Acordo de cavalheiros

ICMS só pode ser alterado por decisão dos entes federados

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31 de julho de 2006, 18h32

As alíquotas do ICMS só podem ser alteradas por deliberação conjunta dos entes federados. O entendimento foi reafirmado pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ao considerar ilegal o primeiro contrato firmado entre uma empresa atacadista e o Governo do Distrito Federal dentro das regras do Tare — Termo de Acordo de Regime Especial.

A decisão se restringe ao contrato 01/98, assinado com a empresa Martins Comércio e Distribuição Ltda. O contrato já está extinto, mas a decisão cria precedente sobre o assunto. Gilmar Mendes entendeu que o contrato desrespeitou o pacto federativo, ao instituir uma alíquota de ICMS não prevista em lei.

“O Tare 01/98, além de prever hipótese ficta de incidência do ICMS, previu receita indevida ao Distrito Federal, através do recolhimento do tributo sem correspondente fato impositivo real, prejudicando a incidência dos impostos aos Estados remetentes e destinatários do imposto”, afirmou o ministro.

“Vale ressaltar que na própria exposição de motivos do Termo de Acordo em comento, há a previsão da transferência fictícia de mercadorias”, anotou Gilmar Mendes. “As alíquotas de ICMS não podem ser alteradas pelos entes federados senão por deliberação conjunta.”

Termo

O Tare foi criado em 1998 com o objetivo de atrair empresas atacadistas para criar empregos no DF. Desde então, mais de 400 distribuidoras se instalaram em Brasília, em busca de uma alíquota de ICMS de apenas 1% — nos estados, o imposto é de 7%. A medida adotada pelo GDF atingiu seus objetivos.

De acordo com o jornal Correio Brasiliense, hoje, o setor atacadista responde por 18,7% das arrecadação total de ICMS, perdendo apenas para os segmentos de combustíveis e lubrificantes (20,2%) e telecomunicações (18,8%). Os atacadistas já representam uma arrecadação maior do que o comércio varejista (15,9%) e a indústria (11%).

De janeiro a abril deste ano, os atacadistas pagaram cerca de R$ 196,4 milhões em ICMS, um crescimento de 28,9% sobre igual período do ano passado. Mas como o programa nunca foi aprovado no Confaz, órgão que reúne os secretários de Fazenda de todo o país, acabou alvo dos questionamentos na Justiça.

ACO 541-1

Leia a íntegra da decisão

AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA 541-1 DISTRITO FEDERAL

V O T O

O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – (Relator):

O parecer da Procuradoria-Geral da República, da lavra do então Procurador-Geral da República Dr. Geraldo Brindeiro, opina pela procedência da ação, sob a seguinte fundamentação:

A Constituição Federal, em seu art. 155, § 2o, incisos IV e XII, alínea ‘g’, determinou que as alíquotas aplicáveis às operações e prestações interestaduais e de exportação serão estabelecidas através de Resolução do Senado Federal, e que cabe à lei complementar, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, regular a forma como serão concedidos e revogados os incentivos, benefícios fiscais e as isenções.

16. Com efeito, a Lei Complementar no 24, de 07 de janeiro de 1975 e a Resolução no 22, de 19 de maio de 1989, disciplinam a matéria. No art. 1o, da Resolução do Senado Federal, fixou-se a alíquota do ICMS nas operações interestaduais em 12% (doze por cento), com exceção das operações e prestações nas Regiões Sul e Sudeste, destinadas às Regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e ao Estado do Espírito Santo, para as quais foram fixadas as alíquotas, a partir de 1990, em 7% (sete) por cento.

17. Observa-se, pois, que o regime especial concedido à ré permite que ela, através de seu estabelecimento paulista adquira a mercadoria de seus fornecedores, registre a remessa da mesma para seu estabelecimento localizado no Distrito Federal e, logo após determine sua entrega física diretamente ao seu estabelecimento situado em Uberlândia, Estado de Minas Gerais, sob a alíquota privilegiada de 7%.


18. Dessa forma, o estabelecimento situado no Distrito Federal simplesmente ‘escritura’ a transferência da mercadoria para o Estado de Minas Gerais, revelando, portanto, ilegalidade do procedimento, e que se destina unicamente a permitir a aplicação, para cálculo do imposto, de alíquota diversa da fixada pela Resolução do Senado Federal, nas operações interestaduais.

