A arte de advogar

Advogados de Suzane não infringiram a ética, decide OAB-SP

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2 de junho de 2006, 17h58

Infringe a ética profissional o advogado que não orienta suficientemente o seu cliente. Dentro dessa ótica, os advogados de Suzane von Rochthofen nada mais fizeram do que cumprir sua obrigação ao orientar a jovem sobre como agir durante a polêmica entrevista que ela deu ao programa Fantástico, em abril passado.

Essa foi a conclusão a que chegou a Comissão de Sindicância instaurada pela seccional paulista da OAB para apurar se os advogados Denivaldo Barni, Mário de Oliveira Filho e Mário Sérgio de Oliveira violaram o Código de Ética da advocacia. Com o parecer emitido pelos membros da comissão — Miguel Reale Júnior, Walter Ceneviva e Antônio Ruiz Filho — a discussão sobre a conduta dos advogados deve ser arquivada.

Barni e os irmãos Oliveira foram criticados pela imprensa depois de terem sido gravados orientando Suzane a chorar durante a entrevista para o programa da Rede Globo. A entrevista foi ao ar em abril e, em seguida, o presidente da OAB-SP determinou a instauração da Comissão de Sindicância.

A prova da conduta questionada, ou seja, a fita gravada, sequer foi levada em conta pela comissão, por ser considerada prova ilícita. O Estatuto da Advocacia e o Código de Ética e Disciplina da OAB garantem o sigilo da conversa entre cliente e advogado. Os integrantes da comissão ressaltaram que este sigilo é inerente à profissão de advogado.

“Para dar seguimento ao exame de possível falta ética pelos sindicados, seria necessário validar a gravação de comunicação reservada entre o advogado e seu cliente. E, visto que esta gravação foi ilícita, tornou-se imprestável para os fins desta Comissão de Sindicância”, diz o parecer.

Os integrantes da Comissão ouviram os três advogados acusados e concluíram que eles apenas orientaram a cliente, o que, não só é permitido, como também é considerado um dever do advogado. Segundo o parecer, só há infração se o advogado orientar seu cliente a desobedecer a lei.

“É verdade que a natureza da defesa criminal impõe uma variedade de cuidados e condutas de modo a combater todo o estigma que se forma em favor da acusação, mais ainda quanto mais grave for o crime e maior a sua divulgação pela mídia.”

Leia a íntegra do parecer

PARECER DA COMISSÃO DE SINDICÂNCIA

Por ato do Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção de São Paulo, foram baixadas as portarias nº.s 448/06/PR e 456/06/PR, criando a presente Comissão de Sindicância, composta pelos Advogados Miguel Reale Junior (presidente), Walter Ceneviva e Antonio Ruiz Filho (relator), com o objetivo de analisar eventuais indícios de infração ético-disciplinar dos advogados Mário de Oliveira Filho (OAB/SP 51.448), relativamente à participação que tiveram na entrevista concedida por Suzane Louise von Richthofen, levada ao ar pelo programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, aos 9 de abril de 2006.

Por requisição do Presidente da seccional paulista da OAB, a Empresa Globo Comunicações e Participações S/A enviou cópia da fita solicitada que s encontra anexada aos autos.

Convocados para prestar seus esclarecimentos, os sindicados compareceram perante a Comissão, sendo colhidos os seus depoimentos, oportunidades em que também juntaram documentos, consistentes na declaração da Rede Globo subscrita por Alberto Villas, Chefe de Redação do “Fantástico”, e no voto do desembargador José Damião Pinheiro Machado Cogan, relator do hábeas corpus impetrados pelos sindicados Mário e Mário Sergio, em favor de Suzane Louise von Richtofen.

Após detida análise dos autos, os integrantes da Comissão de Sindicância passam a dar seu parecer.

Prima facie , cumpre reconhecer que a questão posta a exame desta Comissão refere-se à possibilidade de que a orientação que Suzane recebeu de seus advogados, sobre como agir durante a entrevista, pudesse caracterizar alguma infração ético-disciplinar relacionada ao exercício profissional.

