Desvio de função

Entrevista: Vantuil Abdala, conselheiro do CNJ

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12 de outubro de 2006, 7h00

Vantuil Abdala - por SpaccaSpacca" data-GUID="vantuil_abdala.png">Com um pouco mais de um ano de vida, o Conselho Nacional de Justiça já pode apresentar algumas obras de grande repercussão na sociedade, como o combate ao nepotismo, a promoção fundamentada e por mérito dos juízes e o respeito ao teto salarial da classe. Para o ministro do Tribunal Superior do Trabalho e conselheiro do CNJ, Vantuil Abdala, estas são realizações valiosas, mas não foi para isso que o Conselho foi primordialmente criado.

“O Conselho está perdendo tempo em questiúnculas em vez de cuidar das questões mais importantes com a intensidade que se esperava dele”, afirma o ministro em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Ele entende até as razões que levaram o Conselho a esta espécie de “desvio de objetivo”. Trata-se de um órgão novo, que ainda está se estruturando e demarcando seus limites e seus alcances. O Conselho é também fruto das circunstâncias do momento histórico em que foi criado. Na época o Judiciário vivia sob forte pressão externa da sociedade, “havia até uma CPI do Judiciário que não sei como se chamava”, diz Vantuil.

Para o ex-presidente do TST, a grande missão do CNJ é o fortalecimento do Poder Judiciário, principalmente sob o aspecto da sua independência. “Me parece que o CNJ tem uma missão muito maior e muito mais importante do que essas miudezas que são desentendimento entre juízes, desentendimentos entre juízes e o Tribunal, entre funcionários e juízes e de funcionários entre si”, afirma. Para ele, estas são questões menores e que já tem suas próprias instâncias julgadoras.

Quanto ao nepotismo no Judiciário, o ministro defende como uma questão importante e que serviu de baliza para o Legislativo e o Executivo. Mas sua contribuição para aumentar a celeridade da Justiça, o maior desafio do Judiciário, é praticamente nula. “Possivelmente naqueles momentos iniciais havia discussões mais importantes no sentido de aperfeiçoar a prestação jurisdicional.”

Leia a entrevista

ConJur — Recentemente o senhor concedeu uma entrevista onde mostrava uma certa insatisfação em relação ao andamento dos trabalhos do CNJ. O que está acontecendo?

Vantuil Abdala — Quando se criou o Conselho Nacional de Justiça o objetivo básico era o fortalecimento do Poder Judiciário, principalmente sob o aspecto da sua independência. Nós, que já vivemos momentos de exceção no país, sabemos o quanto é importante ter um Poder Judiciário independente, altivo, autônomo e corajoso. Não vejo vontade nenhuma do establishment em prestigiar o Judiciário. Essa me parece ser a função primordial do CNJ para a qual ele não está atentando.

ConJur — O que o CNJ deveria estar fazendo e não está?

Vantuil Abdala — O Conselho está fazendo coisas boas e importantes, está tentando separar o joio do trigo. O CNJ está tomando providências em relação a comportamentos impróprios e irregulares de magistrados, especialmente na área administrativa. Isto é o fundamental? Não. O CNJ está preocupado com a celeridade da prestação jurisdicional? Sim. Isto é uma coisa importante? É muito importante. O prestígio do Judiciário também depende do tempo em que ele responde ao reclamo da sociedade. O Conselho está atento para questões importantes, mas não com a intensidade que se esperava porque está perdendo tempo com questiúnculas.

ConJur — Onde estaria a raiz do problema?

Vantuil Abdala — Me parece que o CNJ tem uma missão muito maior e muito mais importante do que tratar dessas miudezas que são desentendimento entre juízes, desentendimentos entre juízes e tribunal, entre funcionário e juízes e de funcionários entre si. Temos, às vezes, mais de 60 processos na pauta e ficamos o dia inteiro, todos os conselheiros, apreciando coisas assim. Outro dia, por exemplo, julgávamos um processo em que se discutia qual era o tipo do papel que se devia usar num determinado tribunal.

ConJur — Qual a explicação para esse “desvio de objetivo” que estaria afetando o Conselho?

Vantuil Abdala — Esse é o tributo que se paga por um órgão novo. É o tributo que se paga por um órgão que ainda não tinha exatamente estabelecido os parâmetros da sua atuação. Com a criação do CNJ veio a expectativa de um órgão disciplinar, de punição, partindo da concepção de que o Poder Judiciário estivesse cheio de juizes desonestos, quando se sabe que isto é a absoluta exceção.

