Garantia sublime

Leia voto de Britto no julgamento do recurso de Eurico Miranda

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16 de setembro de 2006, 7h00

A tese do ministro Carlos Ayres Britto ainda não fez nenhum adepto no Tribunal Superior Eleitoral, mas levantou uma polêmica discussão sobre a candidatura de políticos que respondem a ações penais. Expressamente, não há nenhuma lei que proíba qualquer um que responda a processo de se candidatar. Impera o princípio da presunção de inocência: sem condenação transitada em julgado, todos são inocentes.

Na noite desta quinta-feira (15/9), o ministro Carlos Ayres Britto, ao se manifestar sobre a possibilidade ou não de candidatura do cartola Eurico Miranda — que responde a oito ações penais e uma ação por improbidade administrativa — tentou derrubar o entendimento dominante.

Os direitos políticos não são pessoais. Estão vinculados a preservação de valores, disse o ministro. Ou seja, não é um ou outro cidadão que tem o direito de se candidatar e de votar, mas a coletividade que tem o direito de ver preservada a democracia no país.

“O eleitor não exerce direito para primeiramente se beneficiar. Seu primeiro dever, no instante mesmo em que exerce o direito de votar, é para com a afirmação da soberania popular e a autenticidade do regime representativo”, ambos valores coletivos, explicou Britto.

O mesmo vale para o candidato. Concorrer às eleições não é um direito individual seu. Para o ministro, o político está autorizado a se candidatar apenas para representar a coletividade. Já que os direitos políticos estão vinculados a valores, e não a pessoas, não há como descartar a idoneidade moral daquele que pretende representar a população.

A Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar 64/90) exige que haja condenação transitada em julgado para que o cidadão perca seus direitos políticos. Mas, para o ministro Britto, a lei tem de ser observada dentro do contexto, e não isoladamente.

Para ele, a regra vale para o candidato que responde a um ou outro processo penal, e não para aquele que responde a oito, como Eurico Miranda. “Jamais pretendeu a Lei das Lei imunizar ou blindar candidatos sob contínua e numerosa persecutio criminis, como é o caso dos autos. Pois isto equivaleria a fazer do seu tão criterioso sistema de comandos um castelo de areia.”

O ministro ainda está sozinho na sua tese. Depois da discussão acalorada entre os ministros no Plenário do TSE, o julgamento do recurso de Eurico Miranda foi suspenso. César Asfor Rocha pediu vista do processo. Já votaram Marcelo Ribeiro (relator), Marco Aurélio e Cezar Peluso, todos favoráveis à candidatura de Miranda e todos defendendo o mesmo argumento: vale o que está na lei.

O ministro Marco Aurélio, presidente do TSE, chegou a dizer que o julgamento, provavelmente, não será entendido pela população, que objetiva “a punição daqueles que de alguma forma se mostrem, pelo menos no campo da presunção, como transgressores da ordem jurídica”. À população, então, resta fazer valer seu direito e dever de votar naquele que considera apto e idôneo, e deixar o candidato com folha corrida suja sem votos ou prestígio.

Veja a íntegra dos votos de Carlos Ayres Britto e do relator, ministro Marcelo Ribeiro

Carlos Ayres Britto

RECURSO ORDINÁRIO No 1.069 – RIO DE JANEIRO – RIO DE JANEIRO

Relator: Ministro CARLOS AYRES BRITTO

Recorrente: Eurico Ângelo de Oliveira Miranda

Advogado: Luis Paulo Ferreira dos Santos – OAB/RJ 84.996 e outro

VOTO-VISTA

Com o propósito de examinar com mais detença o objeto do presente recurso ordinário, pedi vista dos presentes autos. Vista que me foi concedida na sessão plenária de 5 de setembro do fluente ano e que me possibilitou elaborar o voto que ora submeto ao lúcido pensar dos meus dignos pares, precedido do breve relato que segue.

2. O eminente Ministro Marcelo Ribeiro, relator deste feito, assim desenhou o perfil do presente recurso:

“(…)

Senhor Presidente, tenho voto escrito, mas vou resumir, porque, na verdade, é um fundamento apenas, com uma derivação.

O fundamento do acórdão recorrido é no sentido de que o art. 14, § 9º da Constituição, seria auto-aplicável, e diz o seguinte: Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade, para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, a normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do abuso do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública.”

