Livre mercado

Entrevista: José Del Chiaro, ex-secretário de Direito Econômico

Autores

24 de setembro de 2006, 7h00

José Del Chiaro - por SpaccaSpacca" data-GUID="jose_del_chiaro.jpeg">A legislação que regulamenta o sistema de defesa da concorrência no país nasceu como muitas outras leis: no calor do momento e com objetivo distorcido. Aborrecido com o aumento dos preços dos medicamentos, o então presidente Itamar Franco achou que a lei antitruste seria um instrumento de controle de preços. Não passou por sua cabeça que ao garantir uma concorrência saudável a lei iria propiciar também o alinhamento natural dos preços.

Hoje, o governo sabe que seu papel é proteger o mercado e deixar que, por conseqüência, ele atinja o equilíbrio. Ao Estado cabe coibir práticas abusivas, e não interferir diretamente em preços, como ocorria nos tempos de inflação elevada. Quem conta a história é o ex-secretário de Direito Econômico José Del Chiaro Ferreira da Rosa, de 50 anos.

“O Brasil está mais maduro com relação ao direito da concorrência”, defende. Depois de deixar o cargo em 1990, Del Chiaro fundou o escritório Advocacia José Del Chiaro que, em 2005, foi eleito pela Global Competition Review um dos cem principais escritórios do mundo na área antitruste. Como advogado, esteve à frente de importantes processos de fusão e defesa da concorrência.

Em entrevista à Consultor Jurídico, o ex-secretário defendeu a necessidade de maior investimento na estrutura do Cade — Conselho Administrativo de Defesa Econômica. “Pela importância que o órgão ganhou, teria de ter melhor estrutura para combater os cartéis e o abuso de poder econômico com mais eficácia e celeridade”.

Para Del Chiaro, o dinheiro arrecadado com multas deveria ser revertido para o órgão, e não para o fundo de interesse difuso. “Isso cria dificuldades para o Cade fazer acordo que poderia encerrar um litígio. Como não é o destinatário final da multa, sua legitimidade para o acordo pode ser questionada.”

Leia a entrevista

ConJur — Qual é o papel do governo na defesa da concorrência?

José Del Chiaro — O governo é o órgão fiscalizador que tem de impedir o abuso de uma empresa no regular funcionamento do mercado. Para isso, pode reprovar determinada prática, impedir o fechamento de uma operação e aplicar multas por práticas abusivas.

ConJur — Essa interferência na economia era muito mais marcante na época da ditadura, não?

José Del Chiaro — O Brasil evoluiu muito. O regime militar queria controlar a sociedade toda, inclusive os preços dos produtos. Durante a ditadura, os empresários tinham de ver se o governo autorizava os preços das mercadorias que comercializavam. O Estado também dizia quais empresas deviam se fundir, obrigava um banco a comprar o outro. Em 1990, já sob a vigência da nova Constituição, o governo começou a implementar uma política para abrir o mercado, sem controle de preços, tentando já disseminar uma cultura antitruste. Em 1994, a preocupação era com o impacto que poderiam causar atos de concentração ou outros grandes negócios. Hoje, o foco é o combate a práticas nocivas, cartéis, exclusão do concorrente do mercado, enfim, a prática mais imediata. O Brasil está mais maduro com relação ao Direito da Concorrência. Temos muitos processos em curso e cooperação internacional.

ConJur — Como essa maturidade beneficia o empresário?

José Del Chiaro — O mercado brasileiro evoluiu com a abertura dos portos e, na mesma velocidade, a indústria se expandiu. O Brasil está ganhando dinâmica comercial e o empresariado brasileiro está aprendendo a ser global. O Direito Antitruste é, talvez, a ferramenta mais importante para que ele possa se defender dentro e fora do país de práticas que o impeçam de concorrer. O Direito Antitruste não protege apenas o consumidor, mas especialmente o empresário. Por isso, tem de ser usado como uma poderosa ferramenta de defesa do mercado. O combate do truste protege principalmente o mercado.

ConJur — Nesse combate, qual é o papel do Cade?

José Del Chiaro — O Cade é uma autarquia politicamente independente para cumprir a defesa do livre comércio. E o Cade tem lutado por essa independência. Vejo isenção nos julgamentos, feitos por pessoas técnicas que buscam decisões acertadas.

ConJur — O Cade ganhou mais autonomia, em 1994, quando foi transformado em autarquia pela Lei 8.884. Em que contexto surgiu essa lei?

José Del Chiaro — Surgiu durante o governo Itamar Franco. Ele estava aborrecido com o aumento dos preços dos medicamentos e queria encontrar um jeito de barrar isso. Por isso, acelerou a aprovação da lei antitruste, mas se equivocou sobre a sua finalidade. Para Itamar Franco, a legislação seria um instrumento de controle de preços. Naquela época, não havia o entendimento de que os preços seriam equilibrados pela livre concorrência e que isso seria um processo de longo prazo.

ConJur — Qual é a competência do Cade?

José Del Chiaro — O Cade julga todas as operações que possam prejudicar o mercado, como grandes atos de concentração. Os processos são levados a ele pela Secretaria de Direito Econômico [órgão do Ministério da Justiça], responsável por fazer a investigação administrativa. Durante o processo, nada impede que haja uma negociação entre a empresa e a SDE. A Secretaria pode encontrar uma operação que seja discriminada pelo Cade, como venda casada, e mandar a empresa parar com a prática, sem necessidade de punição.

