Criação do diabo

Propriedade intelectual é conveniência de interesses anglo-saxões

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13 de setembro de 2006, 17h22

No primeiro dia da criação, como consta nas sagradas escrituras, o Senhor fez a luz e, na seqüência, um monte de coisas até criar, no sexto dia, o homem — e do homem tirar a mulher. No último dia da semana, o sétimo, Ele descansou. Isso é o que consta dos livros sagrados, isso é o que se sabe. No entanto, há algo novo a ser contado, ou melhor, algo velho, algo muito velho.

Se enquanto Deus trabalhava, o diabo dormia, quando o Criador descansou, Belzebu acordou e resolveu se por a trabalhar. Queria criar algo que o Senhor não houvesse criado e assim reformular os padrões do maravilhoso mistério da criação.

Primeiramente, correu por tudo que está em cima da terra. Não vislumbrou qualquer ausência no mundaréu que o cercava. Nenhuma falha. Nenhuma omissão. Nada que pudesse ser aprimorado.

Mergulhou nos fundos dos mares e não conseguiu imaginar a criação de um ser ou planta marinhos que já não houvessem sido criados por seu arquiinimigo. Tudo já fora feito. No entanto, não se deixando abater pelas terras e pelas águas, o tinhoso partiu para a avaliação das criaturas do ar. E, mais uma vez, a decepção se fez presente.

Não havia como negar: a obra da criação era perfeita. Nada a acrescentar, nada a suprimir, nada a aprimorar. Só lhe restava admirar tudo que havia — o pior: sentir inveja.

Mergulhado em sua não resignação, o diabo meditava, meditava, meditava… até que chegou um momento em que ele, mergulhado na sua mais profunda irresignação, sorriu. Diabolicamente sorriu e disse nas belas e virginais planícies do Éden:

“Vou criar a patente e, com ela, controlar toda a criação. Vou garantir para minhas espoliações todas as criações originais da natureza, limitando seu crescimento e os benefícios para a humanidade”.

Muitos anos foram destilados no alambique do tempo até que, finalmente, fosse engarrafada a primeira e única e absoluta e verdadeira e inquestionável e infalível Igreja das Sacras Patentes da América nortista. Cumpria-se a maldição do coisa ruim.

Uma vez engarrafada e colocada para o consumidor, essa igreja reinou uníssona e absoluta entre seus crentes e dirigentes, pregando de modo obstinado o evangelho das patentes e dos direitos corporativos (que alguns chamam de autorais, erroneamente). E não houve quaisquer dissidências até as últimas décadas do morto século XX. Nessa ocasião, houve uma cisão, no correr de um Concílio onde estavam presentes os bispos da Organização Mundial do Comércio, os arcebispos da Organização das Nações Unidas e o cardealato das corporações do software.

Discutia-se nesse Concílio a expansão da catequese a todos os silvícolas ateus de seus legislares (isto é, todos que não morassem na América Supra-Equatorial). Mas enquanto o bispado e o arcebispado lutavam por um abrandamento temporal, tarifário e sem barreiras, para o catequismo ser adotado, o cardealato das corporações do software tinha outra visão.

Esses cardeais discursavam fervorosamente quanto a ineficiente e ineficaz atuação da igreja em sua cruzada para catequizar os silvícolas a fim de que possam, um dia, quando mortos, alcançarem os mundos do primeiro céu. “Nossa cruzada é sem precedentes no que diz respeito à catequização dos índios digitais”, disse um arcebispo negro da ONU.

“Mas é ineficaz porque não questiona o impasse demonológico decorrente do artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os direitos autorais não podem se enquadrar num dispositivo que diz respeito ao acesso à cultura e ao conhecimento. Temos que transformar a cultura em propriedade, nos moldes do artigo 17 da mesma declaração, ou melhor, quase. Podemos criar uma propriedade que seja mais do que propriedade convencional que é transmissível e imprescritível. Nós, que temos a mídia e o conteúdo, podemos impor que cultura é propriedade. ‘De tabela’ rebaixamos o artista para ‘produtor cultural’. E…”

Nesse momento ele foi interrompido por um arcebispo amarelo da ONU. “Acontece que todos nós, partícipes deste concílio, assinamos essa declaração.”