Além de haver súmula deste Tribunal assentando a não-autoaplicabilidade deste artigo, ele começa dizendo que lei complementar estabelecerá. E não tenho a menor dúvida de que um artigo que diz que a lei estabelecerá não é auto-aplicável, pois não é nos termos da lei que se faz uma ressalva, e a lei complementar, todos sabemos, é a Lei Complementar nº 64/90, que não consta desta lei dispositivo que permita se chegar à mesma conclusão que chegou o acórdão recorrido, que entende que a existência de ações penais incursas sem trânsito em julgado – e é tranqüilo que não há nenhum trânsito em julgado –, que seria o suficiente a afastar a idoneidade moral do candidato, considerada a sua vida pregressa. E sustenta essa tese com base na auto-aplicabilidade do art. 14, § 9º, da Constituição, que, evidentemente, não é auto-aplicável.


Fala-se muito em presunção de inocência, e penso que não é preciso nem se chegar a isso, porque teríamos de examinar se há ou não violação ao princípio da presunção de inocência se a lei dissesse que a mera existência de ação penal configura inelegibilidade. Parece que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de examinar isso pela ótica da Lei Complementar nº 5 e entendeu, naquela época, que não haveria inconstitucionalidade. Mas aqui a questão não se coloca, mas se colocaria se a lei previsse essa inelegibilidade pelo fato só da existência da ação penal; como não prevê, faço algumas considerações sobre isso, mas o fundamento básico é que o Tribunal decidiu, com base na fundamentação de que o art. seria auto-aplicável e não é.

Assim, com esses fundamentos, dou provimento.

(…)”.

3. Pois bem, depois desse tracejamento do quadro factual-jurídico em que se insere o presente recurso, o nobre relator concluiu pelo seu conhecimento e provimento. No mesmo sentido, o Ministro Marco Aurélio aduziu em seu voto que:

“(…)

Estamos a julgar no campo da inelegibilidade; estamos a julgar no campo de regras que consubstanciam a exceção, de regras que, portanto, somente podem ser interpretadas, de forma estrita, ao que nelas se contém.

O que nos vem da Constituição Federal? E aqui não cabe, como já ressaltado pelo relator, cogitar do princípio da não-culpabilidade. Não cabe porque o Supremo, ante a Lei Complementar nº 5/70, revogada pela Lei Complementar nº 64/90, enfrentando a inelegibilidade causada pela propositura da ação penal, oferta da denúncia pelo Ministério Público e recebimento dessa denúncia  o preceito exigia não apenas a propositura da ação penal, mas o recebimento dessa mesma propositura via acolhimento da denúncia  no julgamento do Recurso Extraordinário nº 86.297, reafirmando dois pronunciamentos anteriores, apontou que não cabe confundir  àquela época o princípio era implícito, não explícito como atualmente  o princípio da não-culpabilidade com inelegibilidade. Na dicção do Supremo Tribunal Federal  considerado esse último precedente, tenho-o em mãos, da lavra do Ministro Carlos Thompson Flores , o princípio da não-culpabilidade, ou o princípio mesmo da inocência, está ligado ao processo penal, mesmo assim se admitindo, no campo penal, certas iniciativas que mitigam esse princípio, como arresto de bens, como prisão preventiva e outras situações concretas.

Nesse precedente o Supremo teve a oportunidade de consignar o seguinte, fls. 614:

“Creio [e não foi refutado o voto do relator, primeiro voto que formou na maioria] ser pacífico que salvante as hipóteses que constam das várias alíneas do parágrafo único do art. 151 da Constituição, as quais passavam a viger desde logo tal como o existe na Constituição de 1988, os demais casos de inelegibilidade ficaram relegados à Lei Complementar”.

Isso está, a meu ver, escancarado na Carta de 1988. O § 9º do artigo 14, na versão primitiva, preceituava:

“Art. 14 (…)

(…)

§ 9º Lei Complementar [não qualquer lei] estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de [a lei complementar, o estabelecimento mediante lei complementar] proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a fluência do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo e emprego na administração direta ou indireta”.

Esse o texto primitivo da Carta de 1988 desprezando o que vinha da Carta de 67, considerada até mesmo a Emenda nº 1 de 1969, no que aludia o artigo 151, que a lei complementar estabelecerá os casos de inelegibilidade e os prazos dentro dos quais cessará esta  houve a repetição em 1988  visando a preservar a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, levada em consideração a vida pregressa do candidato.