Ocorre que a prova existente, ou seja, a gravação em que se colheu a orientação dos advogados para a cliente se deu sem o conhecimentos dos envolvidos, em flagrante violação dos sigilo que recobre as relações entre advogado e cliente.

O artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), inciso II, estabelece entre os direitos do advogado:

“(…) ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade…. de suas comunicações, inclusive telefônica e afins (…)”

Por sua vez, o Código de Ética e Disciplina da OAB, ao tratar do sigilo profissional, assevera, no seu artigo 25:

“ (…) O sigilo profissional é inerente à profissão, impondo-se o seu respeito, salvo grave ameaça ao direito à vida, à honra, ou quando o advogado se veja afrontado pelo próprio cliente (…) “.


Vê-se que, tanto do ponto de vista legal, como por uma visão deontológica, o sigilo é imanente à atuação do advogado, quanto mais ao receber informações do cliente e a ele transmitir suas orientações, desde que estas não sejam contra legem.

Em comentários ao Estatuto da Advocacia, Paulo Luiz Netto Lobo, observa:

“ (…) O Estado ou os particulares não podem violar essa imunidade profissional do advogado porque estariam atingindo os direitos da personalidade dos clientes, e a fortiori a cidadania. O sigilo profissional não é patrimônio apenas dos advogados, mas uma conquista dos povos civilizados (…)”1

Mais adiante, o comentarista adverte:

“ (…) A defesa intransigente do sigilo profissional é de interesse da independência e do prestigio de toda a classe dos advogados, perante a população. A guarda do sigilo é valoroso bastião contra as investidas dos poderosos (…)”2

No caso dos autos, sob a alegação de ter captado, sem intenção, a conversa entre Suzane e seus advogados, em duas oportunidades diferentes, o fato é que se exibiu no horário nobre dominical, em programa televisivo líder de audiência em todo o país, orientações dos advogados à clientes. Violou-se, indiscutivelmente, o sigilo das relações cliente-advogado, levando-se ao ar imagens e sons gravados, com antecedência, o que permitiria que o alegado equivoco de gravação fosse extirpado da fita pelo “Fantástico”, em cumprimento da lei a que todos estamos obrigados.

A conduta ilícita, alias, não passou despercebida do exame judicial. O desembargador que teve conhecimento dos fatos ao exame habeas corpus impetrado pelos sindicados, visando à revogação da prisão preventiva que decorreu da malfadada entrevista de Suzane, fez consignar seu voto :

“(…) Em determinado momento, enquanto conversava reservadamente com seu advogado, os repórteres que haviam acordado a entrevista passaram a gravar a conversa de ambos, colocando-a no ar em seguida.

Uma das vezes ocorreu em local aberto e outra no anterior de residência, estando os repórteres na parte externa de mesma.

Tal fato é evidente infração ética, já que a comunicação entre o acusado e seu defensor se encontra acobertada pelo sigilo funcional, como se verifica pela aplicação analógica do art. 207, do Código de Processo Penal.

Não cabia aos profissionais que organizaram a entrevista divulgar ou tomar conhecimento indevido de qualquer conversa entre a paciente e os advogados que a orientavam, já que tais atos estavam acobertados pelo sigilo profissional(…) (negritamos)3.

Melhor conhecendo os fatos, a comissão verifica que a analise da conduta profissional dos sindicados teria de ser realizada com apoio em prova – a fita da gravação – colhida em flagrante desobediência à lei e à própria forma deontológica do necessário sigilo profissional. Trata-se, à evidencia, de prova ilícita e, como tal, não pode ser aproveitada.

Assim , para dar seguimento ao exame de possível falta ética pelos sindicados, seria necessário validar a gravação de comunicação reservada entre o advogado e seu cliente. E, visto que esta gravação foi ilícita, tornou-se imprestável para os fins desta Comissão de Sindicância.

