Supremo Constituinte

Entrevista: José Celso de Mello Filho

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15 de março de 2006, 16h48

As leis brasileiras, de forma geral, são de baixa qualidade. Prova disso é a freqüência com que o Judiciário constata a inconstitucionalidade das normas aprovadas pelo legislador brasileiro. Quem afirma é o ministro do Supremo Tribunal Federal, José Celso de Mello Filho. Essa precariedade é uma das razões pelas quais os juízes devem ter um papel mais ativo na interpretação das leis e mesmo da Constituição, defende ele.

Esse “ativismo judicial”, que nos Estados Unidos serviu para que a Suprema Corte implementasse os direitos civis como são exercidos hoje, ganhou espaço inédito no Brasil com a nova composição do STF. Celso de Mello defende que o Supremo pode e deve suprir as omissões do legislador, como fez recentemente. Ele assegurou acesso gratuito a creches escolares a crianças de até seis anos, no município de Santo André. Com a antiga formação do STF, direitos como esse, previstos na Constituição, mas ainda não regulamentados por lei, eram sistematicamente negados.

Celso de Mello defende o papel constituinte do Supremo, na sua função de reelaborar e reinterpretar continuamente a Constituição. É essa função, explica ele, que permite ao tribunal atualizar e ajustar a Constituição “às novas circunstâncias históricas e exigências sociais”, atuando como “co-partícipe do processo de modernização do Estado brasileiro.

Foi o ativismo judicial pregado por Celso de Mello que o levou a estabelecer limites para as Comissões Parlamentares de Inquérito, que vinham praticando toda sorte de abusos e arbitrariedades. Ardoroso defensor da liberdade de expressão e dos direitos fundamentais, o ministro condena os atos de “cesarismo governamental” e se posiciona radicalmente contra o “uso compulsivo de Medidas Provisórias” por parte do presidente da República.

O novo time do STF prenuncia mudanças, principalmente no campo da doutrina. E nesse aspecto, o ministro Celso de Mello, que assume o decanato na Corte com a iminente aposentadoria de Sepúlveda Pertence, deve encontrar terreno fértil para as teses que cultiva desde que chegou ao tribunal. A principal delas, expressa abaixo, é a de um STF menos defensivo, ativo ao ponto de, cautelosamente, suprir as lacunas da legislação para que prevaleça o espírito da Carta de 88.

Na entrevista que se segue, a segunda de uma série com os ministros do STF, feita pelo site Consultor Jurídico para o jornal O Estado de S.Paulo, Celso de Mello analisa a nova face do tribunal e o seu papel no Brasil contemporâneo.

Conjur — Comparado a agosto de 1989, quando o senhor tornou-se ministro, o que mudou nos últimos dezessete anos no Supremo Tribunal Federal?

Celso de Mello — O STF, sob a atual Constituição, tomou consciência do alto relevo de seu papel institucional. Desenvolveu uma jurisprudência que lhe permite atuar como força moderadora no complexo jogo entre os poderes da República. Desempenha o papel de instância de equilíbrio e harmonia destinada a compor os conflitos institucionais que surgem não apenas entre o Executivo e o Legislativo, mas, também, entre esses poderes e os próprios juízes e tribunais. O Supremo acha-se investido, mais do que nunca, de expressiva função constitucional que se projeta no plano das relações entre o Direito, a Política e a Economia.

O tribunal promove o controle de constitucionalidade de todos os atos dos poderes da República. Atua como instância de superposição. A Suprema Corte passa a exercer, então, verdadeira função constituinte com o papel de permanente elaboração do texto constitucional. Essa prerrogativa se exerce, legitimamente, mediante processos hermenêuticos. Exerce uma função política e, pela interpretação das cláusulas constitucionais, reelabora seu significado, para permitir que a Constituição se ajuste às novas circunstâncias históricas e exigências sociais, dando-lhe, com isso, um sentido de permanente e de necessária atualidade. Essa função é plenamente compatível com o exercício da jurisdição constitucional. O desempenho desse importante encargo permite que o STF seja co-partícipe do processo de modernização do Estado brasileiro.

Conjur — Então, a evolução da doutrina e da interpretação da Constituição tem contribuído mais para aperfeiçoar as normas no Brasil do que a produção de novas leis?