Ressaltemos, mais uma vez, considerado o texto primitivo da Carta de 1988, abandonou-se o que eu veria até mesmo aqui, em termos de sinalização ao legislador complementar, como de contorno simplesmente pedagógico, já que se imagina que no tocante à inelegibilidade, à disposição sobre os casos que deságuam na inelegibilidade, o legislador considerar, evidentemente, a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato e levar em consideração a vida pregressa do candidato.

Veio a Emenda de Revisão nº 4 e inseriu, no § 9º do artigo 14, o que se continha no art. 151 da Carta dita decaída pelo Ministro Sepúlveda Pertence. E houve a inserção da cláusula, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato. E a normalidade  nesse caso repetiu-se o que já contido no § 9º, na versão primitiva , a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico, ou abuso do exercício de função, cargo, emprego na administração direta ou indireta.


Permita-me, Ministro Gerardo Grossi, ressaltar um aspecto consignado por Sua Excelência neste Colegiado: “Os partidos políticos são lenientes, não fazem a triagem devida quanto aos candidatos, quanto à aprovação de nomes em convenções”.

Sua Excelência consignou isso ao concluir pelo não-conhecimento da consulta formulada pelo Deputado Miro Teixeira. E o Congresso Nacional está a dever à sociedade brasileira uma Lei de Inelegibilidades, já considerando que a Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94 fez inserir sob o ângulo pedagógico no § 9º do artigo 14.

Indaga-se: <b>a quem está dirigida a referência contida hoje, reconheço, em bom vernáculo, no § 9º do artigo 14, ao objeto da previsão de casos de inelegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato? Ao Judiciário? Trata-se de uma carta em branco quanto a casos de inelegibilidade, para se ter como foi dito por um advogado militante nesta Corte, o implemento da ira cívica? A resposta para mim é desenganadamente negativa. Não somos nós legisladores, não nos podemos substituir ao Congresso Nacional no que ele, muito embora tendo havido a aprovação da Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94, em verdadeiro lembrete do que já estaria latente na previsão do § 9º, não veio a alterar a lei de 1990, já que a Emenda Constitucional de Revisão nº 4 é de 1994.

Qual o parâmetro de referência para o caso concreto? É o parâmetro revelado pela Lei Complementar nº 64/90. Se formos a essa lei, veremos no artigo 1º, inciso I, que a inelegibilidade, considerados os processos criminais, está jungida aos condenados criminalmente com sentença transitada em julgado.

Posso substituir, revogando mesmo – e seria uma derrogação – a alínea e? Posso concluir que onde está revelada a inelegibilidade em decorrência da existência de sentença transitada em julgado, leia-se processo em curso? A meu ver  a menos que caminhemos para o estabelecimento no âmbito do próprio Judiciário, em um campo tão restrito como é o campo da inelegibilidade, de situações concretas, ao sabor das circunstâncias reinantes, da quadra vivida no país, que reconheço, realmente é de purificação , enquanto o Direito for ciência, o meio justifica o fim, mas não o fim ao meio, e não temos como olvidar que no caso se exige bem mais para assentar-se a inelegibilidade do que o simples curso de processo.

O julgamento é importantíssimo e certamente não será, em termos de crivo do Tribunal Superior Eleitoral, entendido pela sociedade, que anseia pela correção de rumos objetivando a punição daqueles que de alguma forma se mostrem, pelo menos no campo da presunção, como transgressores da ordem jurídica.

Mas se abandonarmos parâmetros legais, o texto da Carta de 1988, tão pouco amada, se abandonarmos o que se contém na Lei de Inelegibilidades em vigor, para como que fazer surgir uma nova regência em termos jurisprudenciais, é retrocesso; não se coaduna com o Estado democrático de direito que se imagina viver nos dias atuais no Brasil.

Que sirva a decisão do Tribunal Regional Eleitoral até mesmo de advertência, de cobrança à União, como legisladora, às duas Casas do Congresso Nacional  Câmara dos Deputados e Senado da República , mas não há como chegar-se ao endosso, por maior que seja a vontade sob a visão leiga, do que decidido pela Corte Regional do Rio de Janeiro.

Repito sempre: paga-se um preço por se viver em uma democracia, em um Estado democrático de direito, e a meu ver, esse preço é módico, é um preço ao alcance, em termos de satisfação, de qualquer cidadão, qual seja, o respeito irrestrito às regras em vigor e ao nosso sistema, não de direito costumeiro, mas de direito posto e subordinante.

