A mão da Justiça

Mais do que as leis, decisões judiciais mudam a sociedade

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14 de outubro de 2006, 7h00

Um grupo de criminosos planeja um seqüestro. No meio da reunião para discutir os detalhes da operação, o chefão avisa: “Queria advertir os nobres colegas que a pena máxima de prisão para seqüestro aumentou de oito para 20 anos”. Um a um, os colegas respondem: “Se é assim, estou fora dessa”. A sessão se encerra, voltam todos para casa aterrorizados com os rigores da nova lei, um crime brutal deixa de ser cometido e em pouco tempo os índices de criminalidade desabam.

A improvável cena, montada pela imaginação de um reconhecido criminalista, ilustra à perfeição a impossibilidade prática de querer modificar a realidade com a simples edição de leis. E remete à idéia de que o contrário disso é muito mais verdadeiro do que pode parecer. Não são as leis que mudam a realidade. É a realidade que muda as leis.

Em seu trabalho de interpretar a legislação e a Constituição Federal — que atende também pelo nome de hermenêutica jurídica — juízes e tribunais relevam-se responsáveis pelas maiores transformações sociais dos últimos anos. “A atividade dos tribunais é uma importante fonte criadora do direito. O juiz não se limita a aplicar o direito existente, mas é muitas vezes co-participante do processo de criação do direito. E faz isso por meio da interpretação”, afirma o constitucionalista Luís Roberto Barroso.

São fartos os exemplos da influência da Justiça nas mudanças sociais. O mais recente se deu nas eleições de 1º de outubro, quando o Tribunal Superior Eleitoral impediu a candidatura de um punhado de maus administradores públicos.

Até estas eleições, funcionava assim: o prefeito ou governador geria mal — ou assaltava — os cofres públicos. Condenado pelos tribunais de contas, tinha os direitos políticos suspensos. Na teoria, a Justiça estava feita. Na prática, bastava ao mau político entrar com um processo contra a condenação administrativa para recuperar seus direitos e se candidatar a qualquer cargo eletivo.

Isso mudou. O TSE reinterpretou suas decisões e acabou com a farra. Num julgamento capitaneado pelo ministro Cesar Asfor Rocha, a Corte Eleitoral decidiu que para garantir o registro da candidatura, o candidato tem de obter a suspensão da decisão administrativa na Justiça Comum ou a Justiça Eleitoral tem de reconhecer a idoneidade da ação que contesta a decisão do tribunal de contas.

A virada se deu no julgamento da candidatura a deputado estadual de Elizeu Alves, ex-prefeito de São Luiz do Anauá (RR). Alves (PP) teve as contas rejeitadas em agosto de 2003 e novamente em dezembro de 2004, mas só contestou a decisão do Tribunal de Contas Estadual em 4 de julho deste ano — um dia antes do término do prazo legal para requerer o registro de sua candidatura.

Ficou claro que a intenção de Alves era apenas concorrer às eleições, não discutir sua suposta inocência. Mas o candidato dançou, e fez bailar ao som da música da renovação mais um punhado de maus políticos que até então se aproveitavam desta regra.

Tratamento da Aids

A permissão legal para que doentes de Aids ou trabalhadores com dependentes soropositivos saquem o Fundo de Garantia para tratamento, por exemplo, só nasceu depois de seguidas decisões judiciais determinando que eles pudessem dispor desse dinheiro.

Em outubro de 1998, uma sentença pioneira do juiz federal Maurício Kato, de São Paulo, obrigou a Caixa Econômica Federal a liberar os recursos do FGTS de pessoa empregada e em perfeito estado de saúde para custear o tratamento de dependente, portador do vírus da Aids. Até então, admitia-se a liberação do dinheiro apenas para quem tinha a doença, não para seus tutores. Neste caso, uma trabalhadora pediu na Justiça a liberação do seu Fundo de Garantia para custear o tratamento do irmão.

O juiz Kato classificou como “absolutamente irrelevante” o fato de a lei do FGTS não mencionar expressamente a figura do dependente aidético como condição para o saque do FGTS. E lembrou que o papel do juiz, na aplicação da lei, deve ser o de atender “aos fins sociais a que ela se dirige e à exigência do bem comum”.


