Limite da liberdade

Juiz condena Emir Sader por fazer críticas a Bornhausen

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2 de novembro de 2006, 12h00

“A livre manifestação de pensamento é essencial, mas tem limite”. Com este pensamento, o juiz Rodrigo César Muller Valente, da 22ª Vara Criminal de São Paulo, condenou o sociólogo e professor Emir Sader a cumprir um ano de prisão em regime aberto, além da perda da função pública, por calúnia.

A sentença é resultado de processo movido pelo senador Jorge Bornhausen (PFL-SC). O senador não gostou do artigo “Ódio de classe da burguesia brasileira” de autoria de Emir Sader, publicado no site Carta Maior, no dia 28 de agosto de 2005. A informação é do site Última Instância.

No texto, o sociólogo criticava declarações de Bornhausen feitas a um grupo de empresários paulistas. “A gente vai se ver livre desta raça por, pelo menos, 30 anos”, dizia o senador. Sader considerou as declarações discriminatórias e chamou o senador de racista.

A pena do sociólogo foi convertida em prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, pelo mesmo prazo de um ano, por previsão do Código Penal por ausência de antecedentes e boa conduta social.

De acordo com a decisão, Sader teria se aproveitado “da condição de professor de universidade pública para praticar o crime”, e teria violado seu “dever para com a administração pública, segundo os preceitos dos artigos 3º e 241, XIV, da Lei 10.261/68”. Por essa razão, o juiz aplicou ao sociólogo, como efeito secundário, a perda do cargo como professor da Uerj.

A sentença também considerou que, quando Sader chamou o senador de racista, teria cometido “conduta gravíssima”, pois ele “jamais poderia se valer de um meio de comunicação de grande alcance na universidade em que atua para divulgar ilícito penal”.

Palavra do sociólogo

Emir Sader afirmou que, apesar de ainda não ter sido intimado da decisão, deverá recorrer por considerá-la exorbitante. “Não tive intenção de difamá-lo, caluniá-lo e injuriá-lo, simplesmente expressei a indignação das pessoas que se sentiram humilhadas e insultadas com as declarações dele”, afirmou o professor.

Segundo Sader, na audiência em que esteve presente, foi perguntado se teve intenção de difamar, injuriar ou caluniar Borhausen, e ele negou. O sociólogo comentou também a pena de cargo público. “Parece que entenderam que eu teria violado a dignidade da profissão”, concluiu.

Acusação do senador

O advogado do senador, Rafael Bornhausen, considerou a condenação “proporcional ao tamanho da ofensa praticada”. Para ele, as afirmações de Sader tiveram ampla divulgação e a pena levou esse fator em consideração.

Segundo Rafael Bornhansen, em depoimento perante à Justiça, o sociólogo teria afirmado que o senador merecia ser processado por discriminação, o que configuraria a acusação de que o parlamentar é racista. O advogado mencionou ainda que houve uma representação contra o Jorge Bornhansen, por suposto crime de racismo, que foi arquivada pelo Procurador-Geral da República.

Leia a íntegra da decisão

Processo 1653/05

Vistos etc.

Jorge Konder Bornhausen propôs queixa-crime contra Emir Sader, atribuindo-lhe a prática dos crimes previstos nos artigos 20, 21 e 22 da Lei n° 5.250/67.

A ação penal privada foi regularmente processada, com a citação e intimação do querelado, que apresentou defesa preliminar de fls. 124/126, postulando rejeição da queixa-crime por falta de condição de procedibilidade, argumentando também que como cientista político exerceu seu direito de crítica, em liberdade de expressão, e formulou exceção da verdade, nos termos do § 2° do artigo 20 da Lei n° 5.250/67.

O Ministério Público manifestou-se pela rejeição liminar da queixa-crime e inadequação da exceção da verdade apresentada.

Recebida a queixa-crime e determinado comparecimento do querelado perante Juízo deprecado, para efeitos do artigo 45, incisos I e III, da Lei n° 5.250/67 concomitantemente à rejeição da exceção da verdade, conforme r. decisão de fls. 131/140, da qual o querelado interpôs recurso em sentido estrito, processado por instrumento e remetido ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em 13 de setembro de 2006.

O querelado foi citado no Foro de seu domicílio (f. 152 verso) e interrogado perante o V. Juízo da 11ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro (fls. 178/9).

Em audiência de instrução, ausente o querelado, foi declarada revelia nos termos do artigo 367 do Código de Processo Penal, com preclusão da prova de defesa e aberto o prazo do artigo 45, IV, da Lei n° 5.250/67.

As partes apresentaram memoriais de alegações finais e o Ministério Público manifestou-se em reiteração ao primeiro parecer.

Este o relatório.

Passo a decidir.