Reconhecendo, reafirmo, a valia  como disse fui mal compreendido por certo setor da imprensa, como se já estivesse adiantando o meu ponto de vista de endosso ao que decidido pela Corte do Rio de Janeiro  do pronunciamento em termos de advertência, em termos de escancaramento da fragilidade da legislação existente, acompanho o ministro Marcelo Ribeiro no sentido de prover o recurso interposto.

(…).”

4. É por aqui mesmo que encerro este breve apanhado do sucedido na assentada do dia 5 de setembro e passo ao voto que me cabe proferir, por dever de ofício.

VOTO

Feito o relatório, passo ao voto.

5. De saída, conheço do recurso, por entender presentes os pressupostos do seu cabimento. Assim como fez o douto relator do feito, ministro Marcelo Ribeiro, logo seguido pelo voto-vogal do ministro Marco Aurélio.

6. Quanto ao mérito, permito-me lembrar que ele bem cabe na seguinte pergunta: pode um Tribunal Regional Eleitoral negar registro de candidatura a cargo político-eletivo, sob o fundamento de estar o candidato a responder por um número tal de processos criminais que, de parelha com certos fatos públicos e notórios, caracteriza toda uma crônica de vida sinuosa, ao invés de retilínea? Todo um histórico de condutas profissionais, políticas e sociais de permanente submissão a questionamentos morais e jurídicos? Um modo pessoal de ser e de agir aferrado à sempre condenável idéia de que “os fins justificam os meios”?

7. Em diferentes palavras: a decisão ensejadora do presente recurso ordinário podia inferir  como efetivamente inferiu  que o grande número de ações criminais a que responde o recorrente faz parte de uma trajetória de vida que se marca por um deliberado dar às costas aos valores mais objetivamente prestigiados pelo Direito e pela população brasileira em geral? Um se manter notoriamente à distância do que a sociedade tem, objetivamente, por “bons costumes”? Tudo a compor um quadro existencial ou vida pregressa não-rimada com a responsabilidade, autenticidade e moralidade que a mais elementar razão exige para o exercício dos cargos de representação político-eletiva?

8. Se afirmativa a resposta, isso já não significaria que o Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro estaria a assentar hipótese de inelegibilidade nem prevista na Constituição nem na Lei Complementar nº 64/90? Ou, perguntando por outro viés: tal inferência não corresponderia a instituir condição de elegibilidade não-cogitada pelo dispositivo constitucional especificamente versante do tema, que é, precisamente, o §3º do art. 14? Nem pelo § 1° do art. 11 da Lei Federal nº 9.504/97, também cognominada de “lei das eleições”?

9. Bem, tais perquirições acerca de condições de elegibilidade e fatores de inelegibilidade estão a desafiar, penso, um ancoradouro normativo a que somente se pode chegar pela via do método de interpretação que toma o conhecido nome de “sistemático”. Método “sistemático” ou “contextual”, cuja função eidética é procurar o sentido peninsular da norma jurídica; isto é, o significado desse ou daquele texto normativo, não enquanto ilha, porém enquanto península ou parte que se atrela ao corpo de dispositivos do diploma em que ele, texto normativo, se ache engastado. Equivale a dizer: por esse método de compreensão das figuras de Direito o que importa para o intérprete é ler nas linhas e entrelinhas, não só desse ou daquele dispositivo em particular, como também de toda a lei ou de todo o código de que faça parte o dispositivo interpretado. Logo, o que verdadeiramente importa é fazer uma interpretação casada do texto-alvo ou do dispositivo-objeto, e não apenas uma exegese solteira.

10. Mais que isso, o método sistemático de interpretação jurídica é o que possibilita detectar sub-sistemas no interior de um dado sistema normativo. Sub-conjuntos, então, nos quadrantes de um único ou um só conjunto-continente de normas. Como entendo ser o caso dos presentes autos, versantes, basicamente, dos mencionados temas das “condições de elegibilidade” e das “hipóteses de inelegibilidade” político-eletiva.