Menos de dois anos depois, a garantia do saque foi chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do caso de uma mãe paranaense, inconformada por ter seu dinheiro parado na conta enquanto seu filho, soropositivo, sofria privações no tratamento.

Quando o assunto bateu às portas do STJ em março de 2000, a lei do FGTS ainda permitia o saque apenas para tratamento de câncer (neoplasia maligna). Esse foi o argumento da Caixa Econômica Federal, derrubado em todas as instâncias, para apresentar o recurso ao tribunal superior: o dinheiro vale para tratar câncer, mas não para tratar Aids.

O ministro José Delgado repeliu a alegação. “Não é possível tal apego à letra da lei, principalmente quando se cuida de tratamento de doença mortal, até mais do que o câncer, como é o caso da Aids.” De acordo com o ministro, “é evidente que a intenção do legislador foi proteger e amparar os casos de enfermidades graves, porventura sobrevindas a familiares de titulares das contas do FGTS. O fato de nomear apenas o câncer não desvirtua tal intenção”.

Hoje, o site da Caixa lista entre as possibilidades para saque do FGTS o tratamento da Aids e dá orientação sobre quais documentos são necessários para sair da agência com o dinheiro. Por mais razoável e sensato que seja o entendimento do ministro, vale ressaltar que o gerente da Caixa ou mesmo seu departamento jurídico não têm autoridade institucional ou competência para dar uma nova interpretação à lei.

Opção judicial

Talvez o mais notável exemplo de mudança nas relações sociais feita pelas mãos de juízes seja o reconhecimento da união estável entre homossexuais. A luta dos casais gays pelos mesmos direitos reservados aos casais tradicionais já fez a Justiça brasileira, no vácuo da legislação, garantir o direito a pensão previdenciária pela morte do companheiro, partilha de bens e até mesmo a inclusão em plano de saúde, como dependente.

Há três meses, a juíza Mariângela Meyer Pires Faleiro, da 5ª Vara Cível de Belo Horizonte, afirmou que “a Justiça não pode seguir dando respostas mortas a perguntas vivas”. Para a juíza, não reconhecer a união homoafetiva seria fingir-se de morta. Mariângela determinou que o INSS pague pensão ao companheiro de um ex-servidor público, no valor integral dos vencimentos que o ex-servidor recebia quando morreu.

A juíza, em sua decisão, simplesmente atentou para os fatos: o casal homossexual conviveu sob o mesmo teto, compartilhou despesas e teve conta conjunta por cerca de 35 anos — de meados de 1970 até a morte do ex-servidor em janeiro de 2005. Já o Estado, em suas alegações, mirou-se apenas na formalidade legal: a lei que reconheceu a união estável refere-se somente à entidade familiar formada por homem e mulher e não faz nenhuma previsão de união entre pessoas do mesmo sexo.

“O Poder Judiciário tem que ser independente e ter a coragem de inovar, de enfrentar os tabus e de reconhecer a realidade dos fatos que estão batendo à sua porta, adequando a eles a legislação existente”, afirmou a juíza.

O Superior Tribunal de Justiça reconheceu o direito de pensão previdenciária por morte de companheiro homossexual pela primeira vez em dezembro do ano passado. Os ministros classificaram como discriminatório o argumento de não haver previsão legal para a hipótese e deram a pensão por morte para o companheiro que teve uma união estável comprovada por 18 anos.

A decisão foi tomada pela 6ª Turma do tribunal. O ministro Hélio Quaglia Barbosa, que relatou o processo, observou que a Lei 8.213/91 (que define os dependentes previdenciários do regime geral da Previdência Social) se preocupou em desenhar o conceito de entidade familiar, contemplando a união estável, sem excluir as relações entre pessoas do mesmo sexo.

Noutras duas recentes e inovadoras decisões, a Justiça reconheceu o direito de um companheiro colocar o outro como dependente no plano de saúde e até mesmo autorizar a doação de órgãos.

Em São Paulo, o juiz Guilherme de Macedo Soares, da 3ª Vara da Família e das Sucessões do Jabaquara, acolheu Ação Declaratória de Reconhecimento de União Estável ajuizada por um casal de mulheres. Elas vivem juntas há oito anos e entraram com o pedido para que pudessem ser reconhecidas como um casal perante o plano de saúde, o INSS e a Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo.


