Cofre zerado

Emissão premeditada de cheque sem fundo é estelionato

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28 de junho de 2006, 7h00

Emitir cheques sem fundos premeditadamente, mesmo pré-datado, caracteriza crime de estelionato simples e deve ser punido. O entendimento é da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os desembargadores condenaram José Oneide Braga Correa a dois anos e oito meses de reclusão, mais 26 dias de multa, em regime semi-aberto, por emitir diversos cheques sem fundos no comércio de Carazinho.

A defesa de José Oneide recorreu da sentença de primeira instância, mas não obteve sucesso. O relator do caso, desembargador Sylvio Baptista Neto, considerou que a fraude está evidenciada não só na emissão dos cheques, “mas na pluralidade das vítimas, na evasão do paciente da praça e no abandono da família, que deixam claro o propósito de fraudar os credores.”

Os desembargadores Nereu José Giacomolli e Alfredo Foerster acompanharam o voto do relator. O julgamento ocorreu em 1º de junho de 2006. Cabe recurso.

Processo 70014880777

Leia a íntegra da decisão

ESTELIONATO SIMPLES. CHEQUE PÓS-DATADO. CONFIGURAÇÃO. Como vem decidindo esta Corte, haverá o crime de estelionato simples, quando o recorrente, de modo premeditado, constitui dívidas que sabia não poder pagar, obtendo vantagem ilícita mediante o uso de cheques pós-datados e, para se furtar ao compromisso assumido, fugindo da cidade, onde realizara as fraudes. A emissão de cártula pro solvendo, e não pro soluto, não tem o condão de, por si só afastar a fraude. Os cheques emitidos serviram de instrumento à obtenção de farta vantagem econômica, em prejuízo de terceiros, induzindo-os em erro. Situação que ocorreu no caso em tela, como se vê da denúncia e da prova apurada no processo.

DECISÃO: Apelo defensivo parcialmente provido. Unânime.

APELAÇÃO CRIME: SÉTIMA CÂMARA CRIMINAL

Nº 70014880777: COMARCA DE CARAZINHO

JOSÉ ONEIDE BRAGA CORREA:APELANTE

MINISTÉRIO PÚBLICO: APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.

Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em dar parcial provimento ao apelo, para reduzir as penas para dois (02) anos e oito (08) meses de reclusão e vinte e seis (26) dias-multa, mantendo as demais cominações da sentença.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores DES. ALFREDO FOERSTER (PRESIDENTE) E DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI.

Porto Alegre, 01 de junho de 2006.

DES. SYLVIO BAPTISTA NETO,

Relator.

RELATÓRIO

DES. SYLVIO BAPTISTA NETO (RELATOR)

1. José Oneide Braga Correa foi denunciado como incurso nas sanções do art. 171, caput, c/c o art 69, ambos do Código Penal, (denúncia recebida em 14 de abril de 2003), e, após o trâmite do procedimento, condenado às penas de três anos e quatro meses de reclusão, regime semi-aberto, e vinte dias-multa. Disse a peça acusatória que, nos dias 2 e 16 de dezembro de 2002 e nos dias 10 e 14 de janeiro de 2003, em horário comercial, na cidade de Carazinho, em comunhão de esforços com outras pessoas, obteve vantagem ilícita em prejuízo de Mano a Mano Embalagens, J. K. Perin Distribuidora de Bebidas Ltda., Rosinei R. dos Santos & Cia Ltda., Loja Edifício Avenida Utilidades Ltda. e Parati Modas, induzindo funcionários, representante comercial e proprietários das referidas empresas em erro, ao efetuar o pagamento de compras com cheques, de sua titularidade, sem suficiente provisão de fundos.

Inconformada com a decisão, a Defesa apelou. Em suas razões, o Defensor, preliminarmente, aduziu haver litispendência. No mérito, propugnou pela absolvição do recorrente face à insuficiência de provas e pelo fato de que os títulos emitidos foram pré-datados, descaracterizando o crime de estelionato. Alternativamente, pleiteou a redução da pena. Em contra-razões, o Promotor de Justiça manifestou-se pela mantença da sentença condenatória.

Nesta instância, em parecer escrito, o Procurador de Justiça opinou pelo desprovimento do recurso.

VOTOS

DES. SYLVIO BAPTISTA NETO (RELATOR)

2. O apelo não procede quanto à alegada litispendência e à condenação pelos crimes de estelionato. Ambas as questões foram bem examinadas, e decididas, pelo ilustre Julgador, dr. Orlando Faccini Neto.

