Combate à violência

Mulher merece lei específica, pois foi oprimida por anos

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11 de outubro de 2006, 18h13

Em setembro, entrou em vigor a nova lei de combate à violência contra a mulher (Lei 11.340/06), também conhecida como Lei Maria da Penha, com implicações de cunho processual e material. Nela se destacam modificações relevantes.

Por exemplo, ao delito do novo diploma não mais se aplicam as disposições da Lei 9.099/95 dos Juizados Especiais Criminais (art. 41), sujeitos, agora, ao rito ordinário.

Vedou-se a aplicação de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (art. 17). Houve até modificação do artigo 313 do Código de Processo Penal para se autorizar a prisão preventiva dos infratores (art. 42).

No tocante à pena máxima do delito de violência doméstica do artigo 129, parágrafo 9º, do Código Penal, esta foi aumentada de um para três anos de reclusão, fato a revelar maior reprovabilidade da conduta do agente (art. 44).

Além disso, seu artigo 22 trouxe uma série de medidas cautelares que o juiz poderá aplicar de imediato ao agressor, como:

a. suspensão da posse ou restrição do porte de armas;

b. afastamento do local de convivência com a ofendida;

c. proibição de se aproximar da ofendida, seus familiares e testemunhas, fixando-se limite mínimo de distância entre estes e o agressor, bem como de qualquer tipo de contato por qualquer meio de comunicação com estes.

Mas alguém pode perguntar: por que uma lei de proteção às mulheres?

A razão de ser da promulgação de lei específica se deve à longa opressão sofrida pela mulher durante milênios. Não é mais tolerável que, em pleno século XXI, a mulher não seja tratada com dignidade, principalmente no âmbito das relações familiares.

De há muito as mulheres são desrespeitadas e desvalorizadas simplesmente por serem mulheres. Basta lembrarmos a vida da primeira filósofa, Hipácia (c.370-415). De orientação neoplatônica, dedicava-se à matemática e à astronomia, e era influente professora na cidade egípcia de Alexandria. Foi assassinada pelo clérigo-patriarca Cirilo, mais tarde canonizado como São Cirilo. Ele ordenou a uma multidão cristã que a arrastassem para uma igreja, onde seus monges a escoriaram com conchas de ostra até a morte. As mulheres não podiam pensar. (Cf. Simon Blackburn, Dicionário Oxford de Filosofia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 182).

A consciência desse tratamento injusto demorou a se expressar e dependeu do próprio esforço das mulheres.

No ocidente, a primeira pensadora a reconhecer e lutar pelos direitos da mulher foi a inglesa Mary Wollstonecraft (1759-97), cuja obra A Vindication of the Rights of Women (1792) constitui dura crítica à pretensa inferioridade feminina defendida por Rousseau (1712-78) (cf. Dicionário Oxford de Filosofia, cit., p. 412).

Depois dela, somente no século XX, surgiu a obra de maior influência a distinguir a diferença sexual biológica das categorias masculina e feminina impostas socialmente: o clássico estudo sobre a opressão das mulheres Le Deuxième Sexe (1949) (O Segundo Sexo) da filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-86).

Nele, compreende-se que no processo de constituição dos homens como grupo dominante no exercício do poder, as mulheres foram excluídas, tiveram sua liberdade de escolha e de realização restringidas em razão de seu corpo, sendo-lhe reservadas apenas tarefas domésticas e subalternas. Essa situação foi considerada natural pela sociedade. A mulher é vista como socialmente inferior, como objeto e não como pessoa livre (cf. Julian Baggini and Jeremy Stangroom, Great Thinkers A – Z, London, Cotinuum, 2004, pp. 38-40).

Nesse contexto, insere-se a violência na família, conforme elucida Ana Mercês Bahia Bock e outros (Psicologias, São Paulo, Saraiva, 1999, p. 334): “Embora possamos observar hoje profundas transformações na estrutura e dinâmica da família, há ainda a prevalência, em nossa sociedade, de um modelo de família que se caracteriza pela autoridade, e pela repressão da sexualidade, principalmente a feminina. Essa autoridade e repressão aparecem como protetoras dos membros da família. Poderíamos perguntar se essa imagem falseada que se tenta passar realmente cumpre a função de proteção, ou se encobre práticas de violência sobre o uso do corpo da mulher, bem como acaba justificando os castigos físicos na educação dos filhos”.