19. Resulta da citada operação que a empresa beneficiária, pois, reduz a carga do imposto de circulação de mercadoria em percentuais diferenciados, como demonstram os requerentes em sua inicial (fls. 8):

‘O Estado de origem suporta um prejuízo proporcional à diferença da alíquota interestadual normal e a privilegiada: no caso de São Paulo, por exemplo, a remessa direta para Minas Gerais é taxada à alíquota de 12%, sendo a alíquota especial para o Distrito Federal de 7% resultando num prejuízo real de 5% quer pela não aplicação da alíquota correta para a operação com destino à Minas Gerais (de 12%/7%), quer pelo creditamento da alíquota privilegiada (18%-7%=creditamento de 11%/18%-12%=creditamento de 6%).

O Distrito Federal recolhe 1% do valor da operação, quando realizada a ‘escrituração interestadual’ (diferença entre os 12% destacados na nota fiscal e o crédito presumido de 11%, sem haver correspondência do fato realizado em seu território à hipótese de incidência do respectivo tributo’.

19. Procedem, pois, as alegações dos Estados requerentes quanto à exigência de convênio, a ser celebrado entre os Estados da Federação, para a concessão de isenções, benefícios e incentivos, em tema de ICMS.

20. O Supremo Tribunal Federal, repetidamente, tem se manifestado contra a concessão de benefícios e isenções concedidos por certos Estados em prejuízo de outros membros da Federação, quando não autorizados por convênios interestaduais, como demonstra a decisão proferida na ADIN no 1.247, relator o eminente Ministro Celso de Mello (RTJ – 168/755):

‘ICMS e repulsa constitucional à guerra tributária entre os Estados-membros: O legislador constituinte republicano, com o propósito de impedir a <guerra tributária> entre os Estados-membros, enunciou postulados e prescreveu diretrizes gerais de caráter subordinante destinados a compor o estatuto constitucional do ICMS. Os principais fundamentos consagrados pela Constituição da República em tema de ICMS. (a) realçam o perfil nacional de que se reveste esse tributo, (b) legitimam a instituição, pelo poder central, de regramento normativo unitário destinado a disciplinar, de modo uniforme, essa espécie tributária, notadamente em face de seu caráter não cumulativo, (c) justificam a edição de lei complementar nacional vocacionada a regular o modo e a forma como os Estados-membros e o Distrito Federal, sempre após deliberação conjunta, poderão, por ato próprio, conceder ou revogar isenções, incentivos e benefícios fiscais.

Convênios e concessão de isenção. Incentivo e benefício fiscal em tema de ICMS: A celebração dos convênios interestaduais constitui pressuposto essencial à válida concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções, incentivos ou benefícios fiscais em tema de ICMS.

Esses convênios – enquanto instrumentos de exteriorização formal do prévio consenso institucional entre as unidades federadas investidas de competência tributária em matéria de ICMS – destinam-se a compor os conflitos de interesses que necessariamente resultariam, uma vez ausente essa deliberação governamental, da concessão, pelos Estados-membros ou Distrito Federal, de isenções, incentivos e benefícios fiscais pertinentes ao imposto em questão.

O pacto federativo, sustentando-se na harmonia que deve presidir às relações institucionais entre as comunidades políticas que compõem o Estado Federal, legitima as restrições de ordem constitucional que afetam o exercício, pelos Estados-membros e Distrito Federal, de sua competência normativa em tema de exoneração tributária pertinente ao ICMS.’


21. Logo, a celebração de convênio entre os Estados da Federação é considerado pressuposto essencial para tornar válida concessão de isenções, benefícios e incentivos fiscais, em tema de ICMS. Na mesma ação direta já citada, seu relator destaca o magistério de ROQUE ANTONIO CARRAZZA, e transcreve passagem do seu Curso de Direito Constitucional Tributário (TRJ 168/768):

‘Portanto, para que as isenções de ICMS surjam validamente, é preciso que os Estados e o Distrito Federal celebrem entre si convênios, que, ao depois, para se transformarem em direito interno de cada uma destas pessoas políticas, deverão ser por elas ratificadas.’