Tendo em vista que os argumentos do recurso já foram examinados, e rebatidos, na decisão de primeiro grau, permito-me transcrever a fundamentação da sentença. Em primeiro lugar, porque com ela concordo. Depois, fazendo-o, homenageio o trabalho do colega e evito a tautologia. Disse o Magistrado:

“No que concerne a preliminar suscitada pela defesa, volto a afastá-la, em virtude de não se enquadrar ao caso em estudo. Transcrevo parte do despacho presente à fl. 695 do processo 009/2.03.0001341-0, no qual a mesma tese foi suscitada:


“(…) Diga-se logo que de litispendência não se cuida, porquanto são diversos os fatos versados na espécie e aqueles pelos quais denunciado o acusado noutros processos ( cópias das denúncias às fls. 624/675 )

Igualmente não se há de falar em conexão, porquanto ausentes as hipóteses do artigo 76 do Código de Processo Penal, sem se olvidar, ainda, que a conexão se opera no nível da modificação da competência, que, para todos os fatos articulados contra o acusado, já está definida neste juízo, razão por que se tem a inutilidade da pretensão. Sabe-se, noutro enfoque, que eventual continuidade delitiva se pode reconhecer na fase de execução da pena, em sua eventualidade, por certo.

Ainda que assim não fosse e houvesse a invocada conexão, sem peias ter-se-ia na espécie a incidência da parte final do artigo 80 do Código de Processo Penal, no que autoriza, havendo motivo relevante, a separação de processos. Aqui, nestes autos, há onze fatos atribuídos ao réu. Noutra denúncia (fls. 624/36), se lhe imputam outros seis fatos; noutra mais 22 fatos (fls. 638/77), a revelar que, a reunião destes, cujos andamentos, parece, estão em descompasso, redundaria em inequívoco tumulto e lerdeza, em prejuízo do próprio réu, que se encontra preso cautelarmente.”

A tese, pois, não obstante reiterada, não colhe êxito porque, repita-se, os fatos narrados na denúncia são diversos daqueles constantes noutros processos, se bem que a identidade do meio de execução possa fazer, no nível da execução de penas, aplicar-se a regra do artigo 71 do Código Penal.

Passo à análise do mérito.

O réu José alegou em juízo não ter tido a intenção de enganar as vítimas (fls. 222): “Eu tinha um mercado e o negócio começou a ir mau. Eu não tive como cobrir os cheques. A conta no Banrisul eu tinha aberto em julho ou agosto de 2002. Eu tinha também uma conta no Banco do Brasil que tinha sido aberta no começo daquele ano. A Alminda e o João Carlos trabalhavam comigo. Ela trabalhava no balcão e ele cuidava do mercado e fazia as compras. O proprietário era eu. Os cheques eram emitidos em meu nome. A maioria das vez era eu quem fazia as compras. Eu tive que fechar o mercado pois eu não tinha como pagar as contas. Quando eu emiti os cheques a situação do mercado era boa. Era mês de dezembro de 2002 quando a situação do mercado começou a ficar complicada. As retiradas que eu fazia do mercado eu depositava na conta do Banrisul, conforme os cheques iam caindo. Os cheques eram emitidos pré-datados (…) Assinei todos os cheques mencionados na denúncia (…) Eu fechei o mercado, peguei minhas coisas e saí pois estava sendo ameaçado se não cobrisse os cheques. A ameaça era anônima. Saí de noite. Não tenho família. Levei alguma coisa mas deixei algumas coisas. Eu tinha camionete e assim saí da cidade”.

Prossigo com a análise dos fatos em separado.

1° e 2° Fatos (Loja Mano a Mano): A materialidade restou…

Conforme o proprietário da empresa-vítima Antônio (fl. 279v): “O depoente vendia embalagens plásticas para José, que possuía o mercado MM na cidade de Carazinho. O depoente visitava o local a cada 15 dias. O réu sempre pagou as compras em dinheiro. Em uma ocasião pediu prazo e o depoente fez a venda mediante cheque pós-datado para compensação dentro de 30 dias. Após 15 dias o depoente retornou à empresa e fez nova venda, sendo que o primeiro cheque ainda não tinha sido compensado pois o prazo não tinha vencido, ocasião em que fez outra venda e recebeu outro cheque para 30 dias. Quinze dias após a segunda venda o depoente estava com o primeiro cheque em mãos porque não foi compensado, e tentou cobrar diretamente da MM. A empresa estava fechada e o depoente nunca mais viu José. Sabe que outros representantes comerciais foram lesados por José”.