Celso de Mello — A formulação legislativa no Brasil, lamentavelmente, nem sempre se reveste da necessária qualidade jurídica, o que é demonstrado não só pelo elevado número de ações diretas promovidas perante o Supremo Tribunal Federal, mas, sobretudo, pelas inúmeras decisões declaratórias de inconstitucionalidade de leis editadas pela União Federal e pelos Estados-membros.

Esse déficit de qualidade jurídica no processo de produção normativa do Estado brasileiro, em suas diversas instâncias decisórias, é preocupante porque afeta a harmonia da Federação, rompe o necessário equilíbrio e compromete, muitas vezes, direitos e garantias fundamentais dos cidadãos da República.


É importante ressaltar que, hoje, o Supremo desempenha um papel relevantíssimo no contexto de nosso processo institucional, estimulando-o, muitas vezes, à prática de ativismo judicial, notadamente na implementação concretizadora de políticas públicas definidas pela própria Constituição que são lamentavelmente descumpridas, por injustificável inércia, pelos órgãos estatais competentes. O Supremo tem uma clara e nítida visão do processo constitucional. Isso lhe dá uma consciência maior e uma percepção mais expressiva do seu verdadeiro papel no desempenho da jurisdição constitucional.

Conjur — Voltando a 1989, quando o senhor desembarca no Supremo, a Constituição de 88 era uma recém-nascida. A quase totalidade dos ministros estavam condicionados, escolados, comprometidos com a Carta anterior. Quanto tempo levou para que a Constituição de 88 realmente fosse incorporada pelo Tribunal?

Celso de Mello — O Tribunal, orientava-se, então, como assinala o ministro Sepúlveda Pertence, por uma visão retrospectiva, que o mantinha vinculado e condicionado por padrões estabelecidos no passado, em face de anteriores ordens constitucionais. Com o tempo, o Supremo Tribunal Federal foi evoluindo nesse processo de interpretação constitucional. Hoje, o STF tem uma outra visão do processo constitucional. Possui uma nova percepção que põe em evidência o papel vital desta Corte nesse processo de indagação do texto constitucional.

Há, no entanto, um longo caminho a percorrer, um longo itinerário a cumprir, para que a Constituição do Brasil possa, efetivamente, desenvolver-se em toda a sua integralidade e viabilizar, desse modo, a consecução dos objetivos que dela são esperados. Tenho impressão de que esta é uma nova época. Este é um momento em que o Supremo Tribunal Federal claramente se situa entre o seu passado e o seu futuro. E esse momento é rico em significação, pois permitirá que esta Corte interprete a Constituição de forma compatível com as exigências sociais e políticas que o presente momento histórico impõe.

Conjur — Esse ativismo não está ainda um tanto quanto acanhado, considerando que o Mandado de Injunção, um instrumento importante, por exemplo, ainda não manda nada.

Celso de Mello — Concordo com a sua afirmação. O ativismo judicial é um fenômeno mais recente na experiência jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. E porque é um fenômeno mais recente, ele ainda sofre algumas resistências culturais, ou, até mesmo, ideológicas. Tenho a impressão, no entanto, de que, com a nova composição da Corte, delineia-se orientação tendente a sugerir, no plano da nossa experiência jurisprudencial, uma cautelosa prática de ativismo judicial destinada a conferir efetividade às cláusulas constitucionais, que, embora impondo ao Estado a execução de políticas públicas, vêm a ser frustradas pela absoluta inércia – profundamente lesiva aos direitos dos cidadãos – manifestada pelos órgãos competentes do Poder Público.

Impõe-se, desse modo, que o Supremo dê passos decisivos não só a propósito da plena restauração do mandado de injunção, mas, igualmente, evolua em outros temas constitucionais de grande relevo e impacto na vida do Estado e dos cidadãos.

Conjur — Com a expansão da legitimidade para permitir o questionamento da constitucionalidade de leis por parte de outros agentes que não a Procuradoria-geral da República o Supremo tentou restringir a aceitação dos pedidos. Por que?

