Se a lei ceder...

Se o CNJ pode legislar, Funai e Incra também devem poder

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23 de março de 2006, 18h39

A propósito da recente decisão plenária do Supremo Tribunal Federal sobre a validade constitucional da Resolução 7 do Conselho Nacional de Justiça, vedando a prática do nepotismo no âmbito do Poder Judiciário pelo expressivo placar de nove a um, é importante tecer algumas considerações. Mais especificamente sobre o significado do voto vencido, lançado pelo ministro Marco Aurélio, não para defender seus argumentos de mérito, já que eles não se distinguem daqueles acolhidos pela avassaladora maioria.

Nesse ponto, torna-se interessante reproduzir o pensamento do próprio prolator do voto vencido, respondendo à indagação do jornalista Fausto Macedo, do jornal O Estado de S. Paulo, sobre se seria a favor do nepotismo (Jornal do Comércio, sábado, 18, e domingo, 19 de fevereiro de 2006):

“Isso é absurdo. Sou contra o nepotismo porque ele não combina com os princípios que regem a administração pública em suas três esferas, não apenas no Judiciário, como no Executivo e Legislativo. Não se coaduna até mesmo com a eficiência no funcionalismo público porque quase sempre revela uma proteção abominável e a prestação de serviços deixa a desejar. No nepotismo, prevalece o tradicional QI, o quem indica, onde se busca algo incompatível com o interesse público. O concurso público é o caminho correto. Quem tem valor persegue e alcança o cargo por esse meio.”

Aliás, a posição do ministro Marco Aurélio contra o nepotismo era conhecida de há muito, pois no voto que proferiu em 12 de março de 1997, na ADI 1.521-4/RS, já afirmara, referindo-se a regras de vedação do aludido fenômeno, que:

“A um só tempo, mediante normas desse feitio, presta-se uma homenagem à Justiça, na mais basilar acepção do termo, permitindo-se a quem de direito alcançar o patamar pelo qual pagou o preço do esforço, da dedicação e da competência. Por outro lado, usando da cartilha dos diletantes do neoliberalismo, tão em voga nas altas esferas dirigentes do país, cabe lembrar que o mérito é a fórmula eficiente para chegar-se à qualidade total desejada aos serviços públicos, ditos essenciais. Ora, como é possível compatibilizar tais assertivas com a possibilidade de nomeação de parentes próximos para ocupar importantes — e até estratégicos — cargos de direção nas repartições públicas comandadas pelo protetor?”

Voltando ao teor do voto vencido recém proferido no STF, negou que haja divisão sobre a matéria no âmbito da Corte:

“Não há divisão no STF. Minha forma de atuar, todos conhecem, é com a maior transparência possível. O combate ao nepotismo deve se estender aos demais Poderes. O momento é alvissareiro para uma mudança cultural. A coisa pública é coisa pública e não de uns poucos.”

Ora, se assim é, o ministro teve de responder à pergunta óbvia, que se insinuava pelos desvãos da dúvida mais ululante, esclarecendo — até pelo caráter categórico da profissão de fé contra o nepotismo — porque votou contra a resolução do CNJ:

“Não posso reconhecer o poder normativo do conselho porque a Emenda 45 (Reforma do Judiciário, que criou o CNJ) não prevê esse poder. Prevê outras atribuições, de caráter administrativo. Sendo assim, o conselho não pode editar resoluções com força de lei. Senão, daqui a pouco, não vamos mais precisar do Congresso. Já basta o Executivo com as medidas provisórias. O Supremo é a última trincheira do cidadão que busca preservação de princípios. Ao CNJ compete apenas administrar, assim como ao Conselho Nacional do Ministério Público. Ao Legislativo compete legislar, aos conselhos compete administrar e conduzir a administração do MP e do Judiciário.”

E aqui é que a porca torce o rabo, percebendo-se que há questões constitucionais e legais aparentemente apenas de forma que não podem, em nome da afirmada nobreza do conteúdo da matéria em deliberação, ser tangenciadas.

Para não ser um plágio, o título do presente artigo (Se a lei ceder) homenageia Norberto Bobbio, o grande mestre da Universidade de Turim, cuja cátedra assumiu, depois de passar por Siena e Pádua, em 1948. Vulto que a magnitude e densidade de um dos grandes pensadores do século XX acabou agraciando com outra cátedra, esta de natureza política em sua maior expressão que, em seu país, distingue aqueles cuja grandeza ultrapassa os limites do lugar-comum: a senatoria vitalícia.

Pois foi precisamente Norberto Bobbio quem, em julho de 1977, escreveu um cintilante texto por ele intitulado Se a lei ceder, de onde se extrai valiosa significação do pensamento político mais consistente:

“Já o primeiro grande teórico do Estado liberal, John Locke, havia repetidamente defendido que só através do governo civil fundado no consenso os indivíduos saem realmente do estado de natureza (ou seja, do estado de guerra civil permanente); já o Estado despótico, cujo poder se baseia na simples força sem consenso, não é senão a continuação ou a quase cristalização do estado de natureza.

A diferença fundamental entre as duas formas antitéticas de regime político, entre a democracia e a ditadura, está no fato de que somente num regime democrático as relações de mera força que subsistem, e não podem deixar de subsistir onde não existe Estado ou existe um Estado despótico fundado sobre o direito do mais forte, são transformadas em relações de direito, ou seja, em relações reguladas por normas gerais, certas e constantes, e, o que mais conta, preestabelecidas, de tal forma que não podem valer nunca retroativamente. A conseqüência principal dessa transformação é que nas relações entre cidadãos e Estado, ou entre cidadãos entre si, o direito de guerra fundado sobre a autotutela e sobre a máxima “Tem razão quem vence” é substituído pelo direito de paz fundado sobre a heterotutela e sobre a máxima “Vence quem tem razão”; e o direito público externo, que se rege pela supremacia da força, é substituído pelo direito público interno, inspirado no princípio da “supremacia da lei” (rule of law).