ConJur — Existem critérios objetivos para saber quais concentrações devem ser analisadas?

José Del Chiaro — Em tese, existem. A empresa tem de ter um faturamento de, pelo menos, R$ 400 milhões. A Súmula 1 do Cade diz que tem de ser considerado apenas o faturamento dentro do território nacional. Com isso, a atuação do Cade ficou mais restrita. Mas, amanhã, com a mudança dos conselheiros a súmula pode ser revista, como acontece nos tribunais. Outro critério é quando a fusão concentra 20% do mercado relevante. Além desses critérios objetivos, o governo tem de ter sensibilidade para verificar se, mesmo que não tenha 20% de participação no mercado nem R$ 400 milhões de faturamento, a operação pode trazer algum dano para a concorrência.

ConJur — O poder de barganha do grande consumidor — o intermediário que venderá para o varejista — é levado em conta nas fusões?

José Del Chiaro —É sim. Mas os casos são sempre analisados individualmente. Não há receita geral porque não existem sequer duas operações semelhantes. O momento econômico, histórico e mundial de cada operação, por mais parecidas que sejam as empresas, já determina a diferença. O Cade olha a eficiência que vai gerar a operação e o seu impacto no mercado. A empresa precisa estar forte para poder concorrer no mercado externo. Isso também é levado em conta, desde que não prejudique o mercado interno.

ConJur — É a empresa a responsável por comunicar a operação de fusão ao Cade?

José Del Chiaro — Sim. E se não fizer isso, pode correr risco de a operação ser vista como prejudicial ao mercado. Se a empresa leva a questão antes para análise, fica sabendo se pode ou não fazer determinada operação e se previne de riscos.

ConJur — Quais são os riscos?

José Del Chiaro — A empresa pode fazer a operação e não comunicar. Mas, quando for comprar outra, por exemplo, tem de notificar a operação passada. Se for considerada abusiva, pode ser multada. Ainda não vi nenhuma empresa ser obrigada a desfazer nenhum negócio porque deixou de avisar o Cade, mas talvez porque não tenha acontecido algo tão grave ainda.

ConJur — Quando um cartel é detectado, a punição é só administrativa ou criminal também?

José Del Chiaro — É muito difícil ser só administrativa. Tem a possibilidade de leniência, mas isso é bastante questionável. Neste caso, o promotor público e a SDE fazem um acordo com o leniente para que ele possa fazer a denúncia. Com isso, em tese, ele tem a sua pena reduzida e até excluída. Mas não há jurisprudência que diz que a empresa leniente ou o empresário leniente estão liberados de ação civil de consumidores por causa dos prejuízos que a operação causou no mercado. Além disso, se o acordo foi feito pelo Ministério Público de um estado, nada impede que o promotor de outro estado também atingido peça a condenação. Não sei até que ponto a leniência é absoluta. Qualquer empresa que for condenada por cartel poderá responder judicialmente pelos danos que causou aos seus clientes, embora aqui no Brasil não tenha havido casos de consumidor processando empresa por cartel.

ConJur — Como o senhor avalia o trabalho do Cade na defesa da concorrência?

José Del Chiaro — É bom. Mas, pela importância que o órgão ganhou, teria de ter uma estrutura melhor para combater com mais eficácia e rapidez cartéis e abuso de poder. As verbas arrecadadas com multas, por exemplo, poderiam ficar para o órgão, e não serem revertidas para o fundo de interesse difuso. A destinação da multa a esse fundo causa confusão também no que diz respeito ao poder do Cade de discutir os valores em juízo, porque a legitimidade do Conselho para um eventual acordo pode ser questionada. A legislação deveria prever quem tem o poder de reduzir a multa: o Cade ou o fundo destinatário. E que o próprio Cade passasse a ser o destinatário do dinheiro para poder aplicá-lo em uma estrutura própria e criar uma carreira de funcionários concursados.

ConJur — Discute-se hoje o poder do Cade de aplicar correção monetária nas multas às empresas.

José Del Chiaro — A Procuradoria do Cade entende que pode cobrar correção monetária. Eu entendo que não, por dois motivos. O primeiro é porque não existe mora, afinal o tempo do processo não pode ser visto como mora. O segundo porque, depois que os tribunais derrubaram a aplicação da Selic, o Cade a substituiu por outro índice. No meu entendimento, o Cade não pode definir algo cuja competência é privativa do Congresso Nacional.

ConJur — Quais são os limites da investigação na esfera administrativa?

José Del Chiaro — Desde que com autorização judicial, pode ser feita até escuta telefônica e busca e apreensão de documentos.

ConJur — As provas obtidas no processo administrativo são consideradas pelo Judiciário?

José Del Chiaro — O procedimento administrativo e as provas colhidas só não são aceitos pelo Judiciário se for constatado abuso, ou seja, se o devido processo legal não foi respeitado. Nestes casos, existem dois riscos: ter de refazer tudo de novo (oitiva de testemunhas, apreensões, etc.) e de o crime prescrever.

ConJur — Quanto tempo demora para ter solução um processo no Cade?

José Del Chiaro — Três anos, no máximo. Já no Judiciário, não dá para prever.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!