Verdade crua e nua

Reportagem de Época não ofendeu honra de pediatra pedófilo

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3 de junho de 2006, 7h00

À imprensa, é vedada a mentira. Fora isso, é tão livre quanto a própria vida. A frase, do juiz Luiz Otávio Camacho, da 4ª Vara Cível de São Paulo, em sentença na qual rejeitou pedido do pediatra Eugênio Chipkevitch, preso por abusar sexualmente de seus pacientes. Ele pretendia receber indenização por danos morais e materiais da revista Época.

Chipkevitch era um profissional renomado até seus estranhos hábitos serem descobertos. Ele sedava os pacientes no consultório e abusava deles sexualmente. A descoberta veio com provas produzidas pelo próprio médico, que gravava os crimes. Chipkevitch está preso desde março de 2002, condenado a 114 anos de prisão pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Dessa vez, na Justiça paulista, ele pretendia se sentar do lado oposto ao banco dos réus. Sentiu-se vítima de uma reportagem publicada pela Época .Sentiu-se ofendido, particularmente, pela foto publicada na revista em que aparecia algemado. Sob alegação de que a revista ferira sua honra, pediu uma indenização.

O juiz Luiz Otávio Duarte Camacho negou o pedido. Para ele, não houve sensacionalismo, não houve mentira, apenas um relato da verdade. “O autor está legalmente preso, legalmente acusado de pedofilia e foi apresentado na fotografia da revista legalmente algemado. Por isso mesmo, não se pode tornar mais público o que já é público e nem mais ou menos legal o que já aconteceu sob a égide da lei.”

O juiz explicou que, ao publicar a reportagem, a revista apenas cumpriu o papel da imprensa, que é de mostrar a verdade. Por isso, não há dano moral ou material. “O comportamento e os atos das pessoas, dentro do convívio social, devem e precisam ser, conforme o caso, aplaudidos ou vaiados com a mais intensa censura e reprovação. E amplamente divulgados para que todos vejam como foi pernicioso o seu comportamento para a sociedade e assim o mal que causou à paz social e em determinadas pessoas.”

Leia a íntegra da decisão

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

FORUM REGIONAL XI – PINHEIROS

Proc. n. 011.02.007773-5

QUARTA VARA CÍVEL

Vistos:

EUGÊNIO CHIPKEVITCH, qualificado, ajuizou esta ação de indenização por dano material e moral contra PAULO MOREIRA LEITE e EDITORA GLOBO S/A.

Na inicial, alega, em síntese que sofreu dano material e moral com a reportagem que os réus publicaram. Teceu outras considerações e requereu, ao final, a citação dos réus para responderem à ação e nela prosseguirem até a sentença que postulou seja procedente. Deu valor à causa e juntou documentos.

Citados, os réus apresentaram resposta por contestação, tendo o réu Paulo M. Leite invocado preliminar de ilegitimidade de parte passiva e no mérito propugnado pela inexistência dos danos. Foi nesta tese seguido pela co-ré Editora Globo. Ambos requereram, ao final a improcedência da ação e condenação do autor em seus consectários legais. Juntaram documentos.

O autor apresentou réplica.

Foi realizada a audiência prevista no art. 331 do C.P.C. sem êxito quanto à conciliação ou transação.

É o relatório.

D E C I D O.

O autor desta ação pretende responsabilizar os réus porque, segundo ele, extrapolaram os limites estabelecidos legalmente para o exercício do direito à liberdade de informação e portanto, serem condenados ao pagamento da quantia adequada pelo dano material e moral provocados no autor.

O autor se insurge contra a matéria publicada pela ré revista Época sob a responsabilidade do réu Paulo M. Leite. O réu não é parte ilegítima. É representante legal dela e responde pelo seu conteúdo. Logo, permanece no pólo passivo.

Em outras palavras, o autor se viu atingido em sua honra, a saber, no caso, “…a necessidade de defesa da reputação da pessoa (honra objetiva) compreendendo o bom nome e a fama de que desfruta no seio da coletividade, enfim, a estima que a cerca nos seus ambientes familiar, profissional, comercial e outro. Alcança, também, o sentimento pessoal de estima ou a consciência da própria dignidade (honra subjetiva). (…) O bem jurídico protegido é a reputação ou a consideração social, a cada pessoa devida …”

1 – DOS FATOS.

A reportagem é fato incontroverso, bem como a adjetivação dispensada ao autor, o “tratamento verbal”.

Os réus, em suas contestações, repeliram as teses do autor, baseando-se, em suma, na estrita observância dos limites legais e morais do trabalho de imprensa publicado.

É importante analisar os fatos partindo de constatações óbvias: o autor está legalmente preso, legalmente acusado de pedofilia e foi apresentado na fotografia da revista legalmente algemado. Por isto mesmo não se pode tornar mais público o que já é público e nem mais ou menos legal o que já aconteceu sob a égide da lei. Logo, o que os réus fizeram foi condensar em um artigo de revista um episódio da vida real e, diga-se aqui, da vida legal também, da crônica judiciária de todo dia com suas belezas e suas tristezas. A vida possui sua própria ética e não trata com seda e sândalo suas mazelas maiores ou menores nem se envergonha de suas belezas nuas e vestidas porque o belo e o nobre vêm com o sujo e o feio na trama da existência, sem amenidades.