ConJur — O senhor falou em pressões. Que tipo de pressão o Judiciário está sofrendo hoje? E que tipo de pressão o CNJ poderia estar sofrendo?

Vantuil Abdala — É preciso que a sociedade confie no Poder Judiciário. Isto é necessário e fundamental para a democracia: um Judiciário forte e independente, que o povo confia e respeita. Sofre-se de maneira indireta uma certa influência dos poderosos sobre a magistratura, sejam os poderosos do governo, sejam os poderosos economicamente, sejam os poderosos da mídia. Não que o juiz decida a favor do interesse pessoal da mídia em determinadas circunstâncias, mas ele é influenciado por aquilo que a mídia leva ao público como sendo uma verdade irretorquível. Tanto que se diz hoje que o que transita em julgado não é a sentença do juiz mas a notícia da imprensa. Então, é preciso muito cuidado para não se julgar levado por esse impacto inicial do que vem a público e é divulgado. Porque a história nos mostra situações lamentáveis como o caso daquela escola infantil de São Paulo [Escola Base], como foi o caso daquele ex-ministro das bicicletas [Alceni Guerra, ministro da Saúde do governo Collor], que agora foi eleito deputado federal, e graças a Deus que teve tempo de se redimir, como foi o caso daquele ex-presidente da Câmara [Ibsen Pinheiro] e que agora foi eleito deputado pelo Rio Grande do Sul. É preciso que o juiz tenha muita coragem nessa circunstância para julgar de acordo com a prova dos autos e de sua consciência. Nos estados, quem nomeia parte dos desembargadores é o governador do Estado. Quem libera verbas é o governo estadual. É compreensível que muitas vezes não haja uma absoluta independência em relação ao que seria o interesse do Estado e o que seria o interesse público. Podemos imaginar que como vivemos em um regime democrático, isso seria de menos importância. No entanto, não é. Não é só durante uma ditadura que o Poder Judiciário sofre pressões.


ConJur — Então existe hoje uma atuação movida a pressões?

Vantuil Abdala — Veja bem, tudo que eu estou dizendo são situações, felizmente, excepcionais. Não são todos os juízes e nem em todos os processos que ele julga, mas não devia existir em nenhum. Pelo contrário, quando houvesse um caso, ele deveria ter independência, coragem e autonomia suficiente para não decidir sob essa influência. Nem mesmo a influência ideológica. O juiz não deve decidir de acordo com a sua ideologia política, e sim de acordo com os postulados da Constituição Federal. Essa influência no trabalho do juiz sempre existiu. Evidentemente que no regime de exceção era muito maior. Como juiz em São Bernardo do Campo, quando houve aquelas primeiras greves em 1979, eu tive imensa dificuldade em julgar um grevista e dizer que o trabalhador tinha o direito de fazer greve, que isso não era justa causa para demitir. Eu senti isso na pele: o que é um juiz querer julgar de acordo com a sua consciência e o temor de quais seriam as conseqüências daquele seu julgamento, para si, para sua família e para o próprio órgão a que ele pertence. É um certo tipo de influência que paira no ar, que não é visível e exatamente por não ser visível, não dá para se combater diretamente. Por isso é necessário fortalecer e prestigiar o Judiciário.

ConJur — O senhor comentou que os juízes têm problemas com a administração. Esse tema já gerou muitas punições no CNJ?

Vantuil Abdala — Tudo se denuncia no CNJ. São denúncias anônimas, não anônimas, questões menores. O Conselho está completamente aberto a essas denúncias e, mesmo assim, se vêem pouquíssimos casos se considerarmos o contingente do Judiciário do país. Ainda assim, normalmente, a maior parte das questões que aparecem são administrativas. Não é irregularidade no exercício da jurisdição e no julgamento. Eu conto nos dedos da mão os casos de desonestidade em julgamento e que chegamos à conclusão de ter havido falta de ética no exercício da jurisdição. Os problemas aparecem na órbita administrativa. Por exemplo, nomear quem não deve, deixar de nomear quem deve.

ConJur — Podemos dizer que os juízes são éticos, mas maus administradores?

