Personae non gratae

Jornal e advogado debatem lista de inimigos da advocacia

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14 de novembro de 2006, 15h27

A lista de inimigos da OAB-SP continua provocando manifestações de amor e ódio na sociedade. Dessa vez, foi o jornal O Estado de S. Paulo que publicou um editorial criticando a atitude da seccional paulista. Do outro lado, o conselheiro federal da OAB, advogado Alberto Zacharias Toron, enviou carta ao jornal rebatendo as críticas.

O Estado de S. Paulo classificou a lista de chantagem e caracterizou-a como inconstitucional. “Ao negar registro profissional a quem eventualmente desagradar a algum advogado, a OAB está exorbitando de suas funções.”

Em resposta, o advogado Toron considerou que o texto do jornal “parte de premissas falsas para chegar a uma conclusão errada”. Para ele, “quando a OAB reclama do respeito do advogado e dos direitos que lhe foram conferidos, está em jogo a própria eficiência da Justiça”.

Veja o editorial do jornal e a resposta do advogado

Editorial de O Estado de S. Paulo

Além de recorrer a métodos censuráveis para alargar o saturado mercado de trabalho para os bacharéis em direito, tentando obrigar cidadãos e empresas a contratar serviços legais de que não necessitam, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) está agora apelando para expedientes ainda mais condenáveis.

A pretexto de combater autoridades que violam as “prerrogativas” da corporação, a seccional paulista criou há dois anos uma “lista negra” que já tem mais de 180 nomes. Em sua maioria, são juízes, desembargadores, promotores e procuradores. Mas a lista também inclui jornalistas, delegados, policiais, serventuários judiciais, gerentes de banco, vereadores da capital e do interior e até uma Câmara Municipal completa – a da cidade de Mogi-Guaçu.

Essas pessoas foram incluídas na “lista negra” da OAB-SP por se recusarem a receber advogados ou por não terem acolhido reivindicações por eles encaminhadas. A entidade argumenta que os incluídos na lista praticaram “atos incompatíveis com o exercício da advocacia”. Na prática, o que a corporação quer é retaliar quem não cede a pressões de seus integrantes, negando-lhes o registro profissional para que possam advogar, quando se aposentarem das funções atuais.

Além da seccional paulista, a seccional da OAB do Rio de Janeiro adotou a mesma estratégia em setembro e os sites jornalísticos especializados no setor, como o Consultor Jurídico, informam que outras seccionais estão sendo estimuladas a promover “campanha de caça” a seus inimigos. “Um homem que nunca respeitou o advogado não pode depois participar dos quadros da advocacia. O cadastro não tem nada de ilegal. A autoridade (um juiz ou um promotor) sofre um processo interno na Ordem, há um julgamento público pelo conselho de prerrogativas em que a autoridade pode se manifestar e desse julgamento ainda cabe recurso para o conselho da seccional. Só então, com o processo transitado em julgado, é que o nome entra para o rol das autoridades que ofenderam a advocacia”, diz o advogado Mário de Oliveira Filho, o mentor dessa estratégia.

Ao negar registro profissional a quem eventualmente desagradou a algum advogado, a OAB está exorbitando de suas funções, procurando intimidar funcionários de empresas particulares e servidores dos poderes públicos, que têm regras e procedimentos para cumprir e não podem em hipótese alguma acolher pretensões absurdas de determinados bacharéis. A criação do cadastro e a negação de inscrição a quem nele estiver incluído configuram uma acintosa forma de chantagem que fere as liberdades públicas e o próprio Estado de Direito. Em outras palavras, a medida é inconstitucional, permitindo a quem for atingido impetrar ações de indenização por dano moral contra a OAB, como lembram os diretores da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

Em contundentes notas de protesto divulgadas esta semana, a Ajufe, a AMB, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), a Associação Nacional dos Procuradores da República e a Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo afirmam que o julgamento de denúncias de violações de prerrogativas de advogados cometidas por juízes e promotores é de responsabilidade das corregedorias do Judiciário e do Ministério Público. Além disso, dizem essas entidades, a OAB já tem dois representantes no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi criado para promover o controle externo do Judiciário e do Ministério Público. “A previsão do cadastro confere às seccionais da OAB a oportunidade de julgar juízes por atos praticados no exercício de suas funções, em detrimento das atribuições conferidas às corregedorias e ao CNJ, competência que não lhes foi outorgada pela Constituição”, conclui a nota da Ajufe. “A entidade (OAB-SP) recupera práticas hediondas (…) do antigo Dops, desrespeitando a honra e a intimidade dos listados sem qualquer fundamento legal”, diz o juiz Marcos Fava, diretor da Anamatra.

No passado, lembram juízes e procuradores, a OAB se destacou por defender a democracia e o Estado de Direito. Hoje, a entidade confunde a defesa de suas prerrogativas com a reivindicação de pretensões absurdas e cartoriais.

Veja a carta de Alberto Toron

O jornal O Estado de S. Paulo, na edição de domingo (12/11), na página A3, veiculou um editorial intitulado “A OAB ameaça seus ‘inimigos’”, no qual critica a denominada lista negra integrada por autoridades que se recusaram “a receber advogados ou por não terem acolhido reivindicações por eles encaminhadas”. Ademais, o editorial observou que, “ao negar registro profissional a quem eventualmente desagradou a algum advogado, a OAB está exorbitando de suas funções, procurando intimidar funcionários de empresas particulares e servidores dos poderes públicos, que têm regras e procedimentos a cumprir e não podem em hipótese alguma acolher pretensões absurdas de determinados bacharéis”.

