiar, o pronunciamento das duas Casas do Congresso Nacional, emprestando-se ao artigo 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, alcance invulgar, alcance totalmente desprovido de razoabilidade, no que o citado artigo assim preceitua:

Art. 2º As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.

Assim, a medida provisória em questão é contrária à Constituição Federal, ante:

a) a ausência de relevância maior da matéria nela versada;

b) a falta do concurso do requisito “urgência” no trato do tema em tal via;

c) a circunstância de, em questão de alcance maior a repercutir na vida econômico-financeira de pessoas jurídicas, passados mais de quatro anos da edição da medida, não se contar, até aqui, com o crivo do Congresso Nacional, presente o fato de o artigo 2º da Emenda Constitucional nº 32/2001 longe haver ficado de colar às medidas provisórias pendentes de apreciação, em setembro de 2001, a indeterminação de prazo de validade, ao sabor de conveniências de toda a ordem. Surge a incongruência. Com a Emenda Constitucional nº 32/2001, substituiu-se a previsão de que a apreciação da medida ocorreria dentro de 30 dias, verificando-se a perda de eficácia, se não convertida em lei dentro desse prazo – parágrafo único do artigo 62 da Carta Federal -, por disciplina reveladora da citada conversão em 60 dias, prazo prorrogável uma única vez, sendo que, não apreciada em 45 dias, fica submetida ao regime de urgência, sobrestando-se, até que se ultime a votação, todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tramitando – § 3º e § 6º do mesmo artigo 62. Logo, descabe o empréstimo da indeterminação de prazo de vigência àquelas medidas então pendentes de exame quando da nova disciplina, cujo escopo maior foi, sem dúvida, acabar com a indefinida pendência de medidas, observando-se a própria natureza que é revelada pelo adjetivo “provisório”. Há de se convir não coabitarem o mesmo teto a provisoriedade da medida e a projeção no tempo – de mais de quatro anos -, sem considerar-se o envolvimento do tema que, a todos os títulos, reclama segurança jurídica.


Do imposto de renda e da contribuição sobre o lucro líquido. Nunca é demasia lembrar que a Constituição Federal contém regência inafastável quanto à tipicidade desses tributos. Sob o ângulo da contribuição, o artigo 195, inciso I, alínea “c”, remete ao lucro, ou seja, ao resultado da pessoa jurídica, dadas as receitas e as despesas do período. Sob o prisma formal, surge a necessidade, assim, de se considerar o resultado do próprio balanço, o resultado positivo, em termos de lucro do que verificado no período de apuração. No tocante ao imposto, é da maior importância a própria nomenclatura que o reveste – imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza -, pressupondo haja a integração de riqueza, na forma de renda e de proventos de qualquer natureza, ao patrimônio do contribuinte. Por isso mesmo, o Código Tributário Nacional, a legislação, nas diversas gradações, a doutrina e a jurisprudência consagraram, para dizer-se da incidência do citado imposto, a disponibilidade econômica ou jurídica. O fenômeno há de estar presente não só em vista da renda em si, no que inconfundível com o patrimônio, como também da pessoa individualizada do contribuinte. Descabe a sinonímia, descabe a despersonalização, confundindo-se pessoas jurídicas individualizadas, porque devidamente, sob os ângulos formal e material, constituídas.

Não bastasse a tipicidade do tributo, decorrente da Carta da República, a circunstância de se tratar de imposto sobre a renda, o legislador complementar foi pedagógico, simplesmente pedagógico, ao prever que a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Carta Federal, pelas Constituições dos Estados ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias – artigo 110 do Código Tributário Nacional. O preceito alcança o ato extravagante que é o da edição de medida provisória. Descabe o embaralhamento de institutos, expressões e vocábulos, como se cada qual não tivesse o sentido próprio indispensável a caminhar-se com segurança jurídica.