11. Explico. Os temas da elegibilidade e da inelegibilidade, agitados nos autos deste recurso ordinário, são o próprio conteúdo semântico de dispositivos constitucionais que se enfeixam no capítulo que outro nome não podia ter senão “Dos Direitos Políticos” (capítulo V do título de nº II). Direitos Políticos traduzidos, basicamente, nos atos de participação em processo de eleição geral dos candidatos a cargo de representação política. Ora titularizados pela figura do eleitor, ora pelo candidato mesmo. E que, pela sua extrema relevância, são direitos subjetivos que fazem parte do rol dos “Direitos e Garantias Fundamentais” (título II da Constituição).

12. Está-se a lidar, portanto, com uma categoria de direitos subjetivos que se integram na lista dos direitos e garantias fundamentais. Porém  ressalve-se , gozando de perfil normativo próprio. Regime jurídico inconfundível com a silhueta normativa dos outros direitos e garantias também rotulados como fundamentais, de que servem de amostra os direitos individuais e coletivos e os direitos sociais. O que já antecipa que o particularizado regime jurídico de cada bloco ou categoria de direitos e garantias fundamentais obedece a uma lógica diferenciada. Tem a sua peculiarizada ontologia e razão de ser.

13. Com efeito, os direitos e garantias fundamentais se alinham em blocos ou subconjuntos diversificados pela clara razão de que eles não mantêm vínculo funcional imediato com os mesmos princípios constitucionais estruturantes. É como dizer: trata-se de direitos e garantias que, operacionalmente, se vinculam mais a uns proto-princípios constitucionais do que a outros. Mais que isso, cada bloco desses direitos e garantias fundamentais tem a sua própria história de vida ou o seu inconfundível perfil político-filosófico. Um perfil político-filosófico, atente-se, que é a própria justificativa do vínculo funcional mais direto com determinados princípios constitucionais do que com outros.

14. Nessa vertente de idéias, veja-se que o segmento dos “direitos e deveres individuais e coletivos” (capítulo I do título II da Constituição Federal) está centralmente direcionado para a concretização do princípio fundamental da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º). A reverenciar por modo exponencial, então, o indivíduo e seus particularizados grupamentos. A proteger mais enfaticamente os bens de “personalidade individual” e de “personalidade corporativa”, em frontal oponibilidade à pessoa jurídica do Estado. Tudo de acordo com o modelo político-liberal de estruturação do Poder Público e da sociedade civil, definitivo legado do iluminismo enciclopedista que desembocou na Revolução Francesa de 1789.

15 Já o subsistema dos direitos sociais (arts. 6º e 7º da Magno Texto), volta-se ele para a centrada concretização do princípio fundamental que atende pelo nome de “valores sociais do trabalho” (inciso IV do art. 1º da CF). Especialmente o trabalho que se passa no âmago das chamadas relações de emprego, na pré-compreensão de que os proprietários tão-só de sua mão-de-obra carecem bem mais de tutela jurídica do que os proprietários de terra, capital, equipamentos, tecnologia, patentes e marcas empresariais. Pré-compreensão, essa, que corresponde ao perene legado das doutrinas que pugnavam, desde os ano 40 do século XIX aos anos 30 do século XX, por um Estado Social de Direito. Estado também designado por “Estado do Bem-estar Social”, “Estado-providência” ou “Wellfare State”.

16. E o bloco dos direitos políticos? Bem, esse é o que se define por um vínculo funcional mais próximo desses dois geminados proto-princípios constitucionais: o princípio da soberania popular e o princípio da democracia representativa ou indireta (inciso I do art. 1º, combinadamente com o parágrafo único do art. 1º e o “caput” do art. 14, todos da Constituição de 1988). Dois geminados princípios que também deitam suas raízes no Estado liberal, porém com esta marcante diferença: não são as pessoas que se servem imediatamente deles, princípios da soberania popular e da democracia representativa, mas eles é que são imediatamente servidos pelas pessoas. Quero dizer: os titulares dos direitos políticos não exercem tais direitos para favorecer imediatamente a si mesmos, diferentemente, pois, do que sucede com os titulares de direitos e garantias individuais e os titulares dos direitos sociais. Veja-se que, enquanto os detentores dos direitos sociais e dos direitos individuais e coletivos são imediatamente servidos com o respectivo exercício, e só por defluência ou arrastamento é que resultam servidos os princípios da valorização do trabalho e da dignidade da pessoa humana, o contrário se dá com o desfrute dos direitos políticos. Aqui, o exercício de direitos não é para servir imediatamente a ninguém, mas para servir imediatamente a valores: os valores que se consubstanciam, justamente, nos proto-princípios da soberania popular e da democracia representativa.

