Aprendendo a jogar

Delação premiada é útil mas deve ser usada com cautela

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5 de maio de 2006, 7h00

Sem dolo, e até com alguma retidão, policiais que lidam com grandes casos, sobretudo os que envolvem doleiros e investigações federais, têm sido alertados para tomar cuidado com a chamada delação premiada –instituída pela lei 8.072 de 1990. O artigo 8º, parágrafo único da referida lei diz que “o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando o seu desmantelamento, terá pena reduzida de um a dois terços”.

“Considero que a delação premiada seja um bom artifício. Mas nossa polícia ainda não sabe usá-la. O acusado quer se livrar do crime e logo vai acusando alguém, jogando a culpa nos outros. Tanto o Ministério Público quanto a polícia ainda não aprenderam a separar o joio do trigo”, avalia Guaracy Mingardi, criminólogo e cientista político que trabalha como consultor do MP paulista.

Na Polícia Federal, por exemplo: policiais das novas gerações têm sido cada vez mais instruídos a investigar mais e acreditar menos em denúncias dadas em troca do toma-lá-dá-cá previsto pela delação premiada.

“Devo dizer que a polícia e o Ministério Público se acomodaram feio na investigação baseada na delação premiada. Veja o que a Polícia Civil fez com o caso do ex-ministro Palocci, em São Paulo: chutaram um cachorro morto, acreditando no que o Buratti falava. O Buratti viu que certamente não teria tantas vantagens com a delação premiada. E começou a falar voltando atrás, dizendo que havia “se enganado” nas primeiras acusações”, lembra Francisco Carlos Garisto, presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais, a Fenapef.

Se a Justiça tem rejeitado 85% das denúncias oferecidas pelo MP, a delação premiada não seria algo muito incerto num corpo de denúncias tão imprecisas aos olhos dos magistrados? “Com certeza”, responde Guaracy Mingardi. “É por isso que digo que ainda estamos em fase de aprender com a delação”, diz.

Francisco Garisto não mede palavras para descrever o que ele vê acontecer com os seus colegas de PF. “Todo mundo na PF sabe que dá muito trabalho reinvestigar o que o delator apontou”. Garisto lembra o caso o caso do doleiro Toninho da Barcelona, preso sob a acusação de lavar dinheiro para partidos políticos em São Paulo. Na prisão teve medo de morrer numa rebelião. “Aí ele foi depor na CPI, o país parou para vê-lo na televisão, e ele deu balão em todo mundo, não contou nada. Mas eles sabem inventar, porque são criminosos: misturam um caldo de meias-verdades com meias-mentiras. O policial deve saber que delação premiada virou moda entre doleiros. O arrependido faz delação boa. O bandido faz a delação complicada, porque quer apenas salvar o dele”, diz o policial.

Garisto acha que uma saída para evitar os erros de investigação decorrentes da delação premiada “viciada” seria aumentar a pena para os crimes de perjúrio. “Ninguém tiraria um sarro como fez o Barcelona na TV para todo o Brasil”, pondera.

Delatores costumam até receber, como parte do trato, somas em dinheiro, como ocorre nos EUA. Foi esse tipo de tratativa, por exemplo, que gerou críticas ao paroxismo contra o julgamento do ex-homem-forte do Panamá, general Manuel Antonio Noriega, julgado na corte de Miami, pelo juiz Willliam Hoevler, entre 1989 e 1991. Noriega era acusado de mandar toneladas de cocaína aos EUA. Contra ele, prestou depoimento premiado o colombiano Carlos Lehder Rivas, fundador do Cartel de Medellín. Diante do juiz, Lehder Rivas chegou a dizer que só depunha “por dinheiro” e que torcia para que “a bomba atômica da América Latina, a cocaína”, caísse cada vez mais por sobre os norte-americanos .

Professor de direito da Fundação Getúlio Vargas à frente da Conectas Direitos Humanos, Oscar Vieira Vilhena, um estudioso de criminologia, acredita que a delação premiada gera a “máxima eficiência” da Justiça, porque “mostra resultados quase sem que haja custas na investigação”.

Segundo Vilhena, a delação premiada funciona mas “não pode ser usada de maneira tão generalizada como vem sendo usada”. Vieira Vilhena vê a delação premiada como única saída para casos em que “o Estado é o lesado e não temos propriamente alguém, uma figura palpável, fazendo a denúncia. Chegamos no beneficiário, e ele deve apontar quem o ajudou, em troca de redução de pena”. Ele avalia que ex-deputado Roberto Jefferson, por exemplo, “deu um tiro seu próprio pé ao abrir a boca achando que iria ser perdoado pelo que fez”.

“Defendo a delação premiada porque ela nos ajuda num mundo em que o crime cada vez se torna mais complexo”, avalia Armando Rodrigues Coelho Neto, presidente da Federaçã Nacional dos Delegados da Polícia Federal. “Sabemos de histórias de policiais que, antes da lei da delação, ofereciam benesses para que o investigado abrisse a boca. A lei da delação acabou com isso e ajuda muito a polícia”,.

Doleiros

No último ano delações premiadas geraram uma antologia de depoimentos controvertidos que levaram a enredos ainda mais insondáveis. Por exemplo: em outubro do ano passado o doleiro Alberto Youssef negou à CPMI dos Correios qualquer ligação com a corretora Bonus Banval e com o esquema de caixa dois montado pelo empresário Marcos Valério de Souza, apontado como operador do esquema conhecido como “mensalão”.

Youssef prestou depoimento à sub-relatoria de Movimentação Financeira da comissão. Ele passou a ser investigado porque o também doleiro Toninho da Barcelona disse que foi Youssef quem apresentou o líder do Partido Progressista (PP), deputado José Janene (PR), à Bonus Banval, uma das corretoras que teriam sido usadas para repasse de recursos de Marcos Valério para a base aliada do governo. Alberto Youssef admitiu conhecer Janene e os donos da corretora, mas negou que tenha feito operações de câmbio com eles. Tudo surgiu da delação premiada de Barcelona

No ano passado as negociações de uma delação premiada soaram estranhamente em fita gravada pela PF. O advogado do doleiro Vivaldo Alves, o Birugüi, Gontram Guanaes Simões, teve de conceder entrevista coletiva para explicar que um “presente” mencionado por seu cliente durante conversa telefônica divulgada era em verdade um pedido de delação premiada. Birigüi depunha na 2ª Vara Criminal de São Paulo sobre as escutas telefônicas feitas pelo Polícia Federal nas quais Flávio Maluf supostamente tentava intimidar o doleiro.

Na época, a divulgação de interceptação telefônica autorizada pela Justiça indicava conversas entre o Birigüi e outro doleiro. Em extratos de diálogos registrados pela PF,Birigüi diz que ganharia um “presente” do delegado Protógenes Queiroz caso atribuísse a Maluf algumas movimentações financeiras que o ex-prefeito não fez. Queiroz era o responsável pela investigação do caso.

Na semana passada, também em depoimento resultante de acordo de delação premiada, o doleiro Richard A. de Mol Van Otterloo disse ao Ministério Público que pagou R$ 300 mil para o deputado federal José Mentor (PT-SP) excluí-lo do relatório final da CPI do Banestado. A orientação para que efetuasse o pagamento, contou, teria partido de Flávio Maluf, filho do ex-prefeito Paulo Maluf (PP).

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