Vantuil Abdala — Sem dúvida. O magistrado não é preparado para isto. É uma lástima. Antigamente nós tínhamos um órgão no âmbito federal, que se chamava DASP — Departamento Administrativo do Serviço Público, para cuidar dessas coisas de patrimônio. Isso na órbita federal. Quando o Poder Judiciário precisava de um prédio, solicitava ao governo e o DASP cuidava de entregar um prédio para funcionar o tribunal. O Poder Judiciário não tem nada que ficar construindo prédio. Aquela lástima que aconteceu na Justiça Trabalhista de São Paulo foi exatamente nesta área. Na minha gestão no TST eu perdi boa parte do tempo cuidando da construção do novo prédio. Eu não estudei para isso, não é minha vocação, não gosto. Há uma perda de tempo muito grande no tribunais nesta área administrativa.

ConJur — O CNJ está pensando em soluções para isso?

Vantuil Abdala — Quanto a isso nunca vi. Está se pensando em coibir as irregularidades, mas quanto a modificar o sistema administrativo, não ouvi uma palavra.

ConJur — Qual é a grande preocupação da presidente do CNJ, a ministra Ellen Gracie?

Vantuil Abdala — Ela está se preocupando menos, graças a Deus, com a questão disciplinar e está voltando os olhos para a questão da celeridade. Tanto, que ela está fazendo um projeto muito interessante de estímulo à conciliação. Na área de informática, aconteceu que cada um foi formando o seu sistema como melhor entendia e formaram-se grandes ilhas que não se comunicam. O que Ellen Gracie procura agora é a padronização e a uniformização. Como disse, o prestígio do Judiciário perante a sociedade também passa pela sua eficiência. Na questão da informática, imagino que deveria haver um órgão central federal que cuidasse do assunto para todos os setores do Estado, Legislativo, Executivo e Judiciário. Isso evitaria dispersão de recursos, de projetos e de idéias.

ConJur — Qual deve ser a prioridade do CNJ?

Vantuil Abdala — Eu digo o que não deve ser prioridade: ficar se preocupando com questões menores. Porque na medida em que se atém a essas questões menores, não sobra tempo para as questões maiores. Em segundo lugar, é preciso ter uma preocupação de fortalecimento do Poder Judiciário no país, ter uma preocupação com a independência e a autonomia, pensar nisso e atuar nesse sentido.

ConJur — Como isso poderia ser feito?

Vantuil Abdala — Este é um processo cultural, de longo prazo. Sempre que haja um ataque indevido a um órgão do Judiciário é preciso que o Conselho reaja, se manifeste.


ConJur — O senhor pode dar um exemplo?

Vantuil Abdala — Muitas vezes o juiz ou o ministro concede um Habeas Corpus pelos elementos que estão nos autos e é criticado por isso. O juiz não pode ficar ele próprio a responder, ele sente-se sozinho. No primeiro caso ele teve a coragem, segundo também, mas no quinto ele começa a fraquejar porque é humano. Na realidade o magistrado precisa ter muita coragem para julgar contrariamente àquilo que se espera. É preciso que em palestras, em congressos, em contatos, se estimule isso. É preciso começar a passar para a sociedade de um modo geral que é bom ter consideração com o Poder Judiciário.

ConJur — Há algo pontual que o CNJ possa fazer a respeito?

Vantuil Abdala — Esse é um trabalho conjunto, de tempo, mas é preciso que comece a se despertar para isto. Infelizmente, a criação do Conselho já foi dentro de uma mentalidade que reinava na época, quase que subsequentemente a uma chamada Comissão Parlamentar de Inquérito do Judiciário, nem me lembro o nome. Na ocasião, o Conselho era chamado até de órgão de controle externo. Veja que na própria nomenclatura que se passou a atribuir a esse órgão já denotava a mentalidade com que se vinha. Se esperava que cabeças rolassem. Nesse sentido é que se passou a examinar questões menores e secundárias. Tive aqui uma denúncia de que um juiz ao inaugurar a reforma da Vara da sua cidade, estaria fazendo auto-promoção porque editou uma cartilha para divulgar a inauguração do novo prédio com fotos do juiz.

ConJur — Qual a importância da discussão do nepotismo pelo Conselho?

Vantuil Abdala — A proibição do nepotismo foi uma decisão importante principalmente para dar um exemplo para os outros poderes e para o próprio Judiciário. Cargos de confiança devem ser preenchidos de acordo com a competência da pessoa, e não por razões sentimentais. Mas não vejo essa decisão como muito significativa no sentido da melhoria da celeridade processual. Aliás, a discussão sobre o tema tomou muito tempo do Conselho e ainda toma com casos pontuais que chegam para nós. Me pergunto se o momento em que o CNJ discutiu essa questão era o mais adequado. Talvez naquele momento inicial havia discussões mais importantes no sentido de aperfeiçoar a prestação jurisdicional.