Celso de Mello — A Constituição de 1988 representou um passo importante na pluralização dos órgãos e agentes ativamente legitimados ao ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade. Com a ampliação da legitimidade ativa para o ajuizamento da ação direta e com a ruptura do monopólio que pertencia, no passado, ao Procurador-Geral da República, pluralizou-se o debate constitucional, do que resultou um maior coeficiente de legitimidade política e social reconhecido aos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, na medida em que, agora, outros setores expressivos da sociedade civil passaram a ostentar o poder extraordinário de ativar a jurisdição constitucional de controle em abstrato de que se acha investido o STF. Esse dado é importante, pois, como se sabe, o Supremo atua como verdadeiro legislador negativo no processo de controle abstrato de constitucionalidade, eis que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei federal ou estadual, esta Corte exerce uma clara competência de rejeição, que provoca a exclusão do ato inconstitucional do sistema de direito positivo. Essencial, desse modo, que se pluralize o debate constitucional e que se aumente a participação da sociedade civil.

ConJur — O país, a Constituição, a doutrina e o quadro político mudaram. Mas o senhor diria que hoje já há um equilíbrio na relação entre os poderes? O Supremo já é o poder moderador?

Celso de Mello — O Supremo Tribunal Federal exerce uma típica função moderadora,como o evidenciam diversos precedentes firmados por esta Corte, especialmente naqueles casos em que se estabelecem situações de conflito entre o Executivo e o Legislativo da União, ou em que se registram os denominados conflitos federativos, que antagonizam os Estados-membros entre si ou que opõem tais pessoas políticas à União Federal, ou, ainda, naquelas situações de litigiosidade entre os Poderes da República. Essa, na realidade, é a confirmação do papel histórico do Supremo, tal como concebido pelos fundadores da República. Vale relembrar, no ponto, a célebre Exposição de Motivos de Campos Salles, então Ministro da Justiça do Governo Provisório da República, em texto no qual, ao propor a edição do Decreto 848, de 1890, assinalava que o Poder Judiciário, no novo regime republicano, passaria a ostentar um perfil institucional mais expressivo, notadamente porque investido do poder de controle da constitucionalidade das leis e dos atos dos demais Poderes do Estado.


O Supremo Tribunal Federal, hoje, busca revelar-se fiel ao mandato que os Fundadores da República lhe outorgaram. É preciso agir com cautela,no entanto, para que o Supremo Tribunal Federal, ao desempenhar as suas funções, não incorra no vício gravíssimo da usurpação de poder.

ConJur — As mudanças se devem a pessoas. Quem são os doutrinadores que contribuíram, eu sei que é impossível lembrar de todos, mas pelo menos alguns nomes que contribuíram para a evolução que o Supremo experimentou até chegar a esse ponto de agora?

Celso de Mello — São muitos os doutrinadores nacionais cujas lições, além de valiosas, têm concorrido com expressivo suporte teórico destinado a aperfeiçoar esse processo de construção e elaboração de uma nova jurisprudência constitucional.

ConJur — Então, inverto. Tivemos aqui durante cerca de 28 anos, um ministro que de certa forma, no arco ideológico, antagonizava com o seu perfil, que é o ministro Moreira Alves. Contudo, ele é reconhecido como uma espécie de liderança, voto condutor em diversas matérias. Qual foi a contribuição de Moreira Alves para…

Celso de Mello — Moreira Alves foi um dos mais notáveis ministros que o Supremo Tribunal Federal já teve ao longo de sua história. Foi meu professor de Direito Civil na Faculdade de Direito da USP, na velha Academia do Largo de São Francisco.

ConJur — Ele lhe dava boas notas?

Celso de Mello — Ele foi um grande professor, um professor muito querido pela nossa turma. Didático e profundo, ele nos atendia com a máxima solicitude, demonstrando a sua inteira dedicação ao magistério jurídico. Não hesito em dizer que ele foi, realmente, um grande professor e um notável ministro do Supremo Tribunal Federal. Eventuais dissensões de fundo doutrinário ou de caráter ideológico apenas refletem uma constante que se tem revelado, historicamente, no itinerário que o Supremo tem cumprido ao longo da República.

ConJur — Qual é a contribuição do atual decano Sepúlveda Pertence à doutrina do Supremo de hoje?

Celso de Mello — Tem sido extremamente importante no delineamento e na formação da jurisprudência do Supremo. Essa importância resulta não só do grande preparo intelectual de Pertence, de sua notável experiência profissional, mas, também, do fato de ele estimular a Corte a debater novas teses e abrir-se, sem quaisquer preconceitos, a uma nova visão em torno de problemas impregnados de alta relevância jurídica, social e política.

ConJur —Em matéria penal… ele foi voto condutor em que matérias?