O editorial, pesa dizê-lo, parte de premissas fáticas falsas para chegar a uma conclusão errada. Não é certo, é inverídico, que qualquer desagrado a um advogado ou mesmo recusas a pretensões absurdas possam ensejar a colocação de uma autoridade pública na assim chamada lista negra da OAB. Somente autoridades que abusaram do poder, desrespeitando direitos especificamente assegurados aos advogados para bem defender o cidadão, é que, após o devido processo legal, com amplo direito de defesa, poderão ter seu nome lançado em lista para avaliar o preenchimento dos requisitos para futura inscrição na OAB.

Assim, todas as autoridades que ensejaram, nos termos da Lei 8.906/94, a realização de um desagravo em favor do advogado ofendido no exercício de sua atividade (artigo 7º, inciso XVII) é que propiciará a colocação do agente público violador das prerrogativas profissionais na lista da OAB. Se a OAB pode conceder desagravo é porque, na sua esfera administrativa, julga os atos abusivos praticados por agentes públicos. Se estes têm os seus atos avaliados por suas corregedorias, isso se faz com vistas a outras providências. Uma coisa não exclui a outra. Aliás, a atuação correcional não inibe e nem prejudica a da OAB, legalmente prevista.

O cadastro criado de fato não é simpático. Basta, porém, examinar o porquê de sua adoção para se perceber que ele se apresenta como um instrumento de defesa da classe e dos direitos que, em prol do cidadão, asseguram a defesa do constituinte. Não se trata aqui de chantagem, mas de uma advertência clara para o fato de que abusos e desmandos não podem ser tolerados. Ou será que o juiz que não recebe o advogado, deixando de cumprir um dever de ofício, para o despacho de uma petição ou a entrega de um memorial deve merecer o aplauso da sociedade?

O cidadão que por meio de seu advogado ficou privado de expor pessoalmente os fatos deve ficar alegre com os mal-bofes do juiz? E que dizer do ressurgimento dos inquéritos secretos à moda dos procedimentos da Santa Inquisição, nos quais o advogado, mesmo munido de procuração e com o cliente preso, não consegue examinar os autos? Isso para não falar nos delegados de Polícia que destratam o advogado impedindo-o de falar para corrigir falhas e desvios ou dos parlamentares que nas CPIs enxovalham a honra dos advogados que assistem investigados, que se pode dizer?

Este jornal, que de forma tão expressiva (e orgulhosa) para todos os brasileiros lutou pelo restabelecimento do Estado de Direito, aliás, seguindo a luta de seus maiores contra o autoritarismo do Estado Novo, há de ter presente, como bem advertiu o ministro Celso de Mello, que “o respeito às prerrogativas profissionais do advogado constitui uma garantia da própria sociedade e das pessoas em geral, porque o advogado, (…), desempenha papel essencial na proteção e defesa dos direitos e garantias fundamentais” (Prefácio no livro Prerrogativas Profissionais do Advogado, ed. OAB, 2006, p. 11).

Portanto, quando a OAB reclama do respeito ao advogado e aos direitos que lhe foram conferidos não para gáudio pessoal ou como privilégio de classe, mas para o bom exercício da profissão, está em jogo a própria eficiência da Justiça. Daí a atual presidente da OAB-SP, Márcia Melaré, em nota publicada pela Consultor Jurídico, ter afirmado que “as prerrogativas dos advogados não são privilégios de uma classe, mas um conjunto de normas estabelecidas em lei, destinadas a garantir a liberdade de defesa e os direitos dos cidadãos”. Calamandrei, há mais de meio século, chamava atenção para o fato de que os personagens que atuam na Justiça funcionam como um sistema de vasos comunicantes: quando o nível de um baixa, é inevitável que o mesmo ocorra com o outro.

Quando o desdém de quem feriu garantias asseguradas aos que têm a incumbência de falar pelos cidadãos nos tribunais, repartições públicas ou mesmo empresas privadas chega ao ponto de ignorar desagravos (às vezes concedidos sucessivamente contra a mesma autoridade) só resta à OAB adotar mecanismos de defesa. O que soa extravagante é perceber que os que ensejaram a realização de desagravos, medida concedida com toda a cautela e com amplo direito de defesa da autoridade reclamada, venham agora reclamar da exorbitância ou chantagem. Deveriam pensar duas vezes antes de espezinhar as prerrogativas profissionais no que é exorbitar.

Mais grave é a afirmação de que se quer intimidar o agente público que exerce suas funções. Absolutamente não! Somente quem violou os direitos assegurados em lei para o correto exercício da advocacia é que pode, garantido o direito de defesa, vir a integrar a condição de persona non grata para a OAB. O agente público ou privado que age corretamente, ainda que desagrade quem quer que seja, nunca terá seu nome em qualquer cadastro, a não ser para o devido elogio.

Se erros forem cometidos, a Ordem está pronta a corrigi-los. Mais: está disposta a dialogar com todas as entidades de classe para encaminhar as dificuldades que enfrentamos de parte a parte e conquistarmos um patamar mais eficaz, digno e humano para a nossa Justiça. Todavia, não toleramos mais ouvidos moucos em relação às arbitrariedades e desmandos praticados contra o primo pobre da justiça, o advogado. Quem nos tempos da ditadura ficou calado e agora se lembrou das praticas do antigo Dops deveria olhar melhor à sua volta para não confundir a defesa de direitos com o acobertamento da prepotência.

Alberto Zacharias Toron

Conselheiro federal da OAB, presidente interino da Comissão Nacional de Prerrogativas da OAB

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