A empresa possuidora de personalidade jurídica não se confunde com outra, pouco importando se tenha a coligação ou o controle, espécies societárias que não levam à simbiose a ponto de, em promiscuidade ímpar, confundir as personalidades no que são próprias. São individualmente levadas em conta, quer sob o aspecto da responsabilidade fiscal, da responsabilidade junto a outras pessoas jurídicas e a pessoas naturais, quer sob o prisma dos direitos e deveres em geral. A despersonalização pressupõe caso concreto de extravagância, quanto aos vícios de consentimento, considerada a ordem jurídica, não podendo vir a ser placitada de maneira genérica, linear, invertendo-se valores, para este ou aquele fim, por mais querido ou nobre que o seja, considerada a presunção, simples presunção, de evasão ou sonegação cuja revelação deve ser real. A disponibilidade, tão comum ao conceito de renda, tem sentido vernacular e técnico todo próprio. O fato gerador do imposto sobre a renda, sob pena de não se poder assentar esta última, é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica, fenômeno sempre concreto e que não pode, à mercê de ficção jurídica extravagante, insuplantável, ser deturpada, a ponto de se dizer que, onde não há disponibilidade econômica ou jurídica, entenda-se já acontecido o fenômeno, como ocorre enquanto o lucro da coligada ou controlada existente no exterior continua, consoante a legislação de regência, no estrangeiro, no próprio patrimônio da empresa que o apurou, não sendo, consideradas as diversas modalidades admitidas em Direito, transferido à empresa situada no Brasil, que, por isso mesmo, não tem como integrar qualquer aporte, em termos de renda, ao respectivo balanço. A introdução, no artigo 43 do Código Tributário Nacional, do § 2º não se fez com o alcance normativo que serviu de base à fértil mas viciada inspiração do Executivo, no que editada a medida provisória, como se nele estivesse contida delegação ao legislador ordinário incomum, de adentrar o campo da ficção jurídica e criar, desprezada a natureza das coisas, novo fato gerador como se fosse legislador complementar. Eis o teor do § 2º:

§ 2º Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará a sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo. Em primeiro lugar, há de se interpretar a lei à luz do texto constitucional e este é categórico na tipologia do tributo, ao revelá-lo sobre a renda. Em segundo lugar, o parágrafo, acessório vinculado ao principal e que, portanto, não tem vida própria, deve ser interpretado a partir da cabeça do artigo e, no caso, tem-se a vinculação do que nele previsto à regra consoante a qual o fato gerador do imposto sobre a renda é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica, acontecimento – nele, parágrafo, repetido em bom vernáculo – que não se verifica enquanto o lucro da coligada e da controlada permanece no estrangeiro, sob a regência da lei que lhe é pertinente, sob a discrição da própria sociedade, da própria pessoa jurídica no qual gerado. O § 2º do artigo 43 do Código Tributário Nacional, interpretado de modo teleológico, sistemático e hierarquizado, versa sobre condições e momento da disponibilidade, presente, sem sombra de dúvidas, a ocorrência desta última. Tanto é assim que o início do preceito contém a referência a receita ou rendimento oriundos do exterior, o que, considerada a origem, direciona ao ingresso no território nacional. Não é dado conferir ao parágrafo o sentido de transmudar, de descaracterizar, à luz dos parâmetros da Constituição Federal, o próprio tributo, como também o de estender ao conceito de disponibilidade significado antônimo ao que ele possui, como se disponibilidade e indisponibilidade fossem palavras sinônimas. A não se entender assim, ter-se-á o surgimento da disciplina de um novo tributo, ou seja, do imposto sobre o patrimônio, potencializando-se a circunstância de a empresa na qual detida a participação haver logrado lucro, alterado com isso, é certo, mas ao sabor do mercado, o respectivo valor, o valor das ações. Enquanto inexistente o ingresso da participação da empresa brasileira no território nacional, enquanto não distribuídos os lucros pela empresa estrangeira com a qual se mantenha laços sob o ângulo da coligação ou do controle, não é dado cogitar do fato gerador do imposto sobre a renda, porque a renda é inexistente e porque não passou a disponibilidade, em si, sob tal ângulo e não do patrimônio, da empresa coligada ou controlada para a brasileira.