O ânimo prévio de obter vantagem ilícita com tal negócio restou evidenciado na análise conjunta de todas as provas relativas aos fatos narrados na peça pórtico, somadas das circunstâncias em particular deste fato acima estudadas.

Quatro das cinco vítimas que prestaram depoimento em juízo afirmaram ter recebido cheques pós-datados como forma de pagamento (exceto a vítima Marilene, que recebeu o cheque à vista, porém atendendo ao pedido verbal do réu para que segurasse o cheque por dois ou três dias). Destas, diversas salientam ainda que no princípio as compras eram efetivamente pagas, e que, ao final, acabaram sem receber os últimos pagamentos, os quais, de costume, possuíam maior vulto. A fraude consistia por muitas vezes não só na simples emissão dos cheques, mas também na criação de uma relação de confiança com as vítimas, configurando ardil, conforme a prova oral coligida.

3º Fato (J.K. Perin): A materialidade restou… O cheque presente nos autos foi emitido em 16 de dezembro de 2002 e datado para 18 de janeiro de 2003 (fl. 20).


Conforme o vendedor da empresa-vítima Derli informou (fl. 264):

“Fiz a venda mencionada na denúncia para o réu. A venda foi paga com um cheque dele. A venda foi de bebidas. Ele tinha um mercado. O cheque era pré-datado quando a empresa foi descontar o cheque não tinha fundos. O réu sumiu da cidade antes de o cheque vencer. Ele deixou outros comerciantes na mesma situação. Antes dessa o réu já tinha feito outras compras. Ele sempre pagava em dia. O réu comprava lá há seis ou sete meses”.

Fica claro que a intenção dos réus já se revelava premeditada, consistindo em vir residir em uma nova cidade, induzir diversas vítimas em erro (compra de um mercado no mesmo mês da chegada e de uma lancheria três meses após, envolvendo valores econômicos completamente díspares com sua situação econômica, conforme se apurou no processo 2.03.0001341-0) e, mediante prejuízo alheio, garantir sua subsistência, até onde fosse possível, fugindo quando a estadia se revelasse inviável.

O ânimo prévio de obter vantagem ilícita com tal negócio restou evidenciado na análise conjunta de todas as provas relativas aos fatos narrados na peça pórtico, somadas das circunstâncias em particular deste fato acima estudadas…

4° Fato (Rosinei): A materialidade restou comprovada…

A vítima, Rosinei, relatou (fl. 321): “O depoente afirma que costumava vender frangos e frios em geral para os réus José… Contudo na data descrita na denúncia recebeu um cheque de R$ 1.500,00 o qual não pode ser compensado por insuficiência de fundos. Depois disto os réus fugiram da cidade e nunca mais foi ressarcido este prejuízo. Também teve quatro títulos protestados em função destas vendas, o que ocasionou um prejuízo de R$ 6.000,00 ao depoente. O cheque recebido pelo depoente era pós-datado”.

O ânimo prévio de obter vantagem ilícita com tal negócio restou evidenciado na análise conjunta de todas as provas relativas aos fatos narrados na peça pórtico, somadas das circunstâncias em particular deste fato acima estudadas…

5° Fato (Edifício Avenida Comércio de Utilidades Ltda.): A materialidade restou…

De acordo com a proprietária da empresa-vítima (fl. 265): “O réu fez compra no meu estabelecimento. Ele comprou um telefone celular. Ele pagou com cheque pré-datado para quinze dias. Ele nunca tinha comprado lá. Fiz a consulta e nada constava contra ele. O cheque não tinha fundos. Após o cheque voltar duas vezes soube que o réu não estava mais na cidade. Fiquei sabendo que ele tinha dado golpe, que eu não era a única que tinha sido lesada. Fiquei no prejuízo e por isso registrei a ocorrência”.

O ânimo prévio de obter vantagem ilícita com tal negócio restou evidenciado na análise conjunta de todas as provas relativas aos fatos narrados na peça pórtico, somadas das circunstâncias em particular deste fato acima estudadas.

6° Fato (Loja Parati Modas): A materialidade restou comprovada…

A proprietária da empresa lesada, Marlene, disse em juízo (fl. 266): “O réu fez compra no meu estabelecimento. Comprou duas calças jeans e uma blusa. A cunhada dele que fez a compra, ele estava junto e deu o cheque. O cheque era à vista. Voltou sem fundos. Não procuramos o réu pois naquela semana ele foi embora. Nunca mais vi o réu. Fiquei sabendo que ele agiu da mesma forma na Boscato. Fiquei no prejuízo. Ele pediu dois ou três dias pra que eu segurasse o cheque antes de descontar”.