Bem pelo contrário, a prova de fogo do Estado democrático não está em deixar-se envolver num estado de guerra por nenhum de seus cidadãos, mas, sim, na capacidade de responder às declarações de guerra reafirmando, mais uma vez, solenemente as tábuas da lei (que são a nossa Constituição). A fidelidade obstinada e coerente às tábuas da lei é o único e último baluarte contra os dois males extremos do despotismo e da guerra civil.”

(As Ideologias e o Poder em Crise, Editora UnB, 4.ª edição, 1990, págs. 97/98).

Como facilmente se percebe, a prepotência para a prática do bem deixa os povos, geralmente sem que disso se apercebam, na ante-sala dos regimes de arbítrio. O fim do nepotismo no Judiciário pode inaugurar outra era no controle da invasão do espaço público pelo patrimonialismo, mas se não se estender rapidamente aos outros poderes, não passará de mais uma perversão justificada pela suposta nobreza dos fins.

Tumor se extirpa pela raiz ou, logo, tende a virar metástase. E aceitar a edição de uma resolução para o bem, com força vinculativa de lei, acaba representando o pulo de um gato escaldado para uma nação passar a ver como natural a invasão do espaço normativo da lei, demarcado pela Constituição Federal, por resoluções, portarias, ordens de serviço e outros espécimes do viveiro inesgotável dos burocratas de plantão. Estes, por sua vez, têm na medida provisória seu fator mais definitivo de orgasmo, a forma mais sutil de supressão da democracia pela legislação de exceção.

A Emenda Constitucional 45/04 (Reforma do Judiciário), que criou em seu artigo 103-B o Conselho Nacional de Justiça, fixou sua competência no parágrafo 4º do referido dispositivo, destacando o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, ainda, outras atribuições definidas no referido parágrafo 4.º e no futuro Estatuto da Magistratura. A emenda, certamente, não lhe deu poder normativo, mas apenas regulamentar, fiscalizador e disciplinar.

Passe aqui o truísmo: se já houvesse norma vedando expressamente o nepotismo, ocioso seria ao CNJ escrevê-la. Não que não fosse necessária, muito ao contrário e para os três poderes, exatamente pela falta de anterior previsão. Aliás, já em 1999. a AMB — Associação dos Magistrados Brasileiros propunha, em norma de conteúdo idêntico para todos os poderes apresentada na Reforma do Judiciário, regime de vedação absoluta para o nepotismo, razão por que essa discussão não é de cronologia recente no Judiciário, inclusive tendo como alavanca suas entidades associativas, à frente delas a principal por representar todos os segmentos e áreas de jurisdição.

Ocorre que, segundo dispõe o artigo 37, II, da Constituição Federal: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

Assim, basta não ser um amanuense (mero copiador ou desconhecedor) da lei para concluir que se buscou — e na prática, conseguiu — revogar a parte final do dispositivo antes transcrito, cujo conteúdo, reitere-se à exaustão não se está, em absoluto, defendendo ou justificando, com a Resolução 7 do CNJ. Que, como observou isoladamente o ministro Marco Aurélio, não teve concedidos poderes normativos pela Constituição Federal.

A continuar nesse trôpego passo, o Incra poderá legislar sobre reforma agrária, a Funai sobre o regime jurídico a ser aplicado aos indígenas e, o Confea — Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia acerca da reforma urbana, sem que haja mais necessidade dos competentes — e por isso passíveis de cobrança democrática — canais legislativos.

Como pode o STF contornar esse aparente pequeno obstáculo e agigantar os poderes já não tão liliputianos do CNJ? Temerária a dúvida, cruel e apavorante a resposta: o Plenário da mais alta corte de Justiça do país preferiu considerar invisíveis princípios cardeais como aqueles da reserva legal (matérias cuja definição depende de lei em sentido mais amplo e genérico) e da federação (vários estados já tinham regras proibitivas do nepotismo, ainda que certamente — como mais uma característica do federalismo — com conteúdos diferentes e, portanto, mais ou menos rigorosos).

Por que terá agido assim o pleno do STF? Simplesmente porque se transferiu para a perspectiva da platéia, cedeu às pressões agigantadas da mídia, substituiu a aplicação do Direito — face ao evidente apelo da proposta — pelo sentido do populismo.

Diante dessa constatação, possivelmente equivocada — e que já se seguiu à recente reviravolta da jurisprudência do Supremo para admitir a taxação previdenciária dos aposentados —, uma nuvem parece turvar a proteção dos direitos fundamentais, bastando que uma rotulagem bela, ainda que desprovida da consistência, avance sobre eles.

Democracia dá trabalho, não se exerce sem esforço e suor, estabelece ritos e formas de proteção e, sobretudo, não convive com o pensamento único tão a gosto do cardápio neoliberal nem com a ultrapassagem da lei como síntese de tutela da segurança jurídica, sob pena de o assustador reinado das medidas provisórias ver-se substituído pelo apavorante regresso dos atos institucionais que, mesmo sem essa forma e figura desavergonhada, terão restaurado seu império.

Norberto Bobbio, de onde estiver, não estará aplaudindo, além de certamente buscar afastar o caráter sombrio do Plenário que, ao imediatismo de ocasião, deverá saber substituí-lo pela observância das regras do jogo.

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