Tenha-se presente que inúmeras circunstâncias podem obstaculizar o acesso aos citados lucros. Tudo depende da legislação do país em que situada a empresa que haja apresentado lucro e também da deliberação da respectiva Assembléia. É possível ter-se, por exemplo, o óbice à distribuição do lucro levando em conta determinada situação jurídica, a necessidade legal de se reservar recursos indispensáveis a fazer frente a certo ônus. Plausível é ter-se deliberação da Assembléia no sentido de se reinvestir os lucros apurados, deixando-se de distribuí-los aos acionistas, sejam estes pessoas jurídicas ou pessoas naturais que, por isso mesmo, por não contarem com o aporte de renda, não estarão sujeitos, quer na origem, quer no país em que se encontrem, princípio da territorialidade, à incidência do imposto sobre a renda. A entenderse de forma diversa, não se estará, em si, caminhando para a taxação de lucros, mas para a bitributação, tendo em conta valores que permanecerão no estrangeiro, olvidando-se os inúmeros tratados formalizados pelo Brasil no sentido de evitar a sobreposição tributária fiscal, em homenagem ao citado princípio, ao princípio da territorialidade.

A medida provisória em comento restabelece sistema anterior e que foi mitigado pela própria Receita Federal mediante a instrução Normativa nº 38/96, tudo ocorrendo, à época, em respeito à Constituição Federal e ao Código Tributário Nacional. A Lei nº 9.249/95 versava a incidência do imposto sobre a renda na proporção da participação detida pela empresa brasileira no capital da empresa situada no exterior, independentemente da distribuição ou de qualquer outro mecanismo equivalente de ingresso de recursos no patrimônio da contribuinte. A óptica que prevaleceu foi única, ou seja, a impossibilidade de se confundir direito já formalizado e detido em patrimônio com a simples expectativa de direito, isso considerados os lucros, ou mesmo, com o aumento presumido, simples presunção ante as artimanhas do mercado, do patrimônio. A medida provisória, ao prever a incidência do tributo sobre a renda como se já ocorrida, pela simples apuração do lucro em balanço da coligada ou controlada, sem a disponibilização à controladora ou coligada brasileira, discrepa, a mais não poder, do figurino constitucional do imposto sobre a renda, do artigo 43 do Código Tributário Nacional, conferida interpretação conforme a Constituição, bem como do que até aqui foi proclamado, de forma clara, precisa e norteadora, pelo Supremo.

O tema, sob o ângulo da jurisprudência, não é novo. No julgamento do Recurso Extraordinário nº 117.887-6/SP, relator ministro Carlos Velloso, a Corte, sem discrepância de votos, teve presente a natureza, em si, do imposto sobre a renda, consignando a ementa do acórdão, publicada no Diário da Justiça de 23 de abril de 1993:

[…]

I. – Rendas e proventos de qualquer natureza: o conceito implica reconhecer a existência de receita, lucro, proveito, ganho, acréscimo patrimonial que ocorrem mediante o ingresso ou o auferimento de algo, a título oneroso. C.F., 1946, art. 15, IV; CF/67, art. 22, IV; EC

1/69, art. 21, IV. CTN, art. 43.

II. – Inconstitucionalidade do art. 38 da Lei 4.506/64, que institui adicional de 7% de imposto de renda sobre lucros distribuidos.

III. – R.E. conhecido e provido.

Voltou o Tribunal a decidir quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 172.058-1/SC. Com a discrepância de um único voto, do ministro Ilmar Galvão, veio o extraordinário a ser conhecido, declarando-se a inconstitucionalidade do artigo 35 da Lei nº 7.713/88, ocorrendo, no mérito, o provimento parcial. Eis a ementa do acórdão, de minha lavra, publicada no Diário da Justiça de 13 de outubro de 1995:

[…]

TRIBUTO – RELAÇÃO JURÍDICA ESTADO/CONTRIBUINTE – PEDRA DE TOQUE. No embate diário Estado/contribuinte, a Carta Política da República exsurge com insuplantável valia, no que, em prol do segundo, impõe parâmetros a serem respeitados pelo primeiro. Dentre as garantias constitucionais explícitas, e a constatação não exclui o reconhecimento de outras decorrentes do próprio sistema adotado, exsurge a de que somente a lei complementar cabe “a definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes” – alínea “a” do inciso III do artigo 146 do Diploma Maior de 1988.