ConJur — Como o senhor avalia a postura do Conselho no caso do presidente do Tribunal de Justiça de Rondônia?

Vantuil Abdala — Acho que o Conselho se precipitou porque cabe, originariamente, ao próprio Tribunal de Justiça local, julgar o desembargador. Em função de uma grita, o CNJ, sem dar direito de defesa, como está na Constituição Federal, como está na Lei Orgânica da Magistratura, afastou o magistrado. Não havia a necessidade da tomada daquela medida, naquele momento, naquelas circunstâncias, atropelando o disposto da lei orgânica da magistratura. Isto é que eu acho perigoso.

ConJur — Foi resultado de uma pressão?

Vantuil Abdala — Foi uma satisfação ao estado de espírito que reinava naquele momento. O Tribunal o afastou e está sendo desenvolvido o processo administrativo normal. Creio que foi um exagero prender o presidente do Tribunal com algemas. O magistrado tem que ser tratado diferentemente de todo o cidadão? Não, mas nenhum cidadão que não ofereça perigo deve ser algemado.

ConJur — Na sua avaliação, o que falta para o Brasil? Mais recursos, mais juízes e tribunais, melhor administração do Judiciário?

Vantuil Abdala — A falta de recurso é o fator menos importante. A falta de juízes é também um fator menos importante. O mal maior está mesmo em nossa legislação feita normalmente às pressas sem um cuidado maior e muitas vezes com uma redação dúbia exatamente para poder acomodar interesses. E isso recai sobre o Judiciário. Por exemplo, as conseqüências para quem descumpre a obrigação são muito pequenas. Ao final de todo um processo, o réu vai ter que pagar praticamente aquilo mesmo que ele deveria ter pagado anos antes. Com a ausência de reprimenda forte ao descumprimento da obrigação legal, se cria a cultura de desrespeito aos direitos dos outros. Isso abarrota o Poder Judiciário de ações, muitas vezes, apenas para protelar o cumprimento da obrigação. É um absurdo que para saber se um tributo é devido ou não, se leve cinco, seis, sete anos. O Judiciário deveria poder fazer a seleção e dar prioridade no julgamento dos processos que têm repercussão em toda a sociedade.

ConJur — É o caso da transcendência que se pretende aplicar no Tribunal Superior do Trabalho?

Vantuil Abdala — Sim, é o princípio da relevância ou da repercussão que o Supremo tenta implantar. No entanto, boa parte dos advogados, por corporativismo e por não querer perder mercado de trabalho, faz grande resistência a esses aperfeiçoamentos.

ConJur — Onde estão os grandes problemas?

Vantuil Abdala — O problema de maior gravidade está na Justiça Estadual, que, responde por 80% das ações do país e que vive, cada ume isolada em seu estado, como uma espécie de república. Nunca houve um órgão de controle central, de controle no sentido da coordenação para otimizar os esforços, os projetos e os planos. Nesse campo de coordenação das atividades administrativas eu vejo uma grande oportunidade de atuação do CNJ. Ele deve ele se aprofundar cada vez mais nisto.

ConJur — O senhor não se sente intimidado ao tecer críticas ao órgão de que faz parte?

Vantuil Abdala — A intenção não é outra senão melhorar a atuação do CNJ e, portanto, melhorar o poder Judiciário no país. Um Poder Judiciário independente, altivo e eficiente é condição básica para uma verdadeira democracia. Como um órgão novo, o CNJ teve a ânsia de decidir tudo, de chamar tudo para si, quando muitas coisas podiam e deviam ser examinadas originariamente por órgãos que existem previstos na Constituição Federal. Como, por exemplo, questões que são afetas ao Conselho Superior da Justiça Federal, ao Conselho Superior da Justiça do Trabalho, ou às Corregedorias dos Tribunais de Justiça. Acho que a atuação do CNJ deveria ser supletiva na omissão desses órgãos ou eventual atuação imprópria. Outra coisa que me preocupa é o CNJ resolver decidir matéria que já está sob exame do próprio Poder Judiciário em uma ação judicial. Isso é extremamente preocupante porque significa interferência no Poder Judiciário. Não foi para isso que foi criado o Conselho.

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