E é assim que a imprensa, a atividade de informar da imprensa, surge. A imprensa precisa informar e informa não apenas um fato mas informa o fato dentro de um “corpo vivo” que tem um sentimento tão coletivo quanto profundo, uma emoção, que, invariavelmente vem com uma notícia como esta do autor. Portanto, o “modo” de se referir ao autor, em verdade traduz um sentimento latente ou não mas vivo na comunidade, que o jornalista capta, captura com sua sensibilidade de entender a “alma” das pessoas ou do povo (a expressão é bonita e real: “a alma do povo”). A imprensa não pode, em hipótese nenhuma mentir ou enganar; dizer o que não está acontecendo ou distorcer o sentimento popular. Mas, de resto, é tão livre quanto a própria vida, rebelde, submissa, terna, cheia de esperança ao mesmo tempo que já está cansada e cética, diante de tanta fraude e agressão aos seus melhores sentimentos humanos.

Sendo este canal, este espelho do ritmo da vida, a imprensa tem sua própria linguagem, seu Português diário e jornalístico, cru, sim, mas na medida das realidades da vida. Então, a imprensa tem seu gênero literário, assim como a novela, a crônica, o romance, o conto e a poesia e mesmo a música e todas as demais artes nos “falam” através de sua linguagem própria.

Diante disso, tem razão a contestação do réu Paulo Moreira Leite, quando aborda e desenvolve o ponto que intitulou “DA PERSPECTIVA EM QUE A REPORTAGEM DEVE SER ENTENDIDA E PERCEBIDA”. Correta a sustentação ali apresentada, sem merecer qualquer reparo. E é isto mesmo.

Assim sendo, não há sensacionalismo nenhum na reportagem ou artigo apresentado pela revista ré.

Com efeito, deve se reparar que os réus não imputam ou atribuem nenhum fato ou circunstância ao autor. Os réus apenas divulgaram em linguagem própria fatos atribuídos legalmente ao autor pelo Órgão Público competente para isto. Assim, para se configurarem os danos que o autor acha que sofreu, era de se ver o modo como os réus divulgaram os fatos. Viu-se aqui que o modo de divulgação foi absolutamente correto e sem exagero ou distorção.

DOS DANOS MATERIAL E MORAL.

O minudente caminhar pelos autos mostra que o autor não produziu nenhuma prova do dano material. Sequer descreveu-o. Sequer nomeou-o. Não apresentou o fato danoso sofrido pelo autor, o prejuízo de ordem patrimonial causado pelos réus com evidente nexo causal entre conduta e dano.

Ficou do mesmo tamanho a prova do dano moral, pois já se tratou do teor da matéria e das fotos publicadas pela Época e se concluiu que não se afastou um milímetro dos traçados legais.

Assim, o dano material não teve nem mesmo sua silhueta contornada nos autos.

O dano moral também não ficou provado. Os réus fizeram o seu trabalho retratando uma denúncia estribada em iniciativas e situações legais e que chocou a opinião pública. Os réus, com um jornalismo ético e verdadeiro, traduziram esta emoção e indignação com expressões adequadas e que corresponderam ao uníssono sentimento popular.

Os réus não precisavam de permissão do autor para publicar sua fotografia algemado porque, em primeiro lugar, repetiram cena já divulgada e em segundo lugar porque mostrar A VERDADE é o papel da imprensa. E já não é sem tempo. Não se pode mais ficar “dourando a pílula”. Hoje em dia, a sociedade, como um todo, clama pela divulgação maciça da verdade.

Tudo o que acontecia com o autor, acontecia em função de sua própria conduta, como bem disse o réu Paulo Moreira Leite. Com efeito, o dano moral é inexistente.

O que sugere ele nesta ação é que tudo fosse secreto e anônimo na reportagem.

Com efeito, para que se pudesse acolher o pleito do autor em matéria de dano moral, seria necessária a prova da divulgação mentirosa sobre o episódio com fotografia montada ou maliciosamente apresentada. Como nada disto aconteceu, como já se viu, inexiste o dano moral.

É evidente que, qualquer cidadão, seja em que situação civil ou criminal estiver, merece todo o respeito. Mas este respeito é tributo rendido à sua dignidade de pessoa humana. É neste patamar que cada um de nós é intocável. Mas, o comportamento e os atos das pessoas, dentro do convívio social devem e precisam ser, conforme o caso, aplaudidos ou vaiados com a mais intensa censura e reprovação. E amplamente divulgados para que todos vejam como foi pernicioso o seu comportamento para a sociedade e assim o mal que causou à paz social e em determinadas pessoas.

As alegações finais dos réus, dignas de destaque por sinal, são alinhadas com a verdade dos autos. Sem nenhum reparo, pois, a fazer.

Ante o exposto e tendo tudo o mais considerado julgo improcedente esta ação (Proc. n. 011.02.007773-6) e em conseqüência condeno o autor ao pagamento das custas processuais e honorários de advogado que fixo em dez salários mínimos, dado o art. 20, par. 3º, do CPC (especialmente a natureza e importância da causa e o trabalho realizado pelos advogados).

P.R.I.C.

São Paulo, 22 de maio de 2006.

LUIZ OTÁVIO DUARTE CAMACHO

JUIZ DE DIREITO

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