IMPOSTO DE RENDA – RETENÇÃO NA FONTE – SÓCIO COTISTA. A norma insculpida no artigo 35 da Lei nº 7.713/88 mostra-se harmônica com a Constituição Federal quando o contrato social prevê a disponibilidade econômica ou jurídica imediata, pelos sócios, do lucro líquido apurado, na data do encerramento do período-base. Nesse caso, o citado artigo exsurge como explicitação do fato gerador estabelecido no artigo 43 do Código Tributário Nacional, não cabendo dizer da disciplina, de tal elemento do tributo, via legislação ordinária. Interpretação da norma conforme o Texto Maior.


IMPOSTO DE RENDA – RETENÇÃO NA FONTE – ACIONISTA. O artigo 35 da Lei nº 7.713/88 é inconstitucional, ao revelar como fato gerador do imposto de renda na modalidade “desconto na fonte”, relativamente aos acionistas, a simples apuração, pela sociedade e na data do encerramento do período-base, do lucro líquido, já que o fenômeno não implica qualquer das espécies de disponibilidade versadas no artigo 43 do Código Tributário Nacional, isto diante da Lei nº 6.404/76.

IMPOSTO DE RENDA – RETENÇÃO NA FONTE – TITULAR DE EMPRESA INDIVIDUAL. O artigo 35 da Lei nº 7.713/88 encerra explicitação do fato gerador, alusivo ao imposto de renda, fixado no artigo 43 do Código Tributário Nacional, mostrando-se harmônico, no particular, com a Constituição Federal. Apurado o lucro líquido da empresa, a destinação fica ao sabor de manifestação de vontade única, ou seja, do titular, fato a demonstrar a disponibilidade jurídica. Situação fática a conduzir à pertinência do princípio da despersonalização.

[…]

Colhe-se desse precedente que a Corte assentou, de forma bem clara, a necessidade, para ter-se o fato gerador do imposto de renda, de se contar com a disponibilidade econômica ou jurídica. Enfrentou questão em que a lei, declarada inconstitucional, previra, como fato gerador, quanto aos acionistas, a simples existência de balanço, da pessoa jurídica, revelando a existência de lucro a ser ainda objeto de deliberação, considerado o repasse aos sócios. O tema decidido guarda correlação com o versado na medida provisória atacada mediante esta ação direta de inconstitucionalidade. A única diferença é que não se cogitou, no precedente, de situação jurídica em que se teria empresa sediada no exterior. Entrementes, esse aspecto apenas reforça a conclusão sobre a inconstitucionalidade da medida provisória, ante os tratados subscritos pelo Brasil e que afastam a bitributação e requerem a disponibilidade, com o ingresso da renda no território brasileiro, para, então, já aqui vir a incidir o imposto. No julgamento, o ministro Francisco Rezek teve a oportunidade de extremar a situação alusiva à sociedade por cotas de responsabilidade limitada e à firma individual, ao consignar:

O que estamos a dizer, na interpretação conforme da norma, a propósito da sociedade por cotas, revela de modo unívoco nosso pensamento sobre a sociedade anônima num extremo e a firma individual noutro.

[…]

Concluiu Sua Excelência conhecendo do extraordinário e lhe dando provimento.

O ministro Carlos Velloso ressaltou que:

A disponibilidade econômica significa a obtenção de renda, significa ingresso real no patrimônio da pessoa, de moeda ou seu equivalente, ou a possibilidade de a pessoa dispor da renda. Já a disponibilidade jurídica significa ou traduz a possibilidade, tendo em vista disposições jurídicas ou contratuais, de o sujeito dispor de uma renda posta a sua disposição.