17. Insista-se na diferenciação para ficar bem claro que os magnos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho existem para se concretizar, imediatamente, no individualizado espaço de movimentação dos seus titulares. Logo, os dois estruturantes princípios a servir primeiro  e só depois a se servir, por gravidade ou arrastamento  do particularizado gozo dos respectivos direitos subjetivos. Estes a primeiro luzir, para somente depois se ter por concretamente imperantes aqueles dois proto-princípios constitucionais. Ao contrário (renove-se o juízo) do que sucede com os estruturantes princípios da soberania popular e da democracia representativa, pois, aqui, quem primeiro resplende são valores ou princípios. O eleitor não exerce direito para primeiramente se beneficiar. Seu primeiro dever, no instante mesmo em que exerce o direito de votar, é para com a afirmação da soberania popular (valor coletivo) e a autenticidade do regime representativo (também valor de índole coletiva). O mesmo acontecendo com o candidato a cargo político-eletivo, que só está juridicamente autorizado a disputar a preferência do eleitorado para representar uma coletividade territorial por inteiro. Jamais para presentar (Pontes de Miranda) ou servir a si próprio.

18. Está aqui a razão pela qual a Magna Carta brasileira faz do direito ao voto uma simultânea obrigação (§ 1º do art. 14). Assim como as leis eleitorais substantivas tanto punem o eleitor mercenário como o candidato comprador de votos. Mais ainda, esta a razão por que a nossa Constituição forceja por fazer do processo eleitoral um exercício da mais depurada ética e da mais firme autenticidade democrática. Deixando clarissimamente posto, pelo § 9º do seu art. 14, que todo seu empenho é garantir a pureza do regime representativo, traduzida na idéia de “normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso de exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”. Isso de parelha com a proteção da “probidade administrativa e a moralidade para o exercício do cargo, considerada a vida pregressa do candidato”.


19. Ainda com esse propósito saneador de costumes é que a Constituição-cidadã, a Constituição-coragem de Ulysses Guimarães prossegue a descrever hipóteses de inelegibilidade (§ 4º e § 7º do art. 14) e de irreelegibilidade (§§ 5º e 6º do mesmo art. 14), não sem antes dispor sobre as próprias condições de elegibilidade de todo e qualquer candidato (§ 3º, ainda uma vez, do mesmo art. 14). E como se fosse pouco, faz-se de matriz da ação de impugnação do mandato já conquistado (§§ 10 e 11 do mesmíssimo art. 14) e empreende um verdadeiro cerco ético-político-penal a deputados, senadores e presidente da República, sob a explícita possibilidade de cominação de perda de mandato (arts. 54 e 55 e mais os arts. 52, parágrafo único, e 85).

20. Impossível, portanto, deixar de reconhecer que os direitos políticos de eleger e de ser eleito se caracterizam por um desaguadouro impessoal ou coletivo. Estão umbilicalmente vinculados a valores, e não a pessoas, sob o prisma da benfaseja imediatidade do seu exercício. A exigir o reconhecimento de uma ontologia e operacionalidade próprias, bem distanciadas daquelas que timbram os outros dois paradigmáticos modelos de direitos e garantias fundamentais.

21. Bem vistas as coisas, é nesse contexto mais abrangente da interpretação sistemática que se pode entender o tema do exercício dos direitos políticos como uma necessária via de legitimação dos que se investem em cargo político-eletivo. Um mecanismo que se define como elemento conceitual da soberania popular e da democracia representativa, essas duas irmãs siamesas do Estado Liberal de Direito.

22. Pois bem, como falar de exercício dos direitos políticos é falar da parelha temática elegibilidade/inelegibilidade, cada uma destas duas categorias não pode comportar interpretação que, a pretexto de homenagear este ou aquele dispositivo isolado, force a Constituição a cumprir finalidades opostas àquelas para as quais se preordenou. Donde afirmar a ministra Carmem Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, que “eventualmente, há que se sacrificar a interpretação literal e isolada de uma regra para se assegurar a aplicação e o respeito de todo o sistema constitucional”:> (voto condutor do acórdão proferido no habeas corpus nº 89.417-8, Rondônia, em 22.8.06). E, na lição do ministro César Asfor Rocha, o que se deve é “evitar menoscabo aos superiores comandos e valores constitucionais, autênticos princípios, que devem iluminar qualquer exegese das normas da Carta Magna, atendendo às suas sugestões, ainda que eventualmente uma norma inferior lhe contravenha o rumo” (voto condutor do acórdão proferido no RO nº 912/RR).

