Sigilo profissional

Para advogados, e-mail é carta e, portanto, inviolável

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17 de junho de 2006, 13h05

Recentemente, um juiz usou troca de e-mails entre um advogado e seu cliente como “prova” de que ambos tramavam atos para obstruir a Justiça. Para o cliente, destinou prisão preventiva. Para o advogado, prometeu representação por infração ética na OAB.

O episódio suscitou, de imediato, duas questões: uma, se a inviolabilidade que protege a troca de correspondência estende-se às mensagens eletrônicas; outra, se o sigilo profissional na relação advogado-cliente pode ser exposto de público — especialmente como prova de delito em um processo.

Na era da devassidão da Internet e do uso intenso de e-mails, a matéria ganha excepcional importância. Com a ajuda de juízes, advogados e do Ministério Público, o site Consultor Jurídico buscou parâmetros e ponderações, expostas aqui e em textos que serão publicados nos próximos dias, em busca de respostas e opiniões.

Quem quiser ver na questão um debate corporativista, melhor refletir. Estão em jogo nesse tabuleiro a relação do médico-cliente; o padre e o fiel; o jornalista e sua fonte; o promotor e a testemunha; ou mesmo o juiz e quem quer que seja.

Para a controvérsia inicial, sobre a transposição do mundo virtual para o físico, lembra o ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal deu uma pista há poucos dias. Na discussão sobre determinada operação de busca e apreensão, os ministros concluíram no sentido de que dados digitais estão para o disco rígido de um computador da mesma forma que papéis estão para um arquivo ou armário. Ou seja, são documentos normais e podem ser apreendidos sem problemas. Não se discutiu, especificamente, a questão dos e-mails.

O Superior Tribunal de Justiça raspou nessa questão. Decidiu que a inviolabilidade que protege uma correspondência vale enquanto a carta estiver fechada. Uma vez aberta, torna-se documento como qualquer outro. Falando em tese, o ministro Marco Aurélio acredita que, em princípio, o mesmo princípio se aplica a um e-mail.

Troca de confidências

Quanto ao sigilo profissional, coube ao subprocurador-geral da República Jair Brandão de Souza Meira dar a sua insuspeita contribuição, recentemente. Ao analisar a validade, como prova, de conversa gravada entre o advogado Mário Sérgio de Oliveira e sua cliente, Suzane Richtofen, antes de entrevista-show na TV Globo, o subprocurador foi firme: a fita anexada ao processo é inválida. Gravação clandestina, sem autorização dos interlocutores, que invade a privacidade constitucional da relação advogado-cliente é prova ilícita.

A combinação dessas situações remete de volta ao caso do juiz que usou troca de e-mails entre cliente e advogado como prova para respaldar prisão de um e comprometer o outro. No caso específico, a correspondência fora apreendida com ordem judicial. Valendo a tese de que e-mail lido (aberto) é documento, fica a pergunta: e se o e-mail não tiver sido acessado (e como comprovar)?

Para o ministro Marco Aurélio, seria como se na apreensão fosse colhido um extrato bancário, ainda fechado, do alvo da ordem. Para ele, só uma nova ordem judicial, específica para quebra de sigilo bancário, validaria o uso da prova.

As opiniões do subprocurador, juízes e advogados ouvidos, portanto confluem em alguns pontos: a relação advogado-cliente é protegida pelo sigilo e interceptações ilegais não valem como prova. Uma terceira convergência: a legitimidade da orientação ao cliente cinge-se ao direito de defesa dentro dos parâmetros do direito de não se auto-incriminar. Omitir e mentir incluídos, mas não atos como o de destruir provas ou o que puder caracterizar um novo crime.

A voz da defesa

Enquanto o Supremo Tribunal Federal não define os limites da questão, advogados já têm sua resposta na ponta da língua: e-mail é correspondência e, portanto, inviolável. “Sou dos que pensam que os e-mails são correspondências do tempo da vovó. Eles só diferem na forma”, defende o advogado Luiz Guilherme Vieira. Tanto faz se ele já foi lido ou não. “O que a Constituição garante a todos é a inviolabilidade do sigilo das correspondências. O legislador originário não faz diferença se elas foram abertas ou não.”

A troca de mensagens virtuais é prova ilícita assim como a troca de cartas, reforça o advogado Marco Aurélio Assef, o e-mail não pode ser usado contra o acusado.

Como nenhum direito é absoluto, a inviolabilidade da correspondência pode ser quebrada por uma determinação judicial. “Tudo depende da abrangência do Mandado de Busca e Apreensão”, observa o advogado Jair Jaloreto Junior. Ele entende que, se a apreensão de um e-mail estiver especificada no Mandado de Busca e este não for considerado ilegal pelas instâncias superiores, o conteúdo do e-mail é prova lícita.

O ex-ministro da Justiça Bernardo Cabral compartilha do mesmo entendimento de Jaloreto Junior: só é prova lícita o e-mail obtido com ordem judicial.

O advogado Luiz Perissé, lembra que o artigo 7º, inciso II, da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB) estabelece que constitui direito do advogado “ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, salvo caso de busca ou apreensão determinada por magistrado e acompanhada de representante da OAB.”

Ainda assim, cabe verificar se um e-mail apreendido na outra ponta (com o cliente) está compreendida na regra da inviolabilidade. “Entendo que sim” — afirma Perissé — porque, como se nota da redação do dispositivo transcrito, a imunidade da correspondência foi instituída de modo autônomo (ao lado e além daquela que protege o escritório, os arquivos, os registros etc). “Desse modo, como existe autonomamente, parece claro que cobre qualquer correspondência do advogado com seu cliente, apreendida em qualquer lugar”, afirma o advogado.

Essa conclusão, entretanto, não esgota a matéria. O mesmo dispositivo citado estabelece exceção, sob a forma de ordem judicial, com acompanhamento da OAB. O fundamento da exceção é a hipótese de participação do advogado na prática de delito — nesses casos, naturalmente, a imunidade não se aplica. Assim, em regra, se o advogado já está constituído, o delito sobre que versa a defesa já estará esgotado, e a imunidade será plena (exceto o cometimento de novo delito, com participação do advogado). Já mensagens apreendidas sem respeito a esses requisitos será prova ilegal, inadmissível em juízo, como a gravação das conversas entre Suzane e seus advogados.

Privacidade pública

O mundo virtual, no entanto, muito mais vulnerável a falsificações praticamente perfeitas do que o mundo físico ainda é um desafio para a Justiça. A advogada Liza Bastos Duarte levanta uma importante questão: a veracidade de provas como e-mails. Ela lembra o quanto é difícil desvendar uma fraude virtual. Apoiada nesse argumento, afirma: “O juiz proferirá uma sentença passível de nulidade quando fundamentar uma decisão unicamente através de prova obtida por e-mail”.

O atraso das normas jurídicas em relação à tecnologia, mostra constantes violações a direitos fundamentais sobre assuntos, como a questão da natureza do e-mail, que ainda não foram estabelecidos. Afinal, se a lei escrita e específica sobre velhos temas é passível de diferentes interpretações, o que dizer sobre a norma ainda não escrita sobre novas matérias?

Na definição do advogado Omar Kaminski, “em tempos de Big Brother, valores parecem distorcidos e relegados a segundo plano. E pagamos com a nossa privacidade por uma pretensa segurança”.

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