A questão da superioridade machista é igualmente fator ressaltado no perfil do homem autor de crime passional, modalidade esta raramente praticada pela mulher, conforme estudo de Luiza Nagib Eluf (A Paixão no Banco dos Réus, São Paulo, Saraiva, 2003, p. 198): “Perfil do passional: é homem, geralmente de meia-idade (há poucos jovens que cometeram o delito), é ególatra, ciumento e considera a mulher um ser inferior que lhe deve obediência ao mesmo tempo em que a elegeu o ‘problema’ mais importante de sua vida. Trata-se de pessoa de grande preocupação com sua imagem social e sua respeitabilidade de macho. Emocionalmente é imaturo e descontrolado, presa fácil da ‘idéia fixa’. Assimilou os conceitos da sociedade patriarcal de forma completa e sem crítica”.

Mais recentemente, destaca-se o pensamento da filósofa belga Luce Irigaray cujo livro Je, Tu, Nous: Toward a Culture of Difference (1993) pugna pela criação de uma sociedade e de uma cultura em que se reconheçam, cultivem, acentuem e se respeitem as diferenças entre os sexos de uma forma positiva, com consideração de seus valores intrínsecos e direitos fundamentais decorrentes (cf. Great Thinkers A – Z, cit., pp. 124-127).

Exemplo do desequilíbrio de poder existente entre os sexos é o fato de a mulher ganhar menos que o homem ao exercer o mesmo tipo de trabalho. Porém, a face mais cruel dessa desigualdade está na violência doméstica perpetrada em nome de pretensa superioridade machista.

Para reparar essa injustiça histórica, foram editados diplomas normativos reconhecendo direitos e meios de proteção específicos às mulheres com o objetivo de evitar e coibir abusos, discriminações e violências de gênero no plano internacional.

Dentre outros, destaca-se a Resolução 34/180 de 18 de dezembro de 1979 da ONU, instituindo a Convenção Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher.

Reconheceu-se que, apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 afirmar o princípio da não-discriminação — pelo qual todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos e que cada pessoa pode invocar todos os direitos e todas as liberdades nela proclamados, sem distinção alguma, inclusive de sexo —, infelizmente constata-se que as mulheres continuam sendo objeto de grandes discriminações e maus-tratos, sem terem plenamente reconhecida a importância de sua contribuição para o bem-estar da família e o progresso da sociedade.

Procurou-se despertar a consciência da necessidade de modificação do papel tradicional tanto dos homens como das mulheres na família e na sociedade, com o objetivo de se alcançar uma igualdade real e uma convivência pacífica e respeitosa entre os sexos.

No plano regional, foi editada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará de 1994. Mais uma vez, reafirmou-se o direito básico de toda mulher a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como no privado (art. 3º), o direito a que se respeite sua vida e integridade física, psíquica e moral (art. 4º, 1 e 2), além do direito da mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade e de subordinação (art. 6º).

Por sua vez, a Constituição de 1988, artigo 226, parágrafo 8º, obriga o Estado a criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares.

Dentro dessa perspectiva, o Brasil, para atender inclusive à recomendação da Resolução 52/86 da ONU, de 12 de dezembro de 1997, sobre Prevenção ao Crime e Medidas da Justiça Criminal para Eliminar a Violência contra as Mulheres, criou o tipo de violência doméstica acrescentando o parágrafo 9º ao artigo 129 do Código Penal (Lei 10.886/04), que, repita-se, teve sua pena máxima aumentada de um para três anos pela nova lei.

Além disso, segundo dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, a violência doméstica atinge entre 25 e 50% das mulheres da América Latina (cf. site Portal da Violência contra a Mulher).

É por tudo isso, e considerando o elevado número de casos de violência doméstica no Brasil, que se justifica a promulgação da Lei 11.340/06, que merece toda a atenção e esforço da sociedade e do Estado, principalmente da comunidade jurídica, para a sua efetivação e aperfeiçoamento.

Só assim, com a responsabilização dos agressores, observada a cláusula do due process of law, será realizada a verdadeira Justiça.

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