No caso da autorização para doação de órgãos, o juiz federal Otávio Henrique Martins Port, da 9ª Vara Federal Cível de São Paulo, lembrou também que várias decisões judiciais reconhecem que o homossexual pode receber pensão por morte do companheiro e entendeu que não há diferença entre a situação previdenciária e da autorização para doação de órgãos.

A união estável de pessoas do mesmo sexo é legal. Mesmo não estando prevista em lei.

Família brasileira

A interpretação judicial sobre a união homossexual pode vir a criar, inclusive, a quarta família brasileira. No atual contexto, a Constituição prevê três enquadramentos de família. A decorrente do casamento, a família formada com a união estável e a entidade familiar monoparental (quando acontece de apenas um dos cônjuges ficar com os filhos).

Ao julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade em fevereiro deste ano, o ministro Celso de Mello afirmou que a união homossexual deve ser reconhecida como uma entidade familiar e não apenas como “sociedade de fato”. A manifestação foi pioneira no âmbito do Supremo Tribunal Federal e indicou que a discussão sobre o tema deve ser deslocada do campo do Direito das Obrigações para o campo do Direito de Família.

A opinião do ministro foi explicitada no exame de uma ação proposta pela Associação Parada do Orgulho Gay, que contestou a definição legal de união estável: “entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família” (artigo 1.723 do Código Civil).

Celso de Mello extinguiu o processo por razões de ordem técnica, mas teceu considerações sobre o que afirmou ser uma “relevantíssima questão constitucional”. O ministro entendeu que o STF deve discutir e julgar, em novo processo, o reconhecimento da legitimidade constitucional das uniões homossexuais e de sua qualificação como “entidade familiar”. Ele chegou até mesmo a indicar o instrumento correto para que a questão volte ao Supremo: a ADPF, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Em sua decisão, o ministro cita a desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias, que ressalta a importância do Judiciário como agente de transformação social: “Ao menos até que o legislador regulamente as uniões homoafetivas — como já fez a maioria dos países do mundo civilizado — incumbe ao Judiciário emprestar-lhes visibilidade e assegurar-lhes os mesmos direitos que merecem as demais relações afetivas. Essa é a missão fundamental da jurisprudência, que necessita desempenhar seu papel de agente transformador dos estagnados conceitos da sociedade.”

A própria união estável tradicional, prevista na Constituição de 1988 e hoje devidamente regulamentada no Código Civil de 2003, passou um tempo no limbo legal e teve de ser insistentemente reconhecida pela Justiça como entidade familiar para atingir esse status. “Antes da Constituição Federal de 88, a união estável era tratada no Direito das Obrigações. A partir dali, passou para o Direito de Família”, afirma a advogada Alessandra Bastos, do Machado, Meyer, Sendacz e Opice. “Os juízes sempre deram ênfase à intenção de constituir família, de ter uma relação duradoura.”

E é exatamente essa intenção que pode dar uma nova nuance à união estável. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já inovou e reconheceu uma união estável paralela ao casamento. A 8ª Câmara Cível do TJ gaúcho entendeu que o relacionamento paralelo mantido por um homem ao longo de 16 anos, embora ele fosse casado há mais de 30 anos, é a prova de que ele manteve duas famílias.

O homem, já morto, teve dois filhos com a mulher e duas filhas com funcionária de sua lanchonete. “Está-se diante de uma entidade familiar concomitante ao casamento”, concluiu o desembargador José Ataídes Siqueira Trindade. O homem mantinha dois endereços, mesmo para fins de correspondência oficial. Fotografias retrataram o convívio social e familiar com a mulher e com a funcionária. Logo, os juízes reconheceram que as duas tinham direito ao patrimônio amealhado pelo chefe de famílias.


Bens de família

A Lei 8.009/90, que impede a penhora de bens de família, é outro exemplo da elasticidade que as regras podem adquirir quando são submetidas ao crivo do Judiciário. “A idéia da lei foi proteger a família do devedor, que não tem culpa da dívida e não pode ficar sem o teto em razão do endividamento do chefe da família”, explica Rafael Villar Gagliardi, do Demarest e Almeida. “Mas, recentemente, o STJ vem decidindo que o solteiro também é família e ampliando a proteção para o próprio devedor.”