(…)

Observamos, ainda, que é preciso que todos os Estados e o Distrito Federal ratifiquem o convênio para que a isenção em tela nasça. Reforçando a idéia, se uma única destas entidades tributantes deixar de fazê-lo, o benefício não surgirá. De fato, um dos traços característicos do ICMS é sua cobrança uniforme, em todo território nacional. Exemplificando, não se pode cobrar este imposto de uma maneira no Estado ‘A’ e, de outra, no Estado ‘B’ ou no Distrito Federal. Isto instalaria, entre as entidades contribuintes, uma verdadeira guerra tributária, fenômeno que, em relação ao ICMS, a Lei Suprema vedou expressamente, nos incs. V, VI, VII e VIII, do § 2o, de seu art. 155 (Curso de Direito Constitucional Tributário, 5a ed., p. 349, 1993, Malheiros).” (fls. 691/694)

Como se depreende do acertado parecer, tem-se que as partes requeridas não observaram o modo de celebração do convênio estabelecido na Lei Complementar no 24/1975, uma vez que não foi observado o devido consentimento dos demais Estados da Federação quanto ao seu objeto.

Por aplicação dos princípios da legalidade estrita (CF, art. 37, caput) a forma para celebração de acordos deve ser, portanto, a estabelecida na própria LC no 24/1975. Nesse particular, vale mencionar o RE no 195.227, Rel. Maurício Corrêa, 2a T., DJ 27.09.96, cujo trecho da ementa é a seguinte:

(…) a Administração Pública, em toda a sua atividade, está sujeita aos mandamentos da lei, deles não se podendo afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor. Qualquer ação estatal sem o correspondente amparo legal, ou que exceda ao âmbito demarcado pela lei, é injurídica e expõe-se à anulação, pois, a eficácia de toda atividade administrativa está condicionada ao atendimento da lei: na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal, e só é permitido fazer o que a lei autoriza.

Aduzo ainda que o tema não é novo, esta Corte já decidiu na ADI 2.021-SP MC, Rel. Maurício Corrêa, Plenário, DJ de 04.08.1999, que as alíquotas de ICMS não podem ser alteradas pelos entes federados senão por deliberação conjunta. O referido precedente possui a seguinte redação:

“MEDIDA LIMINAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO DA LEI PAULISTA No 10.327, DE 15.06.99, QUE REDUZIU A ALÍQUOTA INTERNA DO ICMS DE VEÍCULOS AUTOMOTORES DE 12 PARA 9,5% PELO PRAZO DE 90 DIAS, A PARTIR DE 27.05.99. REEDIÇÃO DA LEI No 10.231, DE 12.03.99, QUE HAVIA REDUZIDO A ALÍQUOTA DE 12 PARA 9%, POR 75 DIAS. LIMITE PARA A REDUÇÃO DA ALÍQUOTA NAS OPERAÇÕES INTERNAS.

1. As alíquotas mínimas internas do ICMS, fixadas pelos Estados e pelo Distrito Federal, não podem ser inferiores às previstas para as operações interestaduais, salvo deliberação de todos eles em sentido contrário (CF, artigo 155, § 2o, VI).

2. A alíquota do ICMS para operações interestaduais deve ser fixada por resolução do Senado Federal (CF, artigo 155, § 2o, IV). A Resolução no 22, de 19.05.89, do Senado Federal fixou a alíquota de 12% para as operações interestaduais sujeitas ao ICMS (artigo 1o, caput); ressalvou, entretanto, a aplicação da alíquota de 7% para as operações nas Regiões Sul e Sudeste, destinadas às Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e ao Estado do Espírito Santo (artigo 1o, parágrafo único).


3. Existindo duas alíquotas para operações interestaduais deve prevalecer, para efeito de limite mínimo nas operações internas, a mais geral (12%), e não a especial (7%), tendo em vista os seus fins e a inexistência de deliberação em sentido contrário.

4. Presença da relevância da argüição de inconstitucionalidade e da conveniência da suspensão cautelar da Lei impugnada.

5. Medida cautelar deferida, com efeito ex-nunc, para suspender a eficácia da Lei impugnada, até final julgamento da ação.”

Preconizo que a concessão do chamado “regime especial” feita pelo Distrito Federal em benefício de Martins Comércio e Distribuição S/A institucionalizaria a circulação apenas escritural de mercadoria com a finalidade de permitir exigência de imposto sobre hipótese que não se consagra como fato gerador típico. Permitir-se-ia ainda, a compensação do imposto calculado sobre alíquota de 11% (onze por cento), enquanto na operação anterior a alíquota aplicada foi de 7% (sete por cento), reduzindo a capacidade tributária atribuída aos Estados-membros.

