Auto-tutela

Cabe à administração pública retificar ato ilegal de concurso

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15 de junho de 2006, 7h00

Cabe à administração pública usar o seu poder de auto-tutela para retificar seus próprios atos, se estes estiverem com algum vício que os torne ilegais ou fundados em erro de fato. O entendimento é da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao negar recurso interposto por uma professora, contra ato administrativo que desfez sua nomeação e posse, depois de aprovada em concurso público.

A professora não tinha a habilitação adequada, mas alegou que teria direito líquido e certo ao cargo. Segundo ela, a sua licenciatura em Pedagogia com habilitação em Educação Especial para Deficientes Mentais atenderia às normas do edital de abertura do concurso, já que este exigia essa habilitação ou outra voltada aos deficientes de áudio-comunicação. Ela foi aprovada para o cargo de professora de Educação Especial — Deficientes Múltiplos, no Rio Grande de Sul.

O ministro Gilson Dipp entendeu que, apesar de o edital poder ser considerado a lei do concurso, esse instrumento de convocação deve ser entendido como um todo, de forma sistemática, e a alegação da professora se basearia em apenas um item isolado do edital.

Os itens 3 e 9 do Capítulo IV, “Das inscrições e suas condições”, do edital estabelecem que deveria haver habilitação específica para o exercício do magistério no nível de ensino ou na disciplina para qual desejasse se inscrever e que deveria estar prevista a abertura de vaga no município ao qual o candidato pretendesse se vincular.

O anexo II do mesmo edital lista vagas para Porto Alegre (RS) em três disciplinas, sendo que nenhuma para a qualificação da professora. Portanto, ela não estaria qualificada para a vaga que preencheria.

O ministro afirmou ainda que a jurisprudência do STJ é farta e unânime em autorizar que a administração pública, segundo o poder de auto-tutela, possa retificar seus próprios atos se estes estiverem com algum vício que os torne ilegais ou fundados em erro de fato. A nomeação da professora seria contrária às exigências do edital, portanto viciada e ilegal.

RMS 21.467

Leia a íntegra da decisão

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 21.467 – RS (2006⁄0003098-9)

RELATOR : MINISTRO GILSON DIPP

RECORRENTE: LUCIANE DA SILVA PONTES

ADVOGADA: ERYKA FARIAS DE NEGRI E OUTROS

T. ORIGEM: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

IMPETRADO: SECRETÁRIO DE ADMINISTRAÇÃO E RECURSOS HUMANOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL E OUTRO

RECORRIDO: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROCURADOR: DANIELE BRASIL LERIPIO E OUTROS

EMENTA

ADMINISTRATIVO – CONCURSO PÚBLICO – CARGO – PROFESSOR DA REDE ESTADUAL – NOMEAÇÃO E POSSE – DESCONSTITUIÇÃO – REQUISITOS EDITALÍCIOS NÃO PREENCHIDOS – CORREÇÃO DE ILEGALIDADE – PODER-DEVER DA ADMINISTRAÇÃO – SÚMULA 473 DO PRETÓRIO EXCELSO – INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.

I – O edital é a lei do concurso, preestabelecendo normas garantidoras da isonomia de tratamento e igualdade de condições no ingresso no serviço público.

II- Não ofende qualquer direito líquido e certo o ato administrativo que tornou sem efeito a nomeação e posse de candidato que não preencheu os requisitos exigidos no instrumento convocatório.

III – Aplica-se, à espécie, o entendimento consolidado na Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos…”

IV – Recurso ordinário conhecido, mas desprovido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da QUINTA TURMA do Superior Tribunal de Justiça.