A Constituição Federal, ao estabelecer as garantias fundamentais, além de exigir o devido processo legal, assegura : “ são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

O Ministro Celso de Mello, em julgamento perante o Supremo Tribunal Federal , ao debruçar-se sobre a questão,acentuou:

“(…) A clausula constitucional do due process of law — que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público — tem no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas,na medida em que o réu tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com o apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo ordenado jurídico, ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado.

A absoluta invalidade da prova ilícita infirma-lhe, de modo radical, a eficácia demonstrativa dos fatos e eventos cuja realidade material ela pretende evidenciar.

Trata-se de conseqüência que deriva, necessariamente, de garantia constitucional que tutela a situação jurídica dos acusados em juízo penal e que exclui, de modo peremptório, a possibilidade de uso, em sede processual, da prova – de qualquer prova – cuja ilicitude venha ser reconhecida pelo Poder Judiciário. A prova ilícita é prova inidônea. Mais do que isso, prova ilícita é prova imprestável. Não se reveste, por essa explicita razão, de qualquer aptidão jurídico material. Prova ilícita, sendo providencia instrutória eivada de inconstitucionalidade, apresenta-se destituída de qualquer grau, por mínimo que seja, de eficácia jurídica (…)”. (4)


Diante da origem ilícita da prova, a Comissão se vê compelida a não examinar a fita contendo a gravação da entrevista, desprezando-a como elemento de convicção do seu parecer.

Contudo, por excessiva cautela, a Comissão procedeu à oitiva dos sindicados para, da sua versão sobre os fatos, procurar aferir a conduta do ponto de vista ético, nos limites da orientação que teriam dado à sua cliente.

O advogado Mário de Oliveira Filho, informou não ter participado das filmagens que envolveram Suzane, mas pôde esclarecer que a entrevista foi concedida à Rede Globo “após a emissora ter por escrito se comprometido a realizar a entrevista dentro dos padrões estabelecidos”.

O documento, como já dito, encontra-se nos autos e, de fato, estabelece condições, depois amplamente desrespeitadas. A edição da fita, vale dizer, a separação composta pro trechos da gravação feita, para ser adequada ao seu maior impacto na audiência do programa, quebra a seqüência natural do desenvolvimento fático. Trunca a apreciação das ações examinadas. Obstaria, ainda que não se tratasse de prova ilícita, a integral avaliação da conduta dos advogados no curso da reportagem.

A sucessão temporal da reportagem quanto aos fatos é, nesse caso, de importância fundamental, mas foi sacrificada pela edição. O produto final exibido ao público – e depois encaminhado a esta Comissão – é, portanto, formado pela junção de trechos de locais e tempos diversos, o que prejudica a avaliação e retira, por mais um motivo, a fidedignidade para provar, contrariando ademais o compromisso assinado pela emissora de que não seriam feitas edições da matéria.

Denivaldo Barni, advogado que acolheu e vem mantendo Suzane von Richthofen em sua própria residência, afirmou desconhecer que sua conversa reservada estivesse sendo gravada e também esclarece ter orientado a cliente quanto à forma de proceder e se portar num determinado processo.

Por último, o advogado Mário Sérgio de Oliveira relatou incidente ocorrido entre a jornalista e sua cliente, que a ele se dirigiu chorando e pedindo para encerrar a entrevista. Continuando, o sindicado explicou que:

“(…) atendendo a pedido de sua cliente a orientou a voltar até o repórter, continuar chorando e encerrar a entrevista. (…) não tinha a menor idéia de que a sua conversa privada e sigilosa estava sendo gravada.

Consigna estar absolutamente convicto de não ter infringido qualquer preceito ético norteador da profissão, havendo, por outro lado a divulgação de conversa particular, reservada e sigilosa entre ele e sua cliente, devidamente editada dando a impressão de um monológo, quando na verdade era um dialogo (…)” (transcrição conforme o original – negritamos).

Do quadro fático apresentado pelos sindicados, de interesse para a Comissão e dentro das suas atribuições, cabe examinar se, pela orientação que alegam ter dado à cliente, mereceriam eles a imputação de algumas falta ético-disciplinar. A resposta haverá de ser negativa.