Celso de Mello — A participação do ministro Pertence tem sido muito fecunda em diversas áreas da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, à semelhança do que hoje ocorre, entre nós, por exemplo, com o ministro Gilmar Mendes, que é o grande doutrinador da Corte, notadamente no domínio e exposição das técnicas de controle de constitucionalidade.

ConJur — O senhor identificaria algum aspecto mais objetivo dessa contribuição?

Celso de Mello — O ministro Gilmar Mendes, no desenvolvimento do sistema de controle de constitucionalidade, tem suscitado teses cujo exame vem propiciando a abertura de novas vias nessa delicada tarefa de fiscalização jurisdicional dos atos do Poder Público.

ConJur — Outro nome bastante citado na mídia e dentro dessa fase de maior visibilidade do Supremo é do ministro Marco Aurélio. Qual a contribuição que ele deu?

Celso de Mello — O ministro Marco Aurélio também tem sido outra figura importante na construção da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O fato de ele, em alguns momentos, proferir votos vencidos sobre questões polêmicas não desautoriza esta minha afirmação. Aquele que vota vencido não pode ser visto como um espírito isolado nem como uma alma rebelde. Como enfatizava Raymundo Faoro, o voto vencido constitui “o voto da coragem, de quem não teme ficar só” . Aquele que vota vencido deve merecer o respeito de seus pares e de seus contemporâneos, pois a História tem registrado que, nos votos vencidos, reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações.

ConJur — O senhor acredita que bandeiras defendidas por ele, como, por exemplo, a oposição à prisão civil por dívida do depositário infiel, ou a obrigatoriedade da prisão enquanto se apela, como aconteceu com a progressão de regime nos crimes hediondos, podem vir a se tornar também entendimento coletivo?

Celso de Mello — Entendo que sim. É bastante alta tal probabilidade.

ConJur — Qual é a contribuição para a doutrina do Supremo de 2006 do ministro Celso de Mello?

Celso de Mello — Apenas a firme disposição de trabalhar muito e de exercer, com responsabilidade, as graves funções de meu cargo.

ConJur — Os seus colegas citam bastante o trabalho na área dos direitos fundamentais e garantias individuais e o entendimento de que a Constituição vale em todo o país. Que não há ilhas isentas, imunes à Constituição…

Celso de Mello — O Supremo Tribunal Federal não pode permitir que se instaurem círculos de imunidade em torno do poder estatal, sob pena de se fragmentarem os direitos dos cidadãos, de se degradarem as instituições e de se aniquilarem as liberdades públicas. No regime democrático, não há nem pode haver qualquer instância de poder que se sobreponha à autoridade da Constituição e das leis da República.

ConJur — Sobre o desenvolvimento do atual perfil do Supremo, constata-se que é um Tribunal com muito mais visibilidade que antes. E nesse tocante chegamos à TV Justiça, que é um advento recente, mas que contribui. Como o senhor examina o papel da TV Justiça?

Celso de Mello — A TV Justiça incorporou, ao cotidiano dos cidadãos, a realidade do Poder Judiciário, expondo-o ao escrutínio público, como convém a um regime político fundado em bases democráticas. A visibilidade do poder do Estado representa um dos pressupostos de legitimação material de seu próprio exercício.

ConJur — Mesmo com o redimensionamento do papel do Supremo, uma perspectiva histórica ainda há resistências quanto à sua independência. Isso aparece em um momento em que há quem exija ou peça ao Supremo patriotismo no sentido de que haveria uma certa responsabilidade da governabilidade do Supremo se antepondo aos ditames da Constituição. O senhor acredita que o ministro do Supremo deve colocar em igual patamar a letra da Constituição e a preocupação com a governabilidade?

Celso de Mello — A preocupação com a governabilidade deve representar um valor a ser considerado nas decisões dos ministros do Supremo. Mas os juízes desta Corte têm um compromisso mais elevado no desempenho de suas funções e esse compromisso traduz-se no dever de preservar a intangibilidade da Constituição que nos governa a todos. O Supremo Tribunal, como intérprete final da Constituição, deve ser o garante de sua integridade. Atos de governo fundados em razões de pragmatismo político ou de mera conveniência administrativa não podem justificar, em hipótese alguma, a ruptura da ordem constitucional. Cabe, a esta Corte, impedir que se concretizem, no âmbito do Estado, práticas de cesarismo governamental ou que se cometam atos de infidelidade à vontade suprema da Constituição.

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