Soberania ameaçada

TJ não pode absolver quem Tribunal do Júri condenou

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14 de março de 2006, 13h38

A Justiça brasileira adotou duas formas de julgar os processos criminais em primeira instância. Uma é a avaliação do caso por um juiz de carreira, formado em Direito e concursado. Outra é o julgamento pelo Tribunal do Júri, que é composto de pessoas leigas da comunidade, escolhidas mediante sorteio.

Em nosso sistema, o Tribunal do Júri é exceção à regra do juiz togado. O colegiado de juizes leigos só exerce sua competência julgadora em casos de crimes dolosos contra a vida, que são o homicídio, o infanticídio, o aborto e a participação em suicídio. Entende-se que esses crimes são extremamente graves e, por vezes, resultantes de situações peculiares, que merecem um tratamento especial, ou seja, que os acusados sejam julgados por membros da comunidade.

Em outros países, como nos Estados Unidos, o júri decide quase todas as ações judiciais, tanto criminais quanto cíveis. No Brasil, a instituição do júri popular tem adeptos e opositores. Há quem pregue a sua extinção e há quem defenda sua permanência, ou mesmo ampliação. De toda a forma, enquanto não sobrevem nenhuma alteração legal, devemos cumprir os mandamentos de nossa Constituição Federal. O júri segue sendo uma instituição democrática que decide com total soberania, ou, pelo menos, assim deveria ser.

O berço da instituição, em seu formato atual, foi a Inglaterra, em 1215, mas a nomeação de jurados já era utilizada no direito processual romano. Com a Revolução Francesa, o júri espalhou-se pela Europa, transformando-se em símbolo da reação ao absolutismo monárquico. Na época, era uma forma de exercício de poder popular com nuances místicas e religiosas, que ainda persistem no júri inglês e americano de hoje, em que são feitos juramentos sobre a Bíblia e expressas invocações de Deus.

No Brasil, o júri popular teve sua primeira instalação em junho de 1822, quando D. Pedro, ainda príncipe regente, criou os “juizes de fato”, com competência para julgar apenas os crimes de imprensa. Posteriormente, promulgada a constituição do império, em 1824, o Tribunal do Júri adquiriu nova dimensão, ganhando atribuição para todas as infrações penais e também para ações civis. Com o passar do tempo, porém, várias infrações foram sendo subtraídas da competência do júri, mas, até agora, sob a Constituição de 1988, permanece o júri com sua soberania inalterada, como garantia fundamental (artigo 5º, XXXVIII da CF).

Isto significa que os Tribunais de Justiça, que têm a possibilidade de modificar as decisões proferidas pelos juizes togados de primeira instância, não podem alterar o veredicto do júri. Nossa lei prevê algumas hipóteses de recurso de decisão dos juizes leigos, mas apenas em situações bastante limitadas, previstas no artigo 593 do Código de Processo Penal, que são: ocorrência de nulidade; sentença contrária à lei ou à decisão dos jurados, erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou se a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos.

No entanto, com relação ao mérito, a decisão dos jurados não pode ser modificada. Mesmo se reconhecido um equívoco ou uma arbitrariedade no julgamento pelo júri e o Tribunal de Justiça anular a decisão, outro júri terá de ser convocado para julgar novamente o caso. O Tribunal de Justiça não pode simplesmente absolver quem foi condenado ou condenar quem foi absolvido pelo júri, exatamente em razão da soberania dos juizes leigos, que representam a sociedade e o poder do povo.

No caso de se entender que houve contradição dos jurados nas respostas aos quesitos, o que tornaria a decisão confusa e dúbia, o Tribunal de Justiça pode anular o julgamento e determinar a realização de novo júri. Mas é absolutamente incomum que se anule apenas parcialmente o veredicto, fazendo prevalecer a resposta a determinado quesito e considerando-se sem efeito as respostas aos demais.

No entanto, foi isso o que aconteceu recentemente com relação a uma decisão do júri sobre a morte de 111 detentos durante uma invasão policial ao presídio do Carandiru. O Tribunal de Justiça de São Paulo tomou uma decisão polêmica ao anular parte do veredicto e fazer subsistir outra parte, invertendo a sentença proferida pelo júri de forma a absolver quem havia sido condenado.

Sem entrar no mérito da decisão e independentemente do acerto ou erro da absolvição, o fato é que o princípio da soberania do júri popular não admite esse tipo de interpretação. Decisão contraditória ou confusa é nula na sua integridade, não parcialmente, e somente outro Tribunal do Júri pode dar a palavra final sobre a culpabilidade ou não do acusado.

A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo subtraiu do Tribunal do Júri sua competência exclusiva e indeclinável de proferir sentença a respeito da inocência ou culpabilidade de um acusado de vários homicídios.

A prevalecer esse entendimento, será melhor eliminar de vez a instituição do júri popular, medida que representaria verdadeiro retrocesso para os direitos da cidadania.

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    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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