O Excelentíssimo Senhor Jorge Kinder Bornhausen, Senador da República pelo Estado de Santa Catarina, propôs queixa-crime contra Emir Sader, Coordenador do Laboratório de Políticas Públicas do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Rio de Janeiro, baseado em publicação de 28 de agosto de 2005, no sítio eletrônico “Carta Maior — Agência de Notícias, em que o querelado fez afirmações ofensivas à sua honra, reputação, decoro e dignidade, além de imputar-lhe prática de crime.


Do aludido texto, copiado às fls. 15 e seguintes, depreende-se que o querelado atribuiu ao querelante a seguinte frase: “A gente vai se ver livre desta raça por pelo menos trinta anos”, e no mesmo contexto imputou-lhe discriminação aos “negros, pobres, sujos e brutos”, intitulando-o de fascista, pessoa repulsiva da burguesia brasileira, direitista, adepto das ditaduras militares, racista, repulsivo, odioso, pessoa abjeta, conivente com a miséria do país mais injusto do mundo, roubador, explorador e assassino de trabalhadores, opressor, terminando por dizê-lo odiado pela esquerda, e sob seu ponto de vista, odiado pelo povo brasileiro.

Inegável, pois, que o artigo de autoria do querelado, conteve ofensa à dignidade e decoro do querelante, incidindo no crime capitulado no artigo 22 da Lei 5.250/67, que não requer a existência de dolo específico, mas a mera intenção de ofender honra alheia, o “animus injuriandi ou infamandi”, e cujo bem juridicamente tutelado é honorabilidade e a respeitabilidade pessoal. “A injúria é a ofensa à dignidade ou decoro de outrem. ‘Na sua essência, é a injúria uma manifestação de desrespeito e desprezo, um juízo de valor depreciativo capaz de ofender a honra da vítima no seu aspecto subjetivo’ ” (Aníbal Bruno, Crimes contra a pessoa, p. 315, in Mirabete, J.F., Manual de Direito Penal, 8.3.1)

A injúria não pressupõe imputação de fato determinado ao ofendido, como na calúnia e na difamação, bastando para o ilícito penal a manifestação de um conceito depreciativo à pessoa, ou mesmo imputação de fatos vagos desabonadores, tal como na hipótese desta ação penal.

Ou seja, desde que comprovasse a autoria e a dita conotação racista da afirmação imputada ao querelante — “a gente vai se ver livre desta raça por pelo menos trinta anos” —, caberia ao réu, para verdadeiramente expressar sua indignação, postular as explicações cabíveis ou direito de resposta, estritamente pelas vias legais, mas jamais multiplicar adjetivos para afrontar pessoa contra a qual nada pôde atestar.

E não cabe o argumento de que o artigo publicado, evidentemente ofensivo à moral do querelante, seria mera manifestação de repúdio à anterior afirmação do próprio querelante; não se deve negar o caminho legal para apurar autoria e responsabilidade pelo suposto intenso racista, como substitutivo da “resposta” adversa à reputação do querelante.

A exclusão do elemento subjetivo do tipo somente resultaria do “animus jocandi”, ou seja, a mera vontade de caçoar, quando a vontade do ofensor se revelasse absolutamente alheia às conseqüências do ato, ou do “animus narrandi”, o relato puro e simples de fato, sem qualquer juízo de valor; situações absolutamente alheias às assertivas aqui analisadas, já que não se fala de fato específico, mas de juízo de valor. Tanto na liberdade de crítica, como no dever de informar ou de emitir seu parecer acerca de fato determinado, os motivos apontados pelo autor da injúria são irrelevantes, eis que a tipicidade não considera justificativas para a ofensa à objetividade jurídica tutelada pela norma penal.

Como já constou, injúria não pressupõe imputação de fato, bastando mero juízo de valor contrário à honra do ofendido. Aliás, não cabe dizer-se mero “crítico”, aquele que enaltece seu próprio ódio concluindo a manifestação de injúria com os dizeres:

“Obrigado por realimentar novo povo e na esquerda o ódio à burguesia”. Diga-se por oportuno, que não caberia ao réu equipar-se “ao povo brasileiro”, como se expressou.

A jurisprudência do Estado de São Paulo consolidou-se no sentido de que, para a exclusão do dolo de injúria, como decorrência da livre manifestação de crítica pela imprensa, há que se perquirir o interesse público da declaração ou mero caráter narrativo, sem que incida a conduta em abuso no exercício da livre manifestação do pensamento e informação, conforme disposto no artigo 12 da Lei 5.250/67. Nesse sentido:

“AÇÃO PENAL — Ausência de justa causa — Trancamento — Crime de imprensa — Injúria — Não configuração sequer em tese — Crítica inspirada pelo interesse público — Aventura empresarial atribuída a governador de Estado — Caso da “Paulipetro” — Empreendimento taxado de “delírio megalômano”, “deslavada demagogia” e “acintoso engodo público” em artigo jornalístico — Termos, porém, não isolados, mas inseridos em texto versando tema de interesse nacional — Inteligência dos arts. 22 da Lei 5.250/67 e 43, I, e 648, I, do CPP.” — RT 572/348. “CRIME DE IMPRENSA — Difamação e injúria — Infrações não configuradas — Acusado que reproduz, através de estação radioemissora local, notícia obtida de fonte idônea — Crítica contundente feita a respeito do assunto, mas sem indicação de qualquer pessoa — Inexistência de dolo, embora tenha o querelado agido com culpa e afoiteza — Absolvição decretada — Inteligência dos arts. 21 e 23, II, da Lei 5.250/67” — RT 602/354.