Então, referiu-se a Modesto Carvalhosa, citado por Henry Tilbery, segundo o qual ter-se-ia “a outorga efetiva de direitos creditícios que representam acréscimo patrimonial”.Transcreveu lição de Gilberto de Ulhôa Canto em “Aquisição de Disponibilidade ou Acréscimo Patrimonial no Imposto de Renda”, a saber:

A disponibilidade jurídica, de acordo com o dispositivo citado, ocorre desde o momento em que o benefício, pessoa física, estiver em condições de exigir o pagamento, por exemplo, quando for-lhe creditado por pessoa jurídica. Entendemos, porém, que deve haver um crédito identificado a favor do benefício: a inclusão da despesa aproximada ou estimada dentro de uma “provisão”, coletivamente com outros itens, ainda não coloca a receita à disposição do eventual beneficiário.

Assentou que isso quer dizer que:

(…) a renda deverá estar à disposição da pessoa (a pessoa adquiriu o direito à renda), certo que “a aquisição deve assumir” a forma de faculdade de adquirir disponibilidade econômica, mediante a simples tomada de iniciativa ou a prática de atos que estejam no âmbito do arbítrio do interessado, a qualquer momento; em outras palavras, a disponibilidade jurídica não ocorre apenas com o aperfeiçoamento do direito à percepção do rendimento, sendo, mais do que isso, configurada somente quando o seu recebimento em moeda ou quasi-moeda dependa somente do contribuinte.

Em passo seguinte, afirmou que, “na sociedade anônima, a distribuição de lucros, segundo as leis comerciais, é dependente principalmente da manifestação da assembléia”. Concluiu que surge inconstitucional lei a prever a disponibilidade sem a deliberação da assembléia e, com isso, a criar fato gerador.

Do mesmo modo votou o ministro Octavio Gallotti, ressaltando que a disponibilidade, em se tratando de lucro de sociedade anônima, depende de deliberação da assembléia, da direção maior da própria sociedade.


No mesmo sentido votou o ministro Sydney Sanches, aduzindo que:

[…]

Quanto ao acionista, parece-me, também, que, pela natureza jurídica e pelo tratamento legal da sociedade anônima, a distribuição dos dividendos depende sempre de deliberação da Assembléia, que pode ocorrer, ou não, inclusive após o encerramento do período-base. Então, só depois dessa deliberação é que se há um direito, há um crédito líquido do acionista, sujeito à exação.

[…]

O ministro Moreira Alves reportou-se, talvez mesmo diante da clareza dos textos normativos, do entendimento sinalizado pela maioria, aos debates verificados.

O ministro Sepúlveda Pertence fez ver:

[…]

Pareceu-me, de fato, que com relação à sociedade por ações, sem indagar das potencialidades de elisão geradas, não há como fugir à evidência de que o regime normal das sociedades anônimas é o da destinação dos lucros, conforme deliberação majoritária da Assembléia Geral, órgão da sociedade anônima, sem exigência de acordo unânime dos acionistas. O que há, na sociedade anônima, para conter as possibilidades de fuga ao tributo é a tributação, como lucro da sociedade anônima, da parte dos resultados do exercício aplicadas em reservas facultativas.

[…]

Deixou bem claro Sua Excelência que a não-distribuição do lucro faz com que se afaste a possibilidade de aqueles que potencialmente seriam destinatários desse lucro, expectativa de direito, virem a sofrer a tributação, tendo em vista a inexistência de aporte em termos de renda. O precedente é por demais claro e preciso, no que sinaliza o rumo que deve tomar este julgamento, sob pena de grassar, sob o ângulo constitucional, a insegurança jurídica. Nele tive oportunidade de ressaltar que:

[…]

Os lucros apurados em balanço de pessoa jurídica integram o patrimônio desta e não dos sócios, já que estes, considerados isoladamente, deles não dispõem, quer sob o ângulo econômico, quer, até mesmo, sob o jurídico.

