Agrado ao juiz

Homem público não tem de aceitar dádivas ou esmolas

Autor

  • Elpídio Donizetti

    é jurista professor e advogado. Membro da Comissão de Juristas do Senado Federal responsável pela elaboração do anteprojeto do novo CPC. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/MG. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino. Pós-Doutor em Direito pela Universitá degli Studi di Messina. Fundador do Instituto Elpídio Donizetti e do Elpídio Donizetti Advogados.

22 de novembro de 2006, 17h29

“Os quatro dias do XIX Congresso Brasileiro de Magistrados, organizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em Curitiba, foram patrocinados por grandes empresas privadas e de capital misto, que pagaram aproximadamente a metade dos custos, orçados no total em R$ 1,5 milhão”, informou o jornal Folha de S. Paulo de 18 de novembro.

Boa parte da conta, que inclui jantares, coquetéis, esportes, city tour, transporte e um show com Jorge Ben Jor, foi paga pelo Banco do Brasil, Bradesco, Nestlé, Volkswagen, Companhia Vale do Rio Doce e Itaipu Binacional.

O mesmo jornal traz outra informação: “Febraban pagou viagem de 47 magistrados a Comandatuba”. De acordo com a reportagem, no último “feriado prolongado” de 7 de setembro, 16 ministros do STJ e 31 desembargadores de sete estados, com suas respectivas famílias, hospedaram-se no luxuoso resort Transamérica da Ilha de Comandatuba a convite da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).

Os magistrados e seus familiares chegaram a Comandatuba em um Air Bus fretado da TAM que saiu de São Paulo e fez escala em Brasília.

Aos magistrados juntaram-se a 60 autoridades, entre elas, os caciques do sistema financeiro nacional, Pedro Moreira Salle, presidente do Unibanco; o presidente do Bradesco e da Febraban, Marcio Cypriano; e o presidente do Itaú, Roberto Setúbal. Estes, obviamente, em seus respectivos jatos.

O encontro — o terceiro realizado com idêntica finalidade nos últimos três anos — foi motivado pela necessidade de se discutir detalhes do crédito do sistema bancário brasileiro. As palestras sobre o intrincado tema começavam às 16 horas e terminavam por volta de 20h30, com jantar e algum show. O restante do tempo era livre. Tudo de acordo com a referida reportagem. Deus que me livre de qualquer afirmação, ainda que verdadeira. A conta desse evento ficou em R$ 182 mil e, é claro, foi paga pela federação anfitriã.

Não se discute a importância da realização de congressos, seminários, encontros ou coisa que o valha para debater temas que permeiam a atividade judicante.

Aliás, não é por outra razão que a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages) tem insistido com os tribunais para que prevejam em seus orçamentos verbas destinadas ao aperfeiçoamento dos juízes.

Como registrado pela entidade dos magistrados estaduais, o treinamento deve priorizar os juízes de primeiro grau, cujo número chega a quase 15 mil e representam 97% do contingente dos magistrados brasileiros. Afinal, são eles os primeiros a terem contato com os fatos controvertidos, muitos sequer contemplados na jurisprudência dos tribunais e, a despeito disso, não contam com estrutura humana e material adequada, muito menos com assessoria para julgar as demandas, que são despejadas aos borbotões em suas mesas de trabalho.

O que se questiona, inclusive no contexto da citada matéria, publicada em página inteira num dos mais respeitados jornais do país, é a conseqüência processual e o conteúdo ético de patrocínios feitos por partes em processos judiciais.

Justificadamente censuramos o caixa dois utilizado nas eleições. Criticamos a promiscuidade entre parlamentares e empresas doadoras de recursos destinados a campanhas políticas. Nesses tempos de mensalão, defendemos a instituição de um sistema mais eficaz, que contemple penas mais severas para julgamento de políticos e outros agentes públicos que roubam o país, que traem a nação. Que se estenda, afirmamos em uníssono, a vedação da prática do nepotismo ao Executivo e Legislativo.

Pois nesses tempos de liberdade, o pau que bate em Chico, bate em Francisco. A mesma imprensa, exatamente por não ter os olhos vendados, tem uma privilegiada visão dos diversos cenários dos agentes públicos: enxerga o deputado relatando projetos de interesse de seus doadores, o juiz se deleitando em show de Jorge Ben Jor, pago com dinheiro de parte em processo judicial, flagra ministros e desembargadores recebendo curso de treinamento patrocinado por banqueiros.

Antevejo que essa minha fala melindrará meio mundo — para ser otimista — do meu universo magistrático. Mas alguém tem de pôr o dedo na ferida. Olha! Desde já peço perdão por qualquer ofensa que não desferi, por uma honra que não vilipendiei, pelos jantares que não comi e até pelas palestras que não ouvi. Não me processem. Não me punam, pelo amor de Deus. Eu sou inocente!