“A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso.”Os Srs. Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Felix Fischer votaram com o Sr. Ministro Relator. SUSTENTOU ORALMENTE: DR. PETER ALEXANDRE LANGE (P⁄RECTE)

Brasília (DF), 16 de maio de 2006(Data do Julgamento)

MINISTRO GILSON DIPP

Relator

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 21.467 – RS (2006⁄0003098-9)

RELATÓRIO

EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP(Relator):

Trata-se de recurso ordinário interposto por Luciane da Silva Pontes, com base na alínea “b”, inciso II, do art. 105 da Constituição Federal, contra v. acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, denegatório de mandado de segurança.

Na inicial do “writ”, a impetrante atacou ato administrativo que tornou insubsistente a nomeação e posse da mesma no cargo de Professor de Educação Especial – Deficientes Múltiplos, em razão de não haver preenchido os requisitos editalícios para investidura no respectivo cargo.

O v. acórdão recorrido restou assim ementado:

“CONCURSO PÚBLICO. QUADRO DO MAGISTÉRIO ESTADUAL. PROFESSOR DO ENSINO FUNDAMENTAL, EM EDUCAÇÃO ESPECIAL, COM ATUAÇÃO NA ÁREA DE DEFICIÊNCIA MÚLTIPLA. FALTA DE HABILITAÇÃO ESPECÍFICA. NÃO ATENDIMENTO DOS REQUISITOS ESTABELECIDOS NO EDITAL (ITENS 3, a e 9) E NAS LEIS NºS 6.672⁄74 E 9.394⁄96 (ESTATUTO E PLANO DE CARREIRA DO MAGISTÉRIO ESTADUAL E LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO ESPECIAL) CANDIDATA QUE EFETIVOU A INSCRIÇÃO PARA EXERCER AS ATIVIDADES ATINENTES À EDUCAÇÃO ESPECIAL – DEFICIÊNCIA MÚLTIPLA, SENDO DETENTORA DE HABILITAÇÃO ESPECÍFICA EM EDUCAÇÃO ESPECIAL – DEFICIENTES MENTAIS. ÁREA DE ATUAÇÃO QUE SE REVELA DIVERSA DAQUELA PARA QUAL DIPLOMADA. REQUISITO PROFISSIONAL, COMUM A TODOS OS CANDIDATOS. CONDIÇÃO QUE NÃO PODE A ADMINISTRAÇÃO RELEGAR, EM RESPEITO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA. POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO REVER OS SEUS PRÓPRIOS ATOS (STF, SÚMULA 473). INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO VIOLADO, DECORRENTE DE ATO ILEGAL, A MERECER CORREÇÃO NA VIA ESTREITA DA AÇÃO DE SEGURANÇA. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. SEGURANÇA DENEGADA.” (fl. 135).


Não satisfeita, a ex-professora interpôs o presente apelo ordinário repisando toda a tese lançada na exordial, qual seja, que possui direito líquido e certo à anulação do ato que tornou insubsistente sua nomeação e posse porquanto teria preenchido os requisitos previstos no Edital de abertura do certame.

Contra-razões às fls. 166⁄173, requerendo a manutenção do decisum recorrido.

Parecer do Ministério Público Federal, opinando pelo desprovimento do recurso (fls. 182⁄185).

É o relatório.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA Nº 21.467 – RS (2006⁄0003098-9)

VOTO

EXMO. SR. MINISTRO GILSON DIPP(Relator):

Registre-se que o recurso foi interposto em tempo hábil, sendo a recorrente beneficiária de gratuidade de justiça (fl. 82), razão pela qual não houve recolhimento do respectivo preparo.

Ultrapassada a preliminar de conhecimento, passo ao exame do mérito.

Consoante anteriormente relatado, a questão trazida à exame visa aferir a existência de direito líquido e certo da recorrente, ex-professora do Quadro de Carreira do Magistério do Estado do Rio Grande do Sul, em anular ato administrativo que tornou insubsistente a nomeação e posse da mesma no cargo de Professor de Educação Especial – Deficientes Múltiplos, em razão de não haver preenchido os requisitos editalícios para investidura no respectivo cargo.