O ânimo prévio de obter vantagem ilícita com tal negócio restou evidenciado na análise conjunta de todas as provas relativas aos fatos narrados na peça pórtico, somadas das circunstâncias em particular deste fato acima estudadas.

A jurisprudência, em casos como o presente, tem decidido:

“Não se tratando de simples emissão de cheque pré-datado em garantia de dívida mas de conduta típica do estelionato, tendo em vista a pluralidade de vítimas, a evasão do paciente da praça e o abandono da família, que deixam claro o propósito de fraudar os credores, não cabe o trancamento do processo penal” (STF – RHC – Rel. Carlos Cadeira – RTJ 119/131).

“Cometem o delito de estelionato, na modalidade simples, os agentes que, sabendo do encerramento da conta bancária, continuam passando cheques para compra de mercadorias, em prejuízo das vítimas. O fato de serem os cheques pós-datados não retira a ilicitude do estelionato, na modalidade simples.” (Apelação 70001852003, Oitava Câmara Criminal do TJRS, Rel. Tupinambá Pinto de Azevedo).

“Agindo o apelante premeditadamente, ao constituir dívidas que sabia não poder pagar, obtendo, assim, vantagem ilícita quanto aos valores descritos na exordial, em prejuízo das vítimas, mediante o uso de cheques pós-datados, tentando, ainda, furtar-se ao compromisso assumido, e fugindo da cidade onde realizara as fraudes, resta demonstrado o dolo com que agiu. Havendo a cártula sido emitida pro solvendo, e não pro soluto, não tem o condão de, por si só afastar o estelionato. Os cheques emitidos serviram de instrumento à obtenção de farta vantagem econômica, em prejuízo de terceiros, induzindo-os em erro.” (Apelação 70004908968, Oitava Câmara Criminal do TJRS, Rel. Umberto Guaspari Sudbrack).

“Denunciado o agente por estelionato na sua forma simples, e não por fraude no pagamento por meio de cheques (inc. VI do § 2° do art. 171 do CP), não há falar em cheque à vista ou pós-datado, mesmo que eles os tenham entregado como forma de pagamento futuro, porquanto, presente a vontade de enganar a vítima, dela obtendo vantagem ilícita, em prejuízo alheio, empregando artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento, caracterizado está o delito na sua forma fundamental.” (Apelação 70004242921, Oitava Câmara Criminal do TJRS, Rel. Roque Miguel Fank).”

3. Pequeno reparo a fazer no apenamento. Digo, inicialmente, que a pena-base de dois anos de reclusão está em consonância com as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, como demonstrou o Juiz de Direito em sua decisão. O aumento de um terço pela continuidade delitiva obedece à quantidade de delitos cometidos, como ressaltou aquela autoridade.

Afasto a agravante do art. 62, I, do Código Penal. Não vislumbrei nas ações do recorrente a situação de promotor ou organizador dos crimes. Pareceu-me que sua atuação se deu na qualidade de co-autor com alguma relevância, mas longe do conceito daquela, como, por exemplo, já firmou o Supremo Tribunal Federal:

“Se o réu teve participação mais expressiva, promovendo, organizando a cooperação nos crimes e dirigindo a atividade dos demais agentes…” (RT 761/530).

Com relação à multa, apesar do disposto no art. 72 do Código Penal, porque a vejo como pena também, aplico a continuidade delitiva e não a acumulação. Mantendo, por outro lado, o regime prisional, semi-aberto, e a negativa de substituição da pena de prisão.

4. Assim, nos termos supra, dou parcial provimento ao apelo, para reduzir as penas para dois anos e oito meses de reclusão e vinte e seis dias-multa, mantida as demais cominações da sentença.

DES. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI (REVISOR) – De acordo.

DES. ALFREDO FOERSTER (PRESIDENTE/VOGAL) – De acordo.

DES. ALFREDO FOERSTER – Presidente – Apelação Crime nº 70014880777, Comarca de Carazinho: “À UNANIMIDADE, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO APELO, PARA REDUZIR AS PENAS PARA DOIS (02) ANOS E OITO (08) MESES DE RECLUSÃO E VINTE E SEIS (26) DIAS-MULTA, MANTENDO AS DEMAIS COMINAÇÕES DA SENTENÇA.”

Julgador(a) de 1º Grau: ORLANDO FACCINI NETO

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