[…]

No caso, a medida provisória, emprestada interpretação conforme a Carta da República ao artigo 43, § 2º, do Código Tributário Nacional, acabou por criar um novo fato gerador discrepando do figurino constitucional, ganhando a disciplina contornos estranhos ao imposto sobre a renda, ou seja, a circunstância de o balanço de empresa sediada no exterior apresentar lucro, cumprindo à coligada ou controladora localizada no Brasil satisfazer, de imediato e sem a distribuição, o tributo. Sob esse ângulo, a medida provisória contrasta com a regra do artigo 146 da Constituição Federal, a exigir, no tocante à definição de fato gerador, e ela veio a criá-lo com originariedade invulgar, a disciplina mediante lei complementar.

Sim, a pretexto de fixar as condições e o momento em que verificada a disponibilidade – e este é o núcleo da questão, considerado o conceito de renda -, acabou-se por ir muito adiante, desprezando-a por completo, tornando-a letra morta. Simplesmente, na medida provisória, em penada única, afastou-se do cenário premissa básica inerente ao próprio tributo. Certamente, se versada a disciplina mediante projeto de lei às Casas do Legislativo, presumindo-se o que normalmente ocorre e não o excepcional, viriam a glosá-la, o que também ocorreria, em relação à norma em comento, caso não verificado, passados quatro longos anos, o ato omissivo contumaz – hoje ainda estão pendentes, desde 2001, 53 medidas provisórias, e não há sinalização do abandono de tal estado de coisas.

Ainda que se pudesse desprezar a óptica ora externada e que tem como a embasá-la a Constituição Federal e o precedente desta Corte, nota-se, mais, que o parágrafo único do artigo 74 da mencionada medida provisória implicou total desprezo ao princípio da anterioridade, ao dispor:

Os lucros apurados por controlada ou coligada no exterior até 31 de dezembro de 2001 serão considerados disponibilizados em 31 de dezembro de 2002, salvo se ocorrido, antes desta data, qualquer das hipóteses de disponibilização previstas na legislação em vigor.

Partiu-se para o alargamento, a mais não poder, da ficção jurídica, imprimindo-lhe eficácia retroativa incompatível com o princípio constitucional da anterioridade. A medida provisória veio ao mundo jurídico, com o artigo 74 ora em análise, em julho de 2001, dispondo, de forma indeterminada, sobre a observância da cabeça do artigo 74, considerados lucros apurados por empresas sediadas no estrangeiro, coligadas ou controladas por brasileiras até 31 de dezembro de 2001, fixando campo de aplicação retroativa de maneira indeterminada e praticamente sem limite. Pouco importa que se tenha apontado data para os lucros serem tidos por disponibilizados, ou seja, 31 de dezembro de 2002, ano seguinte ao da edição da medida provisória. O que cumpre ter presente é que foram apanhados, para a incidência da norma, lucros relativos a exercícios anteriores, adentrando-se, por via oblíqua, o campo da criação de fato gerador ou, sem exagero, de verdadeiro tributo de modo retroativo, incompatível com a ordem jurídica, que é a simples apresentação de lucro, em qualquer exercício passado, pela empresa estrangeira.


Não é demasia escancarar aspectos envolvidos na espécie, considerados os interesses nacionais. Que estímulo é esse a investimentos no exterior, à busca de divisas? Tem-se, sim, inoportuna, descabida e inconstitucional voracidade fiscal, na contramão do almejado crescimento das empresas brasileiras, da necessária, porque salutar, projeção do Brasil no cenário internacional. A imposição tributária em análise, além de fugir ao figurino próprio, é um contra-senso, nada tendo de razoável.

Esta ação, o pedido veiculado, longe está de visar à redução da hoje insuperável carga tributária, mas ao afastamento de distorção a colocar em xeque o próprio sistema do imposto de renda, isolando as empresas, forçando-as a recuo considerada a presença indireta no exterior, inibindo-as na atuação sempre bem-vinda no plano internacional.

