Caos de fé

Não pode haver feriado religioso em um Estado laico

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5 de outubro de 2006, 7h00

Estamos perto de mais um dos muitos feriados inconstitucionais existentes em nosso país: o feriado de 12 de outubro. Quando me questionado a respeito do tema, não posso deitar, in albis, minha opinião, especialmente por amor ao direito, à justiça e à verdade.

Estou certo de que as presentes manifestações não se inclinam nem muito menos repudiam uma ou outra religião, mas, sim, defendem os ditames constitucionais, a paz pública, a democracia e a organização social. Outrossim, manifesto-me no apelo e em cumprimento ao ofício que me foi outorgado pelo direito e pela Constituição, no afã de defender, sem limites e fronteiras, aquilo que o causídico acredita ser justo. Quando os governos violentam o direito, não terei receio de denunciá-los, mesmo que perseguições decorram dessa postura e ainda que os pusilânimes me critiquem pelas acusações.

Nenhum país é livre sem advogados livres. Minha liberdade de opinião e a independência de julgamento são os maiores valores do exercício profissional, para assim não precisar submeter-me à força dos poderosos ou desprezar os fracos e insuficientes.

Preâmbulo da Constituição Federal de 1988 — “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

Incontestável é o entendimento de que o preâmbulo constitucional é dotado de valor normativo, o que nos autoriza afirmar que “Deus é constitucional”, ou seja, nossa Constituição acredita na existência de Deus. Embora a carta maior crie, em seu preâmbulo, o Estado teísta, estabelece o Estado laico ou leigo em seu artigo 19, inciso I, vetando ao Estado estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público, garantindo assim a liberdade religiosa em nosso país.

Vale à pena relembrar o capítulo histórico da política nacional e paulistana, quando, em 1986, o então senador Fernando Henrique Cardoso disputava as eleições para o cargo de prefeito da cidade de São Paulo contra o candidato Jânio da Silva Quadros, eleito na indigitada oportunidade.

Dizem os “especialistas” que FHC teria perdido as eleições por pronunciar, em entrevista realizada pelo jornalista Boris Casoy, que não acreditava em Deus. O fato de ser ateu teria causado repúdio em seus eleitores, que teriam mudado seus votos na última hora. A certeza de que FHC e seus assessores iriam conquistar a prefeitura era tamanha que, após alguns pedidos, FHC cometeu seu segundo erro fatal, sentou-se na cadeira de prefeito, para lá tirar algumas fotos antes do resultado eleitoral.

Ao abrirem-se as urnas, surpresa para FHC: Jânio Quadros era o novo prefeito de São Paulo e, ao ser empossado, Jânio limpou a cadeira de prefeito, na qual FHC havia sentado, borrifando sobre ela algum tipo de produto de limpeza, ficando esse fato registrado nos anais da história brasileira.

Dois anos após perder as eleições para a prefeitura de São Paulo, o então senador FHC reuniu-se em Assembléia Geral Constituinte, junto com outros membros do Poder Constituinte, para a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Em votação, discutia-se a inclusão ou não do substantivo Deus no Preâmbulo Constitucional, incidindo, assim, no Estado teísta.

Apenas um constituinte votou contra a inclusão. Para a surpresa de todos, não foi o senador FHC quem votou contra, ou seja, o comentado senador votou a favor de Deus. Teria FHC contrariado, com isso, seus princípios ateístas? Um senador e repentista baiano, intrigado com o fato, tomou o microfone da assembléia constituinte e questionou: “FHC, você não era ateu? O que aconteceu? Se converteu? Ou será que se arrependeu?”.

A separação entre a Igreja e o Estado decorre diretamente do direito à liberdade religiosa, princípio fundamental de toda política republicana, reconhecido pela maioria das constituições dos Estados democráticos e por vários tratados internacionais. É perfeita a conclusão do constitucionalista português Jorge Miranda, ao afirmar que a liberdade religiosa está “no cerne da problemática dos direitos humanos fundamentais, e não existe plena liberdade cultural nem plena liberdade política sem essa liberdade pública, ou direito fundamental”. Servem-nos de exemplo as inúmeras passagens históricas, onde a intolerância entre religiões abrolharam teratológicas guerras cíveis de proporções irreparáveis e repercussão mundial.