23. Assim é que, ao arrolar as condições de elegibilidade (§ 3º do art. 14), a Constituição nem precisou dizer que a idoneidade moral era uma delas; pois o fato é que a presença de tal requisito perpassa os poros todos dos numerosos dispositivos aqui citados. O que por certo inspirou o legislador ordinário a embutir nas condições de registro de candidatura a cargo eletivo a juntada de “certidões criminais fornecidas pelos órgãos de distribuição da Justiça Eleitoral” (inciso VI do art. 11 da Lei nº 9.504/97). Cabendo aos órgãos desse ramo do Poder Judiciário, também por certo, dizer se em face da natureza e da quantidade de eventuais processos criminais contra o requerente, aliadamente a outros desabonadores fatos públicos e notórios, fica suficientemente revelada uma “vida pregressa” incompatível com a dignidade do cargo em disputa. Função integrativo-secundária perfeitamente rimada com a índole da Justiça Eleitoral, de que serve como ilustração este dispositivo da Lei Complementar nº 64/90:

“O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público e a lisura eleitoral” (art. 23, sem os caracteres em negrito).

24. O mesmo raciocínio é de se aplicar, em tema de perda ou suspensão dos próprios direitos políticos, à exigência constitucional de trânsito em julgado de condenação criminal (inciso III do art. 15 da CF). É que esse trânsito em julgado somente foi exigido na lógica pressuposição de estar o candidato a responder por um ou outro processo penal. Por uma ou outra situação de eventual percalço jurisdicional-penal, de que ninguém em sociedade está livre. Jamais pretendeu a Lei das Leis imunizar ou blindar candidatos sob contínua e numerosa persecutio criminis, como é o caso dos autos. Pois isto equivaleria a fazer do seu tão criterioso sistema de comandos um castelo de areia. Um dar com uma das mãos e tomar com a outra, para evocar a sempre referida metáfora de Ruy Barbosa sobre como não se deve interpretar os enunciados jurídico-positivos, a partir da Constituição mesma.


25. Deveras, pelo que se vê dos autos e de consulta ao site da Justiça Federal de 1ª Instância do Rio de Janeiro e da Justiça Federal de Brasília, também da 1ª Instância, o recorrente está a responder por nada menos que 8 (oito) ações penais, além de 1 (uma) ação civil pública por improbidade administrativa, a saber:

1) 2003.51.01.505442-0 :: Crime de Falsificação de Documento Público, 8ª Vara Federal Criminal do RJ :: Há condenação sem trânsito, pendência de Recurso ao TRF 2ª Região;

2) 96.0067579-1 : : Crime Contra o Sistema Financeiro Nacional, Evasão de Divisas, 5ª Vara Federal Criminal do RJ :: Sem condenação

3) 2003.51.01.505658-1 : : Crime Tributário, Ausência de Recolhimento de Contribuição Previdenciária :: Sem condenação

4) 2004.51.01.530476-3 :: Crime Tributário, Ausência de Recolhimento de Contribuição Previdenciária :: Sem condenação

5) 2006.001.055165-7 :: 31ª Vara Criminal da Comarca da Capital/SP :: Crime de Furto (artigo 155, caput, CP).

6) 1999.001.026858-4 : : 38ª Vara Criminal Injúria e Difamação (artigo 139 e 147 do CP).

7) 2004.800.050044-5 : 8º JECRIM.

8) 2005.700.059525-4 :: 1ª Turma Recursal Criminal :: Lesão Corporal :: Condenação em 24.3.2006. 6 meses de detenção. Substituição por prestação pecuniária em favor da vítima.

9) 2004.34.00.048357-0 :: Ação Civil Pública por Improbidade Administrativa :: 13ª Vara Federal da Justiça Federal de Brasília.

25. Foi precisamente essa incomum folha corrida, associada a outros fatos públicos e notórios de objetiva reprovabilidade, que levou o egrégio Tribunal Regional do Rio de Janeiro à negativa de registro da candidatura do recorrente. Parecendo-me que assim procedeu com razoabilidade, considerada a âncora normativo-constitucional e também legal de que fez uso na decisão recorrida. Tudo de acordo com uma postura interpretativa que busca efetivar a ineliminável função de que se dota o Direito para qualificar os costumes. Os eleitorais à frente.