Ao adjetivar um Senador da República de “racista”, esqueceu-se o réu de todos os honrados cidadãos catarinenses que através do exercício democrático do voto o elegeram como legítimo representante em nossa República Federativa.

Trata-se, pois, de conduta gravíssima, que de modo algum haveria de passar despercebida, principalmente porque partiu de alguém que, como profissional vinculado a uma universidade pública, jamais poderia ser valer de um meio de comunicação de grande alcance na universidade em que atua para divulgar ilícito penal.

No mais, quanto às demais capitulações contidas na queixa-crime, pelos motivos acima expostos, não vislumbro concurso material com os crimes de calúnia e difamação, eis que o querelado não atribuiu diretamente ao querelante a prática de fato definido como crime ou fato ofensivo à sua reputação, mas exclusivamente conceito depreciativo à honra, dignidade e decoro. Nestes termos, incontroversa a autoria delitiva e superado o questionamento acerca do elemento subjetivo do tipo penal, resulta a parcial procedência da ação penal, com a condenação do querelado como incurso no artigo 22 da Lei n° 5.250/67.

Passo ao cálculo da pena, atento aos critérios dos artigos 59, 61 e 65 do Código Penal. Em resguardo ao caráter preventivo da pena e como medida de efetiva afirmação da norma penal vigente, a eficácia da pena deve estar diretamente relacionada às circunstâncias e conseqüências do crime, bem assim, às condições pessoais de ofensor e ofendido, segundo o princípio da proporcionalidade, possibilitando a eficácia da punição.

Assim, analisando o caso concreto, resulta que a injúria foi largamente difundida em diversos sítios eletrônicos, alcançando caráter difuso a número indeterminável de pessoa.

Se não bastasse o alcance da prática delitiva. Há de ser considerada como circunstância judicial preponderante a função pública exercida pelo querelante, não só quanto à sua pessoa, mas principalmente pela honorabilidade do cargo de Senador da República, que faz refletir ainda mais o grau de reprovação das ofensas que lhe foram dirigidas.

E quanto às circunstâncias subjetivas do ofensor, praticou o crime na condição de educador vinculado a uma das principais universidades públicas do País, utilizando veículo largamente difundido no meio estudantil, com evidente propósito de macular ao máximo a honra do ofendido.

Por tais circunstâncias judiciais extremamente desfavoráveis, aplico a pena em seu grau máximo, fixando a em um ano de detenção.

O regime inicial de cumprimento de pena será o aberto, pelo disposto no artigo 33, § 2°, “c”, do Código Penal.

Considerada a quantidade de pena aplicada e a primariedade do réu, os motivos e as circunstâncias acima expostas recomendam, como medida de maior efetiva eficácia punitiva, a substituição prevista no artigo 44 do Código Penal, pelo mesmo prazo de duração da pena privativa de liberdade, consistente em prestação de serviços à comunidade ou entidade pública, a ser individualizada em posterior fase de execução.

Do exposto, julgo parcialmente procedente a ação penal, para condenar Emir Sader, qualificado nos autos, como incurso no artigo 22 da Lei n° 5.250/67, à pena de um ano de detenção, em regime inicial aberto, substituída nos termos do artigo 44 do Código Penal por pena restritiva de direitos, consistente em prestação de serviço à comunidade ou entidade pública, pelo mesmo prazo de um ano, em jornadas semanais não inferiores a oito horas, a ser individualizada em posterior fase de execução.

Pelo disposto nos artigos 48 da Lei n° 5.250/67 e 92, inciso I do Código Penal, considerando que o querelante valeu-se da condição de professor de universidade pública deste Estado para praticar o crime, como expressamente fez constar no texto publicado, inequivocamente violou dever para com a Administração Pública, segundo os preceitos dos artigos 3° e 241, XIV, da Lei 10.261/68, motivo pelo qual aplico como efeito secundário da sentença a perda do cargo ou função pública e determino a comunicação ao respectivo órgão público em que estiver lotado o condenado, ao trânsito em julgado.

Ao trânsito em julgado, lance-se o nome do réu no rol dos culpados, oficiando-se nos termos do artigo 15, III, da Constituição Federal.

Condeno o réu ao pagamento das custas processuais, no valor de cem UFESP, nos termos da Lei de Custas Estadual.

P.R.I.C.

São Paulo, 24 de outubro de 2006

Rodrigo César Muller Valente

Juiz de Direito

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