É preciso afirmar desde logo que o advogado está impedido de orientar seu cliente a desobedecer a lei. Ao assim proceder, certamente o profissional da advocacia estaria infringindo seu Código de Ética.

Mas, de outra parte, infringe a ética profissional o advogado que não orienta o cliente suficientemente, valendo reproduzir a lição de Manoel Pedro Pimentel, segundo a qual o advogado criminalista, “respeitados os princípios da ética profissional, deve fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que o seu constituinte seja defendido com a maior eficiência possível”. 5

Na obra “Tática e Técnica da Defesa Criminal”, Serrano Neves enfatiza:

“(…) é preciso exercer, com altivez e espírito público, o direito de defesa – o mais sagrado de todos os direitos. E que nenhum advogado tenha receio de faze-lo,em qualquer circunstancia, atendendo pois, à recomendação que se lê no inciso II da Seção 3ª do Código de Ética Profissional6, expressis verbis:

– ‘Nenhum receio de desagradar a juiz, ou de incorrer em impopularidade, deterá o advogado no cumprimento de seus deveres’ (…)”7.

Zanardelli, sobre a defesa criminal, lançou célebre axioma: “Até o patrocínio de uma causa má é legítimo e obrigatório, porque a humanidade o ordena, a piedade o exige, o costume o admite e a lei o impõe”.

Serrano Neves traz outras importantes considerações:

“(…) É sabido que o assassínio, por exemplo, provoca uma desordenada agitação nas massas, seguidas de verdadeiras tempestades de paixões. Demais disso, a imprensa sensacionalista – interpretando, aliás, o sentimento médio da coletividade – não perde o grande prato, pois o jornal precisa circular mais e vender mais. Assim sendo, os ânimos se exacerbam, e a reação, nesse caso, toma feições, por vezes, até mais odiosas e odientas que o próprio crime (…)”8.

E, ao tratar da preparação do acusado, orienta:

“(…) O advogado tático deve ser também, um bom diretor de cena. Por isso, precisa saber preparar o acusado para a solenidade do julgamento.

Erro palmar, assim, cometeria o advogado que admitisse, no banco dos réus vestida de branco e maquilada, a mulher que matou o marido….

Deverá ela, se não lhe for permitido comparecer de luto fechado, ir para a audiência com o uniforme do estabelecimento penal em que se encontrar. E precisa chorar….naturalmente…(…)”9.

Os autores, absolutamente, não contemplam e nem pregam a fraude, mas é verdade que a natureza da defesa criminal impõe uma variedade de cuidados e condutas, de modo a combater todo o estigma que se forma em favor da acusação, mais ainda, quanto mais grave for o crime e maior a sua divulgação pela mídia.

Por tudo isso, cumpre observar que não há como condenar a conduta adotada pelos advogados do ponto de vista ético, ficando fora do âmbito desta Sindicância alguma outra crítica que se poderia fazer em torno do episódio.

Terminados os trabalhos e considerando que o exame da fita restou inviabilizado em razão da sua origem ilícita – decorrente da violação de sigilo profissional – chega-se à conclusão que mais não há a fazer, senão declarar que seus membros não vêem infração ético-disciplinar a ser apurada por conta dos fatos em questão.

É o parecer.

São Paulo, 30 de maio de 2006

Miguel Reale Júnior – presidente

Walter Ceneviva – vogal

Antonio Ruiz Filho – vogal e relator

Notas de Rodapé

1 – In Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB, 3ª ed. Ver. E atual. – São Paulo; Saraiva, 2002, p. 59.

2 – Idem, p. 60.

3 – Documentos anexados aos autos

4 – Voto na ação penal nº 307-3 do Distrito Federal.

5 – In Advocacia Criminal, São Paulo, RT, 1965, p. 42.

6 – Atualmente dever ético praticamente com os mesmos dizeres está previsto no art. 31, § 2º, do Estatuto da Advocacia.

7 – In Tática e Técnica de Defesa Criminal, Rio de Janeiro, Jozon ed., 1962, p. 36

8 – Idem, p. 48.

9 – Idem, p. 111-3.

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