“Pois rechacêmo-la”, respondeu o interrompido, um cardeal anglo-saxão. “É chegada a hora da Declaração Universal dos Direitos das Corporações!”

Silêncio. Bispos se entreolharam. Arcebispos se entreolharam e sorriram. Os cardeais não se entreolharam, nem sorriram.

“No entanto, irmão”, pontuou o arcebispo negro que defendia as cruzadas digitais, “como ‘criar’ a propriedade? Propriedade não se cria; compra-se, herda-se, rouba-se,. mas não se cria”. E de pronto o cardeal anglo-saxão respondeu:

“Os irmãos têm de entender que não se adquire a propriedade apenas ‘mediante a espoliação de indígenas, exploração de servos, por herança, nem por especulação’1. Existe algo além da plus valia que pode ser adquirido através do trabalho de terceiros — e já que existe. Por que não acrescê-lo às outras formas de acumulação de riquezas e de exploração do homem pelo homem e pelas corporações? Nós temos a mídia. Portanto, convencer é fácil. Afinal, não foi assim que convencemos a humanidade que o trabalho, a primeira maldição bíblica, dignifica o homem?”2

Discussões afloraram. Abreviando a história: houve uma cisão entre os bispos e arcebispos da OMC e da ONU e o cadealato das softwarehouses, dando nascimento à Igreja Universal das Patentes e da Propriedade Intelectual, a Iuppi.

Em pouco tempo, essa nova facção religiosa conquistou o apoio dos cardealatos da Comunidade Européia, da Austrália do Canadá e da Inglaterra, assim consignou que o conhecimento científico, a educação e as artes deveriam ser tratados como “propriedade intelectual”, mesmo que a propriedade intelectual não guarde os principais pontos característicos da propriedade: a imprescritibilidade e o direito à fruição plena. A “propriedade intelectual” é, em verdade, uma semi-propriedade; é a semi-virgem das corporações; é aquela que nunca existiu. É a conveniência dos interesses anglo-saxões.

Destarte, graças às inegáveis dedicação e determinação da Iuppi, decretou-se como heresia o artigo 27 da Declaração dos Direitos do Homem, subscrita por todos aqueles que faziam parte do Concílio e foi defeso às corporações criar “propriedades”.

Notas de rodapé

1 – Vide “Presente e futuro das liberdades na internet espanhola”, de autoria de Carlos Sánchez Almeida, publicada no website Kriptópolis (www.kriptopolis.com), entre 27 e 30 de outubro de 2003.

2 – A idéia de trabalho é uma excrescência no Éden, o paraíso terrestre. A idéia do trabalho somente surge quando o homem e a mulher são expulsos do paraíso e têm de prover suas existência e necessidades. Consta na Gênese, Capítulo III, versículos 16 a 19, da santa Bíblia, o seguinte: “Disse também à mulher: Multiplicarei os teus trabalhos e (especialmente os de) teus partos. Darás a luz com dor aos filhos e estarás sob o poder do teu marido; e ele te dominará. E disse a Adão: Porque deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore, de que tinha te ordenado que não comesses, a terra será maldita por tua causa; tirarás dela o sustento com trabalhos penosos todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o pão com o suor de teu rosto, até que voltes à terra, de que foste tomado; porque tu és pó e em pó hás de te tornar”.

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    é advogado paulistano com dedicação às questões relativas a direito e tecnologia das informações. Além de autor de diversos outros livros, é partícipe da coletânea ATA NOTARIAL (SAFe [Porto Alegre], 2004, 1ª Edição). Foi o coordenador de cursos sobre a importância da ata notarial em diversos Estados, em 2004

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