Os protagonistas dos anunciados eventos agem como crianças traquinas, cujas manifestações denunciam as artes.

O assessor especial da presidência da AMB e juiz trabalhista, Roberto Siegmann, “afirmou no dia 17 de novembro que não existe conflito de interesses no patrocínio dado por empresas privadas e de capital misto ao congresso de magistrados”.

O ministro Rapahel de Barros Monteiro, presidente do STJ, que segundo a matéria referenciada teria comparecido a Comandatuba acompanhado da mulher e uma filha, “à época, parabenizou os organizadores e disse que o patrocínio não influía na imparcialidade dos juízes”.

Ora, se não há conflito de interesses, se não há influência em julgamentos, para que justificar? É melhor comer calado.

Chega de churumelas. Seja sob o aspecto técnico-jurídico, seja sob o ponto de vista ético, os argumentos não convencem. Explicam, mas não justificam.

A Constituição Federal é taxativa. A pessoa só pode ser atingida em seus bens — vida, liberdade, patrimônio, etc. — mediante julgamento com observância do devido processo legal. Afora a competência do órgão julgador, a observância da isonomia e da amplitude do direito de ação e defesa, o devido processo legal pressupõe a imparcialidade do juiz. A parcialidade, sabemos todos nós, contamina o processo, acarretando a nulidade dos atos processuais.

A parcialidade pode decorrer de circunstâncias objetivas relacionadas no artigo 134 do CPC, que configuram o que se denomina impedimento.

Pode também se fundar em aspectos subjetivos envolvendo relações do juiz com as partes e, nesse caso, tem-se a suspeição. A teor do disposto no artigo 135 do CPC, o juiz que recebe dádivas de uma das partes, antes ou depois de iniciado o processo, é suspeito para julgar qualquer demanda que se relacione com a parte doadora.

Dádiva, de acordo os dicionários, é aquilo que se dá, é o presente, a oferta, o donativo, o ingresso, o jantar, o patrocínio.

Para nós julgadores, acostumados ao raciocínio silogístico, postas as premissas, a conclusão é imediata: o juiz que recebe dádiva é suspeito.

Aplicada a lei — e legem habemus, não nos esqueçamos —, estaríamos impedidos de julgar os milhares e milhares de processos envolvendo as instituições financeiras. Em razão dos juros escorchantes, que chegam a 12% ao mês, 30% das demandas judiciais têm como partes os bancos. Diariamente, legiões de consumidores batem às portas do Judiciário em busca de revisão de contratos de empréstimo porque não agüentam pagar os juros e encargos que lhe são cobrados.

Se os juízes presentes ao Congresso de Magistrados em Curitiba e os ministros e desembargadores que se hospedaram no resort de Comandatuba, pelo fato de terem recebido dádivas — leia-se: bilhete aéreo, hospedagem, jantares, bilhetes para show, etc — são suspeitos, é de se indagar: a quem caberá o julgamento dessa grande massa de demandas? Seriam os juízes americanos ou os chineses?

É claro que não. A jurisdição é imparcial e indeclinável. O povo de um dado território, onde se tem sentimento de nação e governo politicamente organizado, tem a garantia de um julgamento justo pelos seus compatriotas. É por essas e outras que, sob o aspecto jurídico, do juiz exige-se a mais absoluta lisura e discrição.

Resta indagar se as condutas mencionadas encontram amparo na ética judiciária, vista nesta modesta manifestação como o dever imposto ao juiz de mostrar, de parecer que efetivamente é imparcial. Falar, explicar, não é suficiente para configurar a imparcialidade, requisito fundamental para se alcançar uma Justiça justa.

Qualquer resposta constitui desperdício de palavras. Basta retirar a peneira que não mais consegue tapar o sol que insiste em tornar visíveis às ações dos homens públicos. Basta uma olhadela para o nosso umbigo, fazendo-lhe apenas uma pergunta: Como você se sentiria sendo julgado por um juiz que viaja, come, assiste a show e, nas horas vagas, ainda recebe treinamento ministrado pelo adversário?

O juiz deve ganhar salário suficiente para garantir-lhe um padrão de vida condizente com a importância — para a população, frise-se — do seu cargo. O juiz é um homem público. Ao homem público não se agradece porque ele não faz favor, apenas cumpre o seu dever. O homem público não aceita dádivas ou esmolas porque o povo o paga para desempenhar suas funções. Essas foram às palavras de ordem nas greves que lideramos.

Caesaris mulier non solo debet esse honesta, se etiam debet videri. Em português, tudo fica mais claro: “A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita”.

Autores

  • Brave

    é desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, professor de Direito Processual Civil e presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages).

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