O jurista Rui Barbosa já dizia que, “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa”.

A atual Constituição proíbe, em seu artigo 19, a oficialidade do culto religioso e consagra o Estado leigo, mas a questão é constantemente discutida em nosso país. Recentemente, em Belém, o projeto da construção de uma imagem da Virgem de Nazaré, com 27 metros de altura, instaurou grandes discussões a respeito da constitucionalidade da obra, tendo em vista que a imagem serviria apenas para o culto religioso dos católicos e contra-argumentado pelo responsável do projeto, que traria benefícios à região dada a atração turística.

Há também, quem, a favor da obra defendeu que subvencionar significa “adotar ou assumir uma determinada religião, aliando-se à mesma, ou ficando dependente dela, comprometendo-se com sua pregação, atuação ou catequese”. Aponta, ainda em sua defesa, que várias obras semelhantes vêm sendo subvencionadas pelo poder público.

Ao bem da verdade, isso, realmente, ocorre em todo o país, e data maxima vênia, sou obrigado a discordar do advogado, certo de que suas afirmações só provam que a norma soberana não tem sido cumprida, desrespeitando a Constituição explicitamente e de que a religião católica ainda é privilegiada pelos governantes.

Malgrado seja esta a minha tese, alguns acontecimentos, como a reforma de igrejas coloniais, não confrontam a Constituição por tratarem de prédios históricos. A reforma constitui obrigação dos poderes públicos prevista no artigo 23 do texto constitucional. Mas, a oficialização de feriados religiosos, assim como a construção de imagens de santos, são, flagrantemente inconstitucionais. Além disso, em diversas câmaras, assembléias e outros prédios públicos são afixados crucifixos, o que tem causado grandes aborrecimentos a políticos que professam outras religiões.

A Lei 6.802/80, que cria o feriado de 12 de outubro pela veneração a Nossa Senhora Aparecida, dogma este bastante específico, tem, como texto: “culto público e oficial à Nossa Senhora Aparecida”. Não poderá haver um culto religioso oficial em um Estado leigo, sendo esse texto flagrantemente inconstitucional, por não ter sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

Apesar de a referenciada lei ser inconstitucional e relacionar-se a culto bastante específico, possui caráter histórico e origina-se de religião que possui um grande número de seguidores (cerca de um terço da população), sendo sua revogação perigosa, podendo causar conflitos entre seus membros e o Estado, constituindo um assombroso pesadelo para aqueles que se preocupam com a interferência da Igreja no Estado democrático.

Data maxima vênia às religiões, respectivos dogmas e membros, não se pode permitir que seu poder e seus ideais interfiram na administração pública, uma vez que a nação viraria um caos. Se erguermos uma estátua da imagem da Virgem de Nazaré com o dinheiro dos cofres públicos, teremos de construir a imagem de Iemanjá e a imagem de Buda e de muitos outros santos e deuses dos vários cultos religiosos existentes, assim como teriam de ser oficializados vários feriados em virtude de comemorações religiosas. Imaginemos se fosse oficializado o feriado muçulmano Ramadham: 30 dias de feriado seria inviável e impraticável para a economia do país.

De sorte que não é aceitável a interferência ou a influência, pelas várias religiões existentes no país. Não é admissível que o poder público interfira em algum culto religioso ou subvencione em nenhuma hipótese, evitando, assim, confundir Estado democrático com culto religioso.

A justificativa de subvencionar, pelos cofres públicos, cultos religiosos, como a construção da imagem da santa, por se tratar de chamariz turístico para a cidade pode parecer economicamente viável, mas ameaçador, podendo dar motivo a um conflito social de proporções irreparáveis.

O poder político de partidos simpatizantes com determinados cultos religiosos vem aumentando gradativamente, o que pode ocasionar conflitos violentos. Assim, a segurança política só estará restabelecida quando pudermos confiar na prática dos princípios básicos da dogmática das próprias religiões: tolerância, amor e paz.

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