Numa dessas decisões, o ministro aposentado Luiz Vicente Cernicchiaro, do STJ, defendeu uma interpretação que leve em consideração o sentido social do texto. Para ele, essa lei não está dirigida a um número de pessoas, mas à pessoa. “Solteira, casada, viúva, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal”, afirmou.

A interpretação judicial também estendeu a proteção antes aplicada apenas aos imóveis a outros bens, como microondas, televisão, ar-condicionado e linha telefônica. Em decisão tomada há pouco mais de um ano, o ministro Humberto Gomes de Barros, da 3ª Turma do STJ, sustentou que “o manto da impenhorabilidade do bem de família se estende aos móveis que o guarnecem, com exceção àqueles de caráter supérfluo ou suntuoso”. Nesse sentido, já foram considerados impenhoráveis até mesmo jazigos em cemitérios e vagas de garagem.

Imposto, greve, aborto…

A ampliação dos direitos e da consciência cidadã a partir da Constituição de 1988 fez crescer o espaço institucional do Judiciário proporcionando a ele horizonte para discutir desde a política tributária federal até os limites do direito de gestantes sobre seu corpo. Quando julgar o mérito da ação que defende o direito da mulher de interromper a gravidez em casos de feto anencefálico, o Supremo Tribunal Federal estará antecipando uma nova hipótese legal.

“O que se pede é que o STF interprete o Código Penal à luz da Constituição para determinar que ele (o CP) não seja aplicado no caso de interrupção da gestação de feto anencefálico. Ou seja, se prevalecer esta tese, além dos dois casos tradicionais em que se admite a interrupção da gestação, que são o estupro e o grave risco para a mãe, a Justiça estará admitindo, por interpretação, uma outra hipótese legal, que é a da inviabilidade fetal”, explica Luís Roberto Barroso, o autor da tese sobre a qual os ministros se debruçarão.

Há um outro caso ilustrativo em julgamento no Supremo, que diz respeito ao direito de as empresas que adquirem matéria-prima ou insumos com alíquota zero obterem créditos sobre o IPI. Em 2002, o STF decidiu que as empresas tinham direito ao crédito.

Sob a nova composição da Corte — de lá para cá, foram nomeados seis novos ministros — o entendimento pode mudar. “Se isso acontecer, na prática, para o contribuinte, é a criação de um novo tributo”, afirma Barroso. “Antes, o contribuinte podia creditar e consequentemente abater esse crédito do imposto que ele tinha a pagar. Portanto, neste caso, a mudança de jurisprudência importaria na criação de um tributo novo.”

O alcance da influência do Judiciário não deve parar por aí. Mais do que interpretar as regras, o Judiciário pode agora passar até mesmo a legislar nos casos em que o Congresso for omisso — quando a Constituição prevê um direito que ainda não pode ser exercido por falta de regulamentação.

No julgamento mais adiantado sobre o tema, dois ministros — Eros Grau e Gilmar Mendes — já votaram no sentido de que o Judiciário pode solucionar os casos de omissão do Legislativo. E ao menos mais dois ministros já deram mostras, em outras decisões, de que são simpáticos a essa tese — Marco Aurélio e Celso de Mello. A decisão que se desenha é a de que, na falta de uma lei para regulamentar o direito de greve de servidores públicos, aplica-se a lei que rege as paralisações dos trabalhadores da iniciativa privada. O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Ricardo Lewandowski.

Se a tendência se mantiver, a transformação social provocada pelo Judiciário pode atingir proporções ainda maiores que as percebidas até agora. “A mudança no trato desse tema pode ser uma revolução bastante grande e, acredito, até problemática”, afirma o também constitucionalista José Levi Mello do Amaral Júnior.

Para José Levi, um Supremo que legisle no vácuo do Congresso atrairá para si as expectativas e demandas da sociedade. “Como imaginar o quebra-quebra que o MLST promoveu na Câmara dos Deputados acontecendo no STF? No limite, uma mudança no trato do Mandado de Injunção pode, sim, levar a isso.”

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