Hoje o Brasil está no 65º lugar no ranking da competitividade internacional. Se a empresa é obrigada a recolher o tributo sem o aporte da renda em seu balanço, sem a disponibilidade, certamente terá de tirar o numerário respectivo de algum lugar, perdendo, ante a existência de ônus sem contrapartida, mais e mais, a competitividade. E ainda se fala em pacto federativo visando à tão esperada reforma tributária. Para tanto, desnecessário é ir ao fundo do poço. A visão que desaguou na medida provisória, na instituição de novo tributo ou fato gerador via tal instrumento, quando o normal seria a lei complementar, na distorção vernacular do que se entende como disponibilidade econômica ou jurídica de renda, alcançando como tal o antônimo, a indisponibilidade, em contrariedade ao arcabouço normativo próprio – artigos 146, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, 43 e 110 do Código Tributário Nacional -, mostrou-se de miopia cegante, apenando não os sonegadores, no que sempre encontram meio de driblar o burocrático fisco, mas empresas sérias que buscam projetar, com inegáveis riscos e sacrifícios, além das fronteiras nacionais, o nome do Brasil, tornando-o merecedor da consideração e respeito internacionais. Sim, editem-se normas que punam o ato de sonegação e alcancem aqueles que, à mercê de práticas merecedoras de excomunhão maior, traem os interesses pátrios. O que não cabe é o trato de situações díspares da mesma forma, a dosagem cavalar, a apanhar as empresas em geral, os contribuintes que, sob o ângulo da forma e da realidade, da concretude, da transparência, já cumprem os deveres fiscais.

Descabida e inconstitucional é a obrigação do pagamento de imposto sem a disponibilidade, sob qualquer das espécies, da renda, porque ainda não repassada, via deliberação do órgão próprio da coligada ou controlada à empresa irmã situada no Brasil, ainda não interiorizada no território nacional, ainda não deslocada do patrimônio da empresa situada no exterior para a coligada ou controladora aqui residente.

Versou-se algo de repercussão maior – recolhimento de imposto – via instrumental precário e efêmero, fazendo-o na contramão do crescimento nacional, das empresas brasileiras, da necessária e salutar projeção do Brasil no cenário internacional. Repita-se: valores hão de ser sopesados e se sobrepõe o decorrente da preservação do próprio sistema, não se apenando quem forma na base da pirâmide dos contribuintes. Sonegadores existem e continuarão a existir e, certamente, conta-se com outros meios para apanhá-los. O simples elo porventura existente, quer sob o ângulo da coligação – leia-se interesse participativo simples –, quer do controle acionário – interesse participativo qualificado -, não é suficiente a fulminar-se algo que é da própria essência do tributo, a exigência constitucional e legal – Código Tributário Nacional – de se contar com disponibilidade, como se a escrituração no balanço da empresa estrangeira pudesse ser tomada de forma ímpar, como se automaticamente obrigasse, sem a saída de numerário na origem e entrada na empresa brasileira, sem o efetivo acesso à renda, o pagamento do tributo. A mão única é incompatível com o que está estabelecido e isso decorre, até mesmo, da ordem natural das coisas, cuja força, a força da natureza, é inafastável – obrigatoriedade de recolher o imposto sem o aporte da renda, desembolso não precedido da vantagem que lhe é ínsita, logrando o Estado receita que, em última análise, será fruto, se tanto, de acréscimo patrimonial inconfundível com comezinhas noções de renda.

Ante o quadro, empresto ao artigo 43, § 2º, do Código Tributário Nacional interpretação conforme a Constituição, ou seja, excluindo alcance que resulte no desprezo da disponibilidade econômica ou jurídica da renda.

Quanto ao artigo 74 da Medida Provisória nº 2.158-35, em face das razões expostas, concluo pela inconstitucionalidade, o que implica dizer que a regência da matéria nele tratada – fato gerador do imposto de renda – continuará decorrendo da legislação então apanhada pela citada medida. É como voto no caso.

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