26. Julgo improcedente o recurso.

27. É como voto.

Brasília, de setembro de 2006.

MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO

Marcelo Ribeiro

ACÓRDÃO

RECURSO ORDINÁRIO Nº 1.069 — RIO DE JANEIRO — RIO DE JANEIRO.

Relator: Ministro Marcelo Ribeiro

Eleições 2006. Registro de candidato. Deputado federal. Inelegibilidade. Idoneidade moral. Art. 14, § 9º, da Constituição Federal. Não auto-aplicabilidade.

1. O art. 14, § 9°, da Constituição não é auto-aplicável (Súmula nº 13 do Tribunal Superior Eleitoral).

2. Na ausência de lei complementar estabelecendo os casos em que a vida pregressa do candidato implicarão inelegibilidade, não pode o julgador, sem se substituir ao legislador, defini-los.

Recurso provido para deferir o registro.

RELATÓRIO

O egrégio Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, por unanimidade, à consideração de que o candidato “(…) demonstra um perfil incompatível com o exercício do mandato (…)” (fl. 52), indeferiu o pedido de registro de Eurico Ângelo de Oliveira Miranda ao cargo de deputado federal pelo Partido Progressista (PP).

Eis a ementa do acórdão regional (fl. 38):

“Registro de Candidato a Deputado Federal. Eleições 2006. Pedido de Registro irregularmente instruído. Inobservado o disposto no art. 25 da Resolução do Tse nº 22.156/06. Indeferido o registro”.

Daí a interposição de recurso ordinário, no qual se alega ter o acórdão afrontado o art. 5º, XXXIX, LIV e LVII, da Constituição Federal e o art. 1º, I, e, da Lei Complementar nº 64/90, posto não haver contra o recorrente sentença penal com trânsito em julgado.

Aduz não haver “(…) qualquer inelegibilidade no fato de ser réu em ação penal, na medida em que inexiste sentença penal condenatória transitada em julgado” (fl. 77).

Daí ponderar que, aplicando-se ao caso concreto o princípio da presunção da inocência (art. 5º, LVII, da CF), não há que se cogitar da incidência da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, e, da LC nº 64/90.

Não foram apresentadas contra-razões.

A ilustre Procuradoria-Geral Eleitoral manifestou-se pelo desprovimento do recurso (fls. 120-124).

VOTO

Senhor Presidente, o acórdão recorrido contém um fundamento, com uma derivação, que é no sentido de que o art. 14, § 9º, da Constituição Federal seria auto-aplicável. Eis o teor dessa disposição:

“Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade, para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, a normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do abuso do poder econômico ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração pública” (grifo nosso).

Além de haver súmula deste Tribunal assentando a não-auto-aplicabilidade deste artigo (Súmula TSE nº 13), o referido dispositivo expressamente começa assentando que “lei complementar estabelecerá”. Não tenho a menor dúvida de que um artigo que diz “que a lei estabelecerá” não é auto-aplicável, pois não é, nos termos da lei, que se faz uma ressalva.

Além disso, a lei complementar que cuida das inelegibilidades, como sabemos, é a Lei Complementar nº 64/90, e não consta desta lei dispositivo que permita se chegar à mesma conclusão da Corte Regional Eleitoral, a qual entendeu que a existência de ações penais incursas sem trânsito em julgado — e é incontroverso que não há nenhum trânsito em julgado —, seria o suficiente a afastar a idoneidade moral do candidato, considerada a sua vida pregressa. Essa tese é sustentada com base na auto-aplicabilidade do art. 14, § 9º, da Constituição, que, evidentemente, não procede.

Fala-se muito em presunção de inocência. Penso que não é preciso nem se examinar essa questão, porque teríamos de analisar se há ou não violação a esse princípio caso a lei apontasse que a mera existência de ação penal configura hipótese de inelegibilidade.

Parece que o Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de examinar a matéria pela ótica da Lei Complementar nº 5 e entendeu, naquela época, que não haveria inconstitucionalidade. Mas aqui a questão não se discute e somente seria considerada se a lei previsse essa inelegibilidade pelo simples fato da existência da ação penal.

Assim, com esses fundamentos, dou provimento ao recurso ordinário para reformar o acórdão regional e deferir o registro de Eurico Ângelo de Oliveira Miranda ao cargo de deputado federal.

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