Assim, por conseguinte, ressalta o Estado do Paraná, por meio de sua Procuradora, às fls. 330/331:

O resultado dessa operação totalmente inconstitucional é lesivo tanto ao Estado de origem da mercadoria, por resultar em crédito escritural a maior, quanto àquele competente para a legítima tributação, pois a arrecadação do Distrito Federal se dá sem a ocorrência do fato gerador.

Com efeito, verifica-se no caso a inocorrência do fato gerador do ICMS, ou seja, a circulação física das mercadorias pelo território do Distrito Federal, a ensejar o recolhimento do tributo. A permissão de realização de transferência ficta, com mero registro documental, admitindo expressamente a entrega da mercadoria sem o trânsito local e destinada a outro Estado da Federação afeta o próprio regime de incidência do ICMS, que exige a efetiva circulação da mercadoria.

Dessa forma, o TARE no 01/98, além de prever hipótese ficta de incidência do ICMS, previu receita indevida ao Distrito Federal, através do recolhimento do tributo sem correspondente fato impositivo real, prejudicando a incidência dos impostos aos Estados remetentes e destinatários do imposto.

Ainda sobre o assunto, vale ressaltar que na própria exposição de motivos do Termo de Acordo em comento, há a previsão da transferência fictícia de mercadorias, como se pode conferir do seguinte trecho:

1.1 – As operações com mercadorias, que tenham como DESTINATÁRIO estabelecimento da MARTINS situado no Distrito Federal, tendo destacado no documento fiscal a alíquota de 7% (sete por cento) de ICMS (devido ao Estado de situação do remetente) têm o seguinte tratamento assim resumido:

1.1.1 – Estão dispensadas do trânsito físico pelo território do Distrito Federal, bastando o registro da entrada e a emissão de documento fiscal de transferência ao estabelecimento-matriz situado em Uberlândia/Minas Gerais.

1.1.2 – Muito embora as operações somente tenham gerado no Estado de origem ICMS resultante da aplicação da alíquota de 7% (Sete por cento), ocasionarão, conforme consta do Regime, um abatimento aritmético de 11% (Onze por cento) no imposto devido – este de 12% (Doze por cento) – pela saída subseqüente e ‘simbólica’ a título de transferência. Corresponde, na prática, a um lançamento a crédito de 11% (Onze por cento) de imposto no estabelecimento do Distrito federal e a subseqüente saída a título de transferência para a matriz (Uberlândia/MG) onerada a 12% (Doze por cento). Equivale, pois, a um crédito de 4% (Quatro por cento) outorgado pelo Governo do Distrito Federal a um único contribuinte.

1.1.3 – Como conseqüência prática, é acordada a alíquota residual de 1% (um por cento) que passa a ser devida ao Distrito Federal pelo trânsito ‘simbólico’ das mercadorias, sendo estipulado no Termo de Acordo de Regime Especial em foco um valor mínimo de recolhimento efetivo a título de ICMS de R$12.000.000,00 (doze milhões de reais) durante o período de doze meses de vigência do Termo.” (fl. 532)

Em face do exposto, tendo em vista a revogação do Termo de Acordo de Regime Especial (TARE) no 01/98 pela cláusula 11a do TARE no 44/99, julgo a ação prejudicada quanto ao período contido entre 1o.07.1999 e 31.07.1999. Quanto ao período compreendido entre 1o.08.1998 e 30.06.1999, julgo procedente a Ação Cível Originária para que sejam desconstituídos os efeitos do Termo de Acordo no 01/98, celebrado entre o Governo do Distrito Federal e Martins Comércio e Distribuição S/A.

No mérito, portanto, o caso envolve análise de Termo de Acordo que, inequivocamente, viola o pacto federativo.

Trata-se, em verdade, de fixação unilateral de alíquotas de ICMS em favor do Distrito Federal e em substancial prejuízo aos demais entes da federação.

Condeno os réus, por fim, ao pagamento de custas e despesas processuais e honorários advocatícios, os quais ficam arbitrados em 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa, devidamente corrigido.

É como voto.

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