Em defesa de sua tese, a recorrente afirma ser detentora de Diploma de Grau Superior “Licenciatura em Pedagogia, Habilitação em Educação Especial – Deficientes Mentais, atendendo às normas do Edital de abertura do concurso em questão, o qual no Capítulo II, referente à escolaridade, dentre outras habilitações técnicas exigidas para o exercício do cargo, elenca o curso superior de Educação Especial habilitação em Deficiente de Audiocomunicação ou habilitação em Deficientes Mentais. Desta forma, alega que sendo o edital a lei do concurso, merece prosperar a segurança impetrada.

Em que pese os argumentos acima tecidos, o presente recurso não merece prosperar.

Com efeito, o edital é a lei do concurso, fixando normas garantidoras da isonomia de tratamento e igualdade de condições no ingresso no serviço público. Todavia esse instrumento convocatório deve ser examinado como um todo, de forma sistemática, não podendo haver interpretação de um item isoladamente, como quer a recorrente, sob pena de entendimento equivocado das normas ali estabelecidas.

Assim, revendo o instrumento de abertura do certame (fls. 43⁄45) verifica-se singular pormenor no Capítulo IV – “Das inscrições e suas condições” os itens “3” e “9 a”, que assim dispõem:

“3. São requisitos para inscrição, constituindo condições de nomeação:

a) ter habilitação específica para o exercício do magistério no nível de ensino ou na disciplina para a qual deseja se inscrever, de acordo com o Anexo II deste Edital, na data do encerramento das inscrições;

(…)

9) O candidato deverá concorrer ao nível de ensino⁄disciplina correspondente à habilitação de que seja possuidor, desde que no município ao qual pretende vincular-se, esteja prevista abertura de inscrição para este nível ensino⁄disciplina, conforme consta do Anexo II deste Edital.

Por outro lado, no referido Anexo II do Edital (Abertura de inscrições por Nível de ensino, Disciplina e Município), consta abertura de vaga no Município de Porto Alegre para o nível de ensino fundamental séries iniciais, somente nas seguintes disciplinas: a) quatro primeiras séries; b)educação especial – deficiência visual; c) educação especial – deficiência múltipla e d) educação especial – síndrome de autismo.

Diante deste quadro, verifica-se que muito embora conste do Edital (Capítulo II, item escolaridade) dentre outras habilitações técnicas exigidas para o exercício do cargo de Professor C.01, o Curso Superior de Educação Especial habilitação em Deficiente de Audiocomunicação ou habilitação em Deficientes Mentais, é certo que no presente concurso não foi aberta vaga para professor de Educação especial – deficiência mental, especialização na qual a recorrente é diplomada.

Desta forma, tendo a recorrente efetuado inscrição para o Município de Porto Alegre, no cargo de professor de Educação Especial Deficientes Múltiplos, verifica-se que realmente não preencheu os requisitos editalícios para investidura no cargo.

Adotando idêntico raciocínio, opina o representante do Ministério Público Federal, pelo desprovimento do recurso. Da sua manifestação, extrai-se o seguinte excerto:

“Com efeito, o documento de fls. 28 atesta que a recorrente possui habilitação em educação especial – deficientes mentais. Ocorre que o edital expressamente exigia a habilitação específica na área de atuação (item II, 2, cargo C.1, c⁄c item 3,a – fls. 43⁄44) e como a recorrente prestou concurso público para a disciplina “deficiência múltipla”, forçoso reconhecer a ausência de preenchimento, já no momento da inscrição, dos requisitos constantes do instrumento convocatório, os quais se revelam as necessidades específicas da administração.” (fl. 184).


Em suma, irrepreensível o ato que teve por fim desconstituir a nomeação e posse da recorrente ante sua flagrante ilegalidade. Afinal, as autoridades impetradas agiram no limite do poder de autotutela conferido à Administração Pública para correção de seus próprios erros.

Neste sentido, é uniforme a jurisprudência desta Corte, secundando orientação sumulada do Pretório Excelso, de que a Administração pode rever seus próprios atos quando eivados de nulidade, sanando irregularidade concedida ao arrepio da Lei. Ilustrativamente:

“Servidor Público. Proventos de aposentadoria. Ato administrativo eivado de nulidade. Poder de autotutela da Administração Pública. Possibilidade. Precedente. Pode a Administração Pública, segundo o poder de autotutela a ela conferido, retificar ato eivado de vício que o torne ilegal, prescindindo, portanto, de instauração de processo administrativo (Súmula 473, 1ª parte – STF). RE 185.255, DJ 19⁄09⁄1997. RE conhecido e provido. (STF – RE 247.399-SC, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 23.04.2002).

“Ato administrativo: erro de fato que redunda em vício de legalidade e autoriza a anulação (Súmula 473): retificação de enquadramento de servidora beneficiada por ascensão funcional, fundada em erro quanto a sua situação anterior: validade.

1. O poder de autotutela da administração autoriza a retificação do ato fundado em erro de fato, que, cuidando-se de ato vinculado, redunda em vício de legalidade e, portanto, não gera direito adquirido.

2. Tratando-se de ato derivado de erro quanto a existência dos seus pressupostos, faz-se impertinente a invocação da tese da inadmissibilidade da anulação fundada em mudança superveniente da interpretação da norma ou da orientação administrativa, que pressupõe a identidade de situação de fato em torno do qual variam os critérios de decisão.” (STF, RMS 21.259 – DF, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 08⁄11⁄91).

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. REMOÇÃO. ATO ANULADO. PODER DA ADMINISTRAÇÃO REVER SEUS ATOS QUANDO ILEGAIS.

Sendo a Administração revestida do poder de anular seus próprios atos quando eivados de ilegalidade, não há qualquer reparo no ato que anulou a remoção da servidora (Súmulas 346 e 473 do STF).

Recurso desprovido.”(ROMS 12.887-SC, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 24⁄11⁄2003).

“CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – SERVENTUÁRIO INATIVO DE TABELIONATO EXTRAJUDICIAL – RESTABELECIMENTO DE VANTAGENS – ISONOMIA COM SERVIDORES DO FORO JUDICIAL – IMPOSSIBILIDADE – AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL – REVISÃO DE PROVENTOS – PODER-DEVER DA ADMINISTRAÇÃO – SÚMULAS 339 E 473 DO PRETÓRIO EXCELSO – INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.

(…)

V- Irrepreensível, desta forma, o ato atacado que ao revisar os proventos do recorrente, sanou flagrante ilegalidade, excluindo vantagens concedidas ao arrepio da lei, nos termos da Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal: “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos…”

VI – Recurso ordinário conhecido, mas desprovido.” (ROMS 10.373-PE, de minha relatoria, DJ de 07.04.2003).

“RMS – CONSTITUCIONAL – ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – SITUAÇÃO FUNCIONAL DESPROVIDA DE AMPARO LEGAL – REVISÃO DO ATO ADMINISTRATIVO – APLICAÇÃO DA SÚMULA 473 – STF – INEXISTÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.

1 – A Administração Pública não pode ser compelida a manter situações de notória irregularidade, sob o argumento da Constituição Federal vedar a redução de vencimentos. O escopo constitucional leva em conta situação jurídica perfeita, ancorada na regularidade funcional dos detentores. Não faz sentido a invocação de preceitos constitucionais para albergar situação desprovida de legalidade e conseqüente regularidade.

2 – O fato de contracheques anteriores certificarem cargo superior denota mera conseqüência do erro administrativo, sanável a qualquer tempo, a teor do enunciado da Súmula 473-STF, já que padece do vício de legalidade.

3 – Recurso desprovido.” (ROMS 9286-RO, de minha relatoria, DJ de 07⁄02⁄2000).

Ante o exposto, conheço do recurso